A escritora e diretora francesa Maïmouna Doucouré ficou bastante surpresa ao descobrir que seu filme Lindinhas (Mignonnes, no original em francês) – um vencedor do Festival de Sundance deste ano – foi recebido de forma violentamente impopular pelo público americano depois de ter aparecido na Netflix.
Em resposta aos materiais de divulgação e aos trailers do filme (os quais mostravam meninas de 11 anos de idade vestidas e dançando como profissionais de um clube de strip-tease), políticos, jornalistas e celebridades reclamaram que o serviço de streaming estava “basicamente distribuindo pornografia infantil.”
Uma petição convocando os usuários da Netflix que cancelassem suas assinaturas chegou a mais de 600 mil assinaturas. No entanto, os produtores do filme se mostraram perplexos, sustentando a afirmação de que “Lindinhas é uma crítica social contra a sexualização de crianças.”
Se fosse um livro – ou se as protagonistas não fossem menores de idade – talvez eu pudesse apoiar a ideia dos defensores do filme. Mas Lindinhas não é um romance; em vez disso é uma obra visual, na qual meninas de verdade, com onze anos de idade, foram apresentadas a milhões de espectadores em formas que, em qualquer outro contexto, seriam consideradas no mínimo repreensíveis, senão criminosas.
Já que eu imagino que muitas pessoas não vão assistir ao filme, a princípio, eu vou tentar resumi-lo aqui.
O que o filme mostra?
Lindinhