Eu descobri quem era Kleber de Paula “Bambam” lá pelos idos de 2006 ou 2007 quando, entre os seletos horários de acesso ao MSN via internet banda larga, gastava tardes de chuva zapeando entre canais de TV até passar pelo programa da Sônia Abrão no SBT - portanto, alguns anos atrasada em relação ao resto do país, que conhecera o gajo dançarino na estreia da “casa mais vigiada do Brasil”.
Ocorre que, em 2002, do alto dos meus sete anos de idade, mamãe não me deixava assistir Big Brother Brasil (resultado: além de filha da diretora da escola, eu era meio sem assunto), tradição rigorosamente continuada pelo meu pai nas edições seguintes, até que eu e minhas irmãs tivéssemos terminado a faculdade (mentira, não foi tanto).
Sob a batuta da minha mãe, também estavam proibidas as fantasias de Carnaval de odalisca e – acima de tudo! – um combo curioso formado por botas de cano alto, máscara preta e chicote (!!!), deveras popular na high society da primeira série, associado a uma figura então desconhecida para mim chamada de Tiazinha.
Aliás, não apenas “no tocante à questão” da sexualidade, tenho orgulho de ter sido uma criança bastante... criança. Naquele ano de estreia do BBB, foi somente quando os nomes de Lula, Serra, Ciro e Garotinho irromperam entre os intervalos de desenho animado, que eu saberia quem era (e quem poderia ser) o presidente do Brasil; e levaria mais uns bons quatro ou cinco anos para desconfiar que meninos talvez fossem mais do que projetos de ser humano que voltavam fedendo do recreio.
Há quase duas décadas, o veto às fantasias miúdas e à dança na boquinha da garrafa aplicados pela minha mãe pareciam paranoia de gente religiosa.
No admirável mundo novo de 2020, quando a maior empresa de streaming do mercado é levada a se desculpar em público pelo material de divulgação de um filme acusado de promover a erotização infantil; um ano após o SBT que me apresentou às “pedritas” de Bambam (dançarinas mirins em trajes tão “econômicos” quanto os das adultas) ter sido duramente criticado, com toda a razão, por veicular um concurso de beleza infantil, acho que todo mundo já entendeu que o problema da sexualização precoce não é de direita nem de esquerda, não é coisa de crente nem de acadêmico cabeçudo: é de quem está preocupado com a defesa da infância.
Não à toa, o lançamento de “Lindinhas”, na Netflix, deixou a internet em polvorosa. Estampadas pelas quatro protagonistas de 11 anos trajando roupas coladas e curtas, as peças publicitárias da obra faziam jus à reação feroz do público.
Não bastasse o trailer estampando, que já exibia o quarteto envolvido em coreografias de fazer inveja às Spice Girls dos anos 1990, a descrição (aliás, precisamos falar sobre as descrições dos filmes nos serviços de streaming – mas isso é papo para outro texto) dá a entender que a história mostra como Amy, uma garotinha criada em uma família muçulmana senegalesa, que desde as primeiras cenas abre fogo contra as “mulheres nuas” do mundo Ocidental, “começou a se rebelar” contra as “tradições conservadoras” de sua família e “encontrou seu lugar” entre o grupo de dança das amiguinhas.
Ocorre que o filme, tal como escreveu o colunista Francisco Escorsim, nesta Gazeta do Povo, é uma crítica evidente à hiper sexualização atualmente promovida pela fabulosa Civilização Ocidental ™, ao passo que a crítica ao “conservadorismo” de origem da garota em nada tem a ver com a desmoralização de um ambiente familiar sadio.
Muito pelo contrário: ao longo da trama, Amy é testemunha do sofrimento da mãe diante da notícia do segundo casamento do pai, que lhe obriga não apenas a aceitar a convivência com a nova esposa, como a cozinhar quilos de comida para a data e, de quebra, aparecer linda e radiante para a festança.
Da parte das coleguinhas francesas que compõem o grupo de dança batizado de Mignonnes (a tradução “Lindinhas” é bastante literal), ouve-se a líder Angelica confessar que os pais estão sempre ocupados demais para lhe render qualquer atenção e, que, a despeito para a permissão para a dança, tratam o hobby da pequena como uma “maluquice”.
