Novo livro critica a rejeição das feministas contemporâneas aos preceitos que estavam na origem do movimento.| Foto: Bigstock
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Em janeiro, pouco mais de cem anos depois que as mulheres conquistaram o direito ao voto, Kamala Harris tomou posse como primeira vice-presidente dos Estados Unidos. Ainda que eu discorde profundamente da ideologia de nossa vice-presidente, foi incrível ver uma mulher ocupar um cargo desses — o que há não muito tempo era inimaginável.

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Graças às tumultuosas mudanças do último século, as mulheres norte-americanas de hoje se encontram numa posição social muito mais vantajosa do que em 1920; entre os maiores avanços está o direito ao voto. Ainda assim, o descontentamento persiste entre as mulheres. Talvez uma mulher que tenha acabado de virar mãe queira ficar em casa com os filhos, mas as finanças da família e o alto custo de vida impedem. Talvez uma mulher que seja mãe de filhos já grandes queira sair para trabalhar, conciliando casamento e profissão, e busque um trabalho em meio expediente, mas a falta de oportunidades de trabalho com horários flexíveis a impede.

Como foi sugerido pelo debate da última década sobre a possibilidade de as mulheres “terem tudo” – debate intensificado pela onda de histórias do movimento #MeToo, que expos uma cultura sexual disfuncional, marcada pela falta de comunicação e até violência — paira sobre todo o espectro político a sensação de que, apesar das conquistas no último século, a mulher contemporânea ainda enfrenta dificuldades.

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O surpreendente, talvez, é que essa insatisfação parece maior e mais presente entre as feministas progressistas, por mais que elas tenham atingido boa parte de seus objetivos na reforma da sociedade. Elas pertencem à chamada “terceira onda” do movimento feminista, que começou com a campanha sufragista, se desviou com o livro “A Mística Feminina”, de Betty Friedan, e depois se misturou à Revolução Sexual dos anos 1960 e 1970, com várias ramificações. Por que as mesmas mulheres que pareciam ter conquistado tantas das coisas que exigiam – o afrouxamento da moral sexual, o divórcio sem justificativa, o acesso fácil a vários métodos de contracepção e até o aborto – parecem ser as menos satisfeitas com a situação atual?

Em seu novo livro, The Rights of Women: Reclaiming a Lost Vision [Os direitos das mulheres: recuperando uma ideia perdida], a jurista Erika Bachiochi explica por que as feministas modernas continuam decepcionadas. Para ela, o movimento traiu a ideia básica das precursoras tornando o aborto um componente fundamental da busca pela igualdade feminina.

Uma contradição profunda

O livro gira em torno de uma ideia que Bachiochi defendeu convincentemente muitas vezes, numa obra que coerentemente expõe o que ela chama de “contradição profunda” entre o sentimento feminista autêntico e o aborto. No livro, ela mergulha na questão, mostrando sobretudo o trabalho da feminista Mary Wollstonecraft para a leitora contemporânea que queira entender o que é o feminismo próspero.

Bachiochi escreve que o problema do movimento feminista contemporâneo não está presente na crítica que ele fazia, nos anos 1960 e 1970, da discriminação à mulher, uma crítica à qual ela parece solidária. “O problema do movimento feminista hoje está no fato de ele praticamente ter abandonado a visão moral de Wollstonecraft”, escreve ela. “Essa visão defendia os direitos das mulheres, de tal forma que mulheres e homens pudessem cumprir com sucesso seus deveres para com a família”. Usando o pensamento de Wollstonecraft como modelo para a defesa da igualdade entre homens e mulheres, Bachiochi aponta o que deu errado, dizendo que o feminismo contemporâneo fracassou em promover a igualdade e os direitos das mulheres porque rejeitou o pensamento feminista original, negando a importância da moralidade, sobretudo no campo da sexualidade.

De acordo com Wollstonecraft, a promoção da igualdade e das oportunidades para as mulheres requer que se dê ênfase à virtude, objetivo tanto de homens quanto de mulheres. Longe de considerarem a ética sexual como um obstáculo para a felicidade feminina, as primeiras feministas acreditavam que a virtude no campo do sexo, entre outros, era fundamental para se alcançar a verdadeira igualdade entre os sexos. Os homens se elevariam ao nível que as mulheres exigiam, acreditavam elas, defendendo que homens e mulheres buscassem a integridade e o conhecimento a serviço de seus deveres sociais e familiares.

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Bachiochi se aprofunda no assunto, comparando o foco sobre a virtude e a insistência do movimento feminismo contemporâneo na libertinagem como precondição para a liberdade e a realização femininas. Em vez de reconhecer o valor da responsabilidade familiar e do autocontrole, as ativistas de hoje tendem a se ater sobretudo na autonomia e prazeres femininos, usando o aborto para tornar o sexo algo sem consequências. Para as feministas de hoje, alcançar a igualdade feminina requer que se permita que as mulheres se envolvam em relacionamentos sexuais, desviando-se das consequências da mesma forma que os homens.

