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Em 7 outubro de 1932, em São Paulo, o jornalista e político branco Plínio Salgado (1895-1975) lançou a Ação Integralista Brasileira com um manifesto nacionalista, anticomunista e católico. O lema do grupo era “Deus, Pátria e Família”. Pouco mais de um ano antes, a 16 de setembro de 1931, o intelectual negro Arlindo Veiga dos Santos (1902-1978) havia lançado, também em São Paulo, a Frente Negra Brasileira (FNB), um grupo também nacionalista, anticomunista e católico. O lema de sua instituição era “Deus, Pátria, Raça e Família”.
Naquela época, Plínio e Arlindo mantiveram um intenso intercâmbio, principalmente através de cartas. O ideário dos dois pensadores era muito parecido, e os integralistas em geral viam com bons olhos a parceria com o movimento negro.
“O ideal comum de ambas as organizações era o nacionalismo”, afirma o historiador Petrônio Domingues, professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e especialista na história do movimento negro no Brasil. “Há casos de integralistas negros que também participaram da Frente Negra. E há casos de integralistas que não eram negros, mas que chegaram a participar de atividades promovidas pela Frente Negra”.
Sinal, diz o professor, de que os integralistas não expressavam publicamente preconceito contra os negros. “Pelo contrário. O integralismo, como o próprio nome do movimento sugere, propõe uma integração da pátria. Nessa integração, havia lugar para os negros. O maior problema, tanto para os integralistas quanto para a FNB, eram os imigrantes”.
Arlindo Veiga dos Santos chegou a defender que os brasileiros valorizassem os negros, como Hitler fazia com os alemães brancos. “Que nos importa que Hitler não queira, na sua terra, o sangue negro? Isso mostra unicamente que a Alemanha Nova se orgulha da sua raça”, ele escreveu. “Nós também, nós Brasileiros, temos raça. Não queremos saber de ariano. Queremos o brasileiro negro e mestiço que nunca traiu nem trairá a Nação”. Adolf Hitler, dizia ele, “afirma a raça alemã. Nós afirmamos a Raça Brasileira, sobretudo no seu elemento mais forte: o negro brasileiro”.
Em 1934, foi como representante da FNB que Arlindo participou do I Congresso Integralista Brasileiro, realizado em Vitória (ES). O jornal mantido pela instituição, chamado A Voz da Raça, abriu espaço para Plínio Salgado, que escreveu um artigo em que afirmava: “O Brasil está repleto de companhias, sindicatos, bancos estrangeiros que lhe desceram as entranhas. O Brasil tem na barriga uma flora de partidos imorais. O Brasil sofre a sarna de uma imprensa escandalosa, quase toda vendida a grupos de panelinhas. O Brasil está atacado de gangrenas comunistas. O Brasil está deformado, feio, triste, gafento”.
Ações sociais
Em 1936, a FNB se tornou o primeiro – e até hoje o único – partido político negro da história do Brasil. Não houve tempo de apresentar candidatos para nenhuma eleição, porque logo em 1937 o presidente Getúlio Vargas decretou a extinção de todos os partidos e deu início à ditadura do Estado Novo. Mas os seis anos de existência da entidade foram intensos. Como afirma a pesquisadora Laiana Lannes de Oliveira na tese de mestrado A Frente Negra Brasileira: Política e Questão Racial nos anos 1930 , “A Frente Negra Brasileira tinha como principal objetivo a ‘elevação moral’ do negro brasileiro”.
O movimento se expandiu por vários estados, em especial Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Alcançou estimados 20 mil sócios, que se dividiam entre diferentes atividades. O foco estava na educação – em dezenas de cidades, a FNB passou a fornecer cursos de alfabetização e formação profissional.
As professoras em geral eram negras, mas o grupo aceitava alunos de todas as etnias, como observou o escritor modernista Oswald de Andrade observou, em 1937, ao participar de uma cerimônia realizada pela FNB no Theatro Municipal de São Paulo, em homenagem ao poeta negro Castro Alves: “Se aqui vedes pretos e brancos irmanados e solidários, ide à sede de uma das organizações que nos dão este espetáculo – a Frente Negra Brasileira – e vereis como sinal dos tempos, cursando as suas aulas, nacionais brancos, europeus e até japoneses”.