Deste caldeirão onde se misturam fundamentalismo sexista e negligência irresponsável, emerge o ambiente hiper sexualizado no qual as protagonistas são imersas. Para acompanhar as coleguinhas, que ostentam saltos e minissaias, Amy troca o tradicional hijab por uma blusa curta (o famoso “cropped”) e calças apertadas. Envolve-se em brigas violentas com outras meninas e é exposta na internet só de calcinha.
Isso só para arranhar a superfície, dado que as cenas seguintes levam o espectador a acompanhar o crescendo devastador da sexualização precoce da menina que (alerta de spoiler) acaba publicando fotos de suas partes íntimas nas redes sociais e oferecendo sexo em troca do celular de um primo. Pesado, não? Sim, bastante.
A cena clímax de “Lindinhas” é, justamente, o concurso de dança para o qual as protagonistas tanto ensaiaram. Aí, afinal, vê-se evidenciada a inspiração que levou a diretora franco-senegalesa Maimouna Doucuré a levar a cabo a produção.
Em um vídeo intitulado “Por que eu fiz Lindinhas”, publicado pela Netflix em clara resposta às muitas críticas negativas, Doucuré afirma que o filme é sua própria história (uma menina muçulmana tornando-se mulher na liberal Paris), e que a ideia lhe surgiu durante um passeio pela capital francesa, no qual topou com menininhas de 11 anos reproduzindo o comportamento retratado no filme.
"Nós somos capazes de ver a opressão à mulher em outras culturas, mas minha pergunta é: a objetificação do corpo feminino, que nós tão frequentemente promovemos na cultura ocidental, não é outra forma de opressão?", questiona a diretora, premiada no Festival de Sundace pela obra de estreia.
A posição de Doucuré fica explícita na reação atônita das famílias que assistem à apresentação das Lindinhas e, por fim (alerta de spoiler DOS GRANDES), quando a pequena Amy se dá conta do horror que estava vivendo, abandona a apresentação e, em casa, reconcilia-se com a mãe.
Então, o que há de errado com "Lindinhas"?
É simplesmente impossível que um espectador com uma sexualidade minimamente saudável assista “Lindinhas” sem ficar horrorizado com os closes extremamente reveladores nas atrizes mirins que protagonizam a obra, principalmente durante as coreografias. Se a intenção de Doucuré era evocar a discussão por meio do choque, foi muito bem sucedida.
Contudo, se, por um lado, o assombro diante da erotização precoce evidenciado pela saga da jovem Amy, pode, de fato, servir para despertar consciências para as situações absurdas às quais, mesmo sem querer, permitimos que os pequenos sejam submetidos, por outro, a coisa é tão gráfica que, em mãos mal intencionadas, é matéria prima para toda sorte de perversidades nas terras de ninguém da internet.
O pecado que se pode imputar a “Lindinhas”, portanto, é o de cometer o mesmo erro que pretende denunciar: expor crianças pequenas a situações vexatórias e de grande vulnerabilidade.
Por conta disso, nos Estados Unidos, a obra já é alvo de ações políticas. Mesmo com todas as justificativas da Netflix, grupos ligados ao Partido Republicano pedem o boicote à obra – o senador Ted Cruz, do Texas, solicitou a abertura de uma investigação contra a gigante do streaming.
Do lado Democrata, a deputada Tulsie Gabbard publicou em sua conta no Twitter: "Lindinhas, pornô infantil da Netflix, certamente vai abrir o apetite de pedófilos e ajudará a alimentar o tráfico sexual infantil. Uma em cada quatro vítimas do tráfico sexual são crianças. (...) Netflix, você agora é cúmplice".
É de se supor que a Netflix tenha obtido a autorização dos pais das meninas para a produção da obra, o que, é claro, divide a responsabilidade sobre o caso. O serviço de streaming também classificou o filme como impróprio para menores de 16 anos (o que, bem, qualquer internauta dos tempos do Orkut sabe que é como perguntar se “você tem 18 anos” antes de finalizar uma inscrição).