É o tema que Bachiochi aborda com frequência em seus outros livros e no qual se detém nesta obra: a justiça precisa de uma reação social ao fato da assimetria reprodutiva, mas resolver essa assimetria como as feministas progressistas fazem, isto é, tratando os corpos femininos como se fossem iguais aos corpos masculinos, algo que deposita o fardo da reprodução apenas sobre as mulheres, é uma estratégia profundamente antifeminista.

Ainda que muitas feministas de hoje se recusem a reconhecer isso, a defesa que elas fazem do aborto eletivo significa que o corpo feminino deve ser tratado como se ele funcionasse como o do homem, uma ideia incapaz de promover a igualdade e que reforça a predação masculina. Como diz Bachiochi, o aborto torna a gestação um “problema apenas das mulheres”. Se uma mulher grávida opta por dar continuidade à gestação contra os desejos do pai, ela tem de lidar sozinha com as consequências – afinal, ela poderia ter optado pelo aborto.

Feminismo e a Revolução Sexual

O livro de Bachiochi usa e abusa do conhecimento que ela tem do pensamento de Wollstonecraft. Mas leitores à procura de uma explicação sobre a influência das feministas precursoras no debate contemporâneo terão de se contentar com a segunda parte do livro. Em capítulos sobre Betty Friedan e a segunda onda do feminismo, dependência e economia de mercado e as implicações jurídicas da assimetria sexual, Bachiochi se destaca, oferecendo aos leitores uma análise abrangente da história e uma visão feminista robusta que pode nos ser útil hoje.

Aqui e ali, Bachiochi escreve que a causa feminista só pode ser bem-sucedida se conseguir se desvencilhar dos “excessos da Revolução Sexual”. Faço objeção a essa ideia porque a própria Bachiochi identifica como o verdadeiro problema a raison d’être da revolução sexual: a sedução da libertinagem, levada a cabo pelo aborto disponível ao longo de toda a gestação. Não são os excessos, e sim a própria lógica da Revolução Sexual o que contaminou o feminismo e a defesa da igualdade entre os sexos.

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Se bem que Bachiochi sabe disso. Ela diz que as feministas se afastaram da ideia moral de Wollstonecraft quando “adotaram empolgadamente o aborto como solução (...) como um sine qua non da liberdade e igualdade femininas”. Os frutos desse fracasso são evidentes e estão na pauta política e na retórica das líderes feministas de hoje.

Confrontada com o fato de que muitas mulheres continuam infelizes apesar das vitórias das feministas da segunda onda, a terceira onda do feminismo grita: “Queremos mais!”. O divórcio sem justificativa e a ascensão do sexo extramarital não garantiram o sucesso profissional nem experiências sexuais satisfatórias? Talvez isso se dê porque nosso governo não foi estruturado tendo o prazer feminino como objetivo. O aborto parece tornar muitas mulheres infelizes? Talvez isso aconteça porque ainda temos que eliminar o estigma social envolvendo o aborto. A contracepção acessível e o aborto sob demanda não resolveram o dilema da infelicidade feminina? Talvez isso aconteça porque nem uma coisa nem outra são totalmente financiadas pelo governo.

Em resumo, as feministas da segunda onda exigiam autonomia sexual total e, apesar de terem conseguido isso, descobriram, muitas décadas mais tarde, de que o sucesso delas não se traduziu em realização feminina. Ao exigir o fim do casamento tradicional e a criação de um regime político que empodere as mulheres a fim de que elas entrem e saiam de relacionamentos sexuais da mesma forma que os homens – eliminando as consequências com a ajuda do aborto – as femininas criaram uma situação que exige que as mulheres insatisfeitas recorram ao governo. Em vez de questionar a autonomia sexual como forma de liberdade real, o movimento feminista contemporâneo se apega à esperança infundada de que uma mistura de programas estatais novos e melhores resolverá os problemas das mulheres.

A essa situação triste, Bachiochi injeta um necessário quê de inspiração e bom senso. “Hoje nos dizem que a liberdade e a igualdade devem incluir o ato que destrói o primeiro laço de afeto humano, aquele entre a mãe e o filho não nascido”, escreve ela na introdução, num resumo emocionante da clareza de seu trabalho. Como podemos esperar que as mulheres prosperem quando a nossa sociedade acata a mentira de que a igualdade feminina requer colocar a mulher grávida contra seu filho vulnerável?

Com esse livro, Bachiochi apresenta um contra-argumento atraente à narrativa atual, expondo uma ideia de igualdade e felicidade femininas que abrange a capacidade da mulher de ter filhos, estimulando a virtude sexual e o casamento como antídotos contra as desigualdades e injustiças que o aborto jamais resolverá.

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*Alexandra DeSanctis é redatora da National Review e membro do Ethics and Public Policy Center.

© 2021 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês
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