Para os líderes do movimento, a educação era o melhor caminho para garantir melhores condições de vida para a população negra. “Instrução é o que o negro precisa”, afirmava, em 1936, o jornal do movimento. “O negro deve procurar se libertar dos grilhões da ignorância e quebrar as algemas vergosas do preconceito que o faz aniquilar”. A fim de sustentar as escolas, eram realizadas diversas atividades culturais, desde bailes até teatros e apresentações musicais. O movimento também formou times de futebol exclusivamente negros e ofereceu assistência médica, além de manter o jornal A Voz da Raça.
Os seguidores protestavam publicamente contra locais que negavam a entrada de negros, incluindo hotéis, clubes e escolas particulares. Seguindo os moldes integralistas, a FNB criou também bandeira própria, hino e um grupo armado, a Milícia Frentenegrina.
Com relação à prática religiosa, as manifestações de matriz africana nem sempre eram bem recebidas. Em São Paulo, por exemplo, os líderes defendiam o catolicismo tradicional. Em Pernambuco, a relação com os praticantes das fés de origem afro era tensa. “Eles não só não mantinham relação com religiões de origem afro, como eram contra”, explica Paulo Cruz, professor e palestrante nas áreas de filosofia, educação e questões relacionadas ao racismo no Brasil e colunista da Gazeta do Povo.
A atuação política da FNB era expressiva. O grupo chegou a ser recebido por Getúlio Vargas. Levou ao presidente uma denúncia, a de que negros não eram aceitos na Guarda Civil de São Paulo. Em resposta, Getúlio teria prometido conceder 200 vagas exclusivamente para negros.
“O grupo se diferencia pelo alcance e pela influência política. Efetivamente a Frente Negra Brasileira abriu um canal de conexão com a sociedade e com o poder público”, afirma Petrônio Domingues. “As lideranças acreditavam que o negro, para mudar o quadro de desigualdades raciais, tinha que necessariamente buscar uma atuação como cidadão de direitos, mobilizado politicamente”.
Divisão interna
Mas a política provocou divisões internas na FNB – que, desde as origens, abrigava membros mais aliados à esquerda. Em 1932, uma parte dos integrantes rompeu com a liderança do movimento quando Arlindo Veiga dos Santos declarou neutralidade no confronto entre o estado de São Paulo e o governo federal, então instalado no Rio de Janeiro. Liderados por Joaquim Guaraná Santana, os dissidentes formaram a Legião Negra e pegaram em armas ao lado dos paulistas.
Ambos os grupos perderam força a partir de 1937 – a FNB ainda sobreviveu até maio de 1938, com o nome União Negra Brasileira. O Brasil nunca mais teve um partido político oficialmente negro. A partir de meados da década de 1970, a maior parte dos movimentos se aliou a grupos de esquerda. “É a partir da ditadura militar que há essa guinada do movimento negro que passa a se aproximar das correntes ligadas à esquerda. Esse movimento negro brasileiro sofre a influência externa, via Estados Unidos, os movimentos em prol dos direitos civis, os Panteras Negras, o Black Power, figuras como Martin Luther King e Malcom X”.
Em 2018, um grupo de lideranças formou a Nova Frente Negra Brasileira. Desta vez, a orientação política é diferente: a entidade é conduzida principalmente por correligionários do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Mas o professor Petrônio Domingues lembra que existem, hoje, lideranças negras também de direita. “Hoje vemos grupos negros expressando seu desejo legítimo de se expressar politicamente seguindo outra linha de pensamento. Negros ligados à direita não são nenhuma novidade na história do Brasil”.
Ideais atuais
Para o professor Paulo Cruz, “os ideais da Frente Negra são absolutamente notáveis e ainda atuais”. Os militantes da época, diz ele, “eram homens sem perspectiva, que de repente encontraram lideranças que estimulavam a educação financeira, fomentavam a importância da família, diziam que todo homem precisava deixar um legado para seus filhos”
Ainda assim, diz ele, essa fase do movimento negro costuma ser ignorada. “O Arlindo Veiga dos Santos, que era um grande intelectual, foi escanteado pelas novas gerações”, comenta. Os objetivos também mudaram, diz Paulo Cruz. “A ideia da FNB era que a sociedade está aí, o governo não vai ajudar, e por isso, para superar a discriminação, temos que mostrar que temos capacidade. Mas, num determinado momento, o movimento virou sua pauta, e agora só quer arrumar um culpado pelas dificuldades que os negros enfrentam”.