De todo modo, não creio que seja meu papel conjecturar sobre as condições nas quais “Lindinhas” foi filmado e as possíveis consequências da obra nas cinco meninas que tiveram seus corpos exibidos nas telas do mundo afora (desejo, de coração, que os pais e produtores tenham levado tudo isso em conta).
Penso, entretanto, que é importante ratificar o alerta sobre o perigo da sexualização precoce (real ou fictício), um mal que se esgueira ora discreta, ora descaradamente no cotidiano.
Ao longo das muitas conversas que já tive com a defensora pública Simone Souza, da 1.ª Vara de Infância, Juventude e Idoso do Rio de Janeiro, ouvi relatos de histórias de pais que, alegando dar “liberdade” à criança, ou recusando-se a se dobrar ao que entendem como “conservadorismo”, exibem, orgulhosos, fotos das filhas em roupas curtas e provocantes, ainda que em contextos considerados “ingênuos”.
“Uma dessas mães só se deu conta do perigo quando foi abordada na porta da escola por um homem lhe pedindo o preço para tirar fotos da sua filha”, conta Simone, que costuma dizer que, ainda que se resguarde a primazia da família sobre a criação de uma criança, a cultura do “o filho é meu, faço o que eu quiser” leva muitos responsáveis a provocar ou, pelo menos, negligenciar a abertura de portas para predadores.
Há que se considerar também que, uma vez exposta sistematicamente a situações na qual o ato sexual (mesmo que em meras insinuações) é normalizado, a criança, que ainda está nas fases iniciais da construção da sexualidade, pode passar a entender que é OK ser vista e tocada por qualquer um, ou envolver-se em relacionamentos amorosos sem qualquer capacidade para lidar com as consequências.
Não se trata, é óbvio, de responsabilizar a vítima, mas, conforme explicado em reportagem recente na Gazeta do Povo, trata-se de ensinar às crianças a identificar sinais de abuso e, last but not least, tomar decisões sobre o próprio corpo na hora certa, com a devida responsabilidade.
Não é preciso chegar ao caso extremo das “Lindinhas” para se abordar o problema, aliás. É louvável que, atualmente, concursos mirins de beleza, perguntas invasivas a celebridades infantis (“e os namoradinhos?”) e brincadeiras vexatórias com crianças já não sejam mais aceitáveis, dado o consenso que se tem acerca da importância das delicadas memórias construídas ao longo da infância.
Por tudo isso, ver o presidente da República, dono de um canal com mais de 3 milhões de inscritos no YouTube e 6,6 milhões de inscritos no Twitter, fazer “piadinhas” de duplo sentido com uma youtuber de 10 anos é de fazer vergonha à nação de origem do capitão, detentora de uma das legislações mais avançadas do mundo de proteção à criança e ao adolescente.
Por mais “inocente” que se alegue ter sido a “brincadeira” do presidente Jair Bolsonaro, fato é que, segundo o ECA (que, bem, um presidente “defensor da família”, que tanto se esmera para preservar a “inocência das crianças” ante a ameaça da ideologia de gênero, deveria saber pelo menos algumas linhas), “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.
Perguntar a uma garota diante do Brasil inteiro se “quem não gosta de mulher, gosta de homem” e reagir como um tiozão abobalhado para afirmação de que ela “começou cedo” (a trabalhar, no caso) pode não ser o mesmo que levar ao palco duas crianças vestidas de “pedrita”, mas pode ser, sim, bastante constrangedor para a menor – especialmente na era da internet.
Mais uma vez, é claro que não dá para saber se a garotinha vai, no fim das contas, levar tudo isso tão a sério: pode ser que ela cresça, se esqueça, e daqui a muitos anos se lembre vagamente do dia em que esteve com o presidente do Brasil.
Entretanto, para o chefe do Executivo, expor a sensibilidade de uma menina a uma piadinha de extremo mau gosto diante de uma nação para a qual deveria dar exemplo, está longe de ser aceitável.
Família, amizade e pertencimento na era digital
Caso não esteja claro até aqui, ratifico minha impressão para o leitor: não fossem os closes excessivos nos corpos das garotinhas, “Lindinhas” seria bem interessante.
Se fosse possível garantir (e infelizmente não é, de jeito nenhum) que os predadores reais não tivessem acesso e, portanto, não fossem estimulados por este tipo de produção, seria mais fácil argumentar que o balde de água fria cai bem em quem, a essa altura do campeonato, não se deu conta de que criança rebolando de shortinho não é normal.
Excessos à parte, penso que vale a pena ressaltar uma reflexão proposta pelo filme – a que me fisgou em primeira mão, para falar a verdade. Abri este texto falando sobre como, nos idos dos anos 2000, ser uma criança “criança” era meio démodé. No meu caso, a criação religiosa me privou do acesso a algumas das ondas que, hoje acredito, nada tinham de apropriadas para os pequenos.
Nessa época, entretanto, nada me faria passar mais vontade do que o hit que levava todas as minhas coleguinhas a se enfileirarem pela quadra da escola, completamente viciadas em uma coreografia animada, da qual eu seria impedida de participar porque, segundo a minha mãe explicaria de sala em sala, depois de proibir a dita canção, “tem música que fala do bumbum”.
A verdade é que ela estava preocupada com a alma da criançada. Afinal, que outra coisa uma música cujo refrão começa com “aserehe rá de re deheb” e diz respeito a um sujeito “possuído pelo ritmo Ragatanga” estaria fazendo, senão invocando os nove círculos do inferno?
A nobre missão de evitar que o capiroto se apossasse da minha turma, contudo, não impediu que eu me sentisse profundamente sozinha enquanto acompanhava, do parquinho, as dezenas de cosplays do grupo Rouge a desfilar pelo recreio – uma sensação que me acompanharia por muitos anos e em situações que me tomariam textos mais longos do que este.
Brincadeiras à parte, e guardadas as devidas proporções, foi impossível não me identificar, em algum nível, com uma das primeiras cenas de “Lindinha”, na qual a protagonista, Amy, admira ao longe o quarteto de coleguinhas que ensaia para um concurso de dança, e se ressente de não se sentir parte da turma.
Ocorre que, “no meu tempo”, “like” era só um dos verbos que a gente estudava na aula de inglês e, para que minha mãe me impedisse de assistir o que ela considerava nocivo (com todos os exageros), bastava desligar a TV. Careço de “lugar de fala” materno para discorrer a respeito, mas suponho que, hoje, não seja assim tão fácil.
Se, por um lado, pais que desejam proteger a infância de seus filhos precisam brigar com uma infinidade de traquitanas virtuais, por outro, só posso imaginar o quão difícil deve ser passar por essa transição (horrível) da infância para a adolescência em um ambiente saturado de gostei/não gostei, “fada sensata perfeita”/“filha da p___, vá para o inferno”.
O que me faz pensar que “Lindinhas”, além de um retrato da panela de pressão de sentimentos que marca a construção de uma identidade e o quão necessitados somos de aprovação e atenção, é um apelo para que pais, responsáveis, educadores, etc lidem com o fato de que não, não há caminho de volta da Era Digital.
E sim, teremos que aprender a proteger as mentes e corações das crianças neste novo mundo, com as ferramentas adequadas. Há que se encontrar um meio termo entre o isolamento dos pequenos do mundo virtual e o acesso irrestrito.
É desejável, portanto, que os mesmos olhos que escrutinam “Lindinhas”, estejam de olho nas cantoras, atrizes e influenciadores que, não obstante o trabalho focado no público adulto (e, para estes, que façam o que bem entenderem), desenvolvem festinhas, clubinhos, joguinhos e coisinhas para criançada.
Ao mesmo tempo, é essencial que o medo das novidades destes tempos – dos grupos de dança, das amizades, das boas e más experiências que espreitam do lado de fora do muro – não nos impeça de enfrentar o difícil debate da liberdade e da responsabilidade diante de cada circunstância; para que crianças sejam sempre crianças e se tornem adultos capazes de navegar em um universo onde convivem bem a família tradicional e a coreografia Ragatanga.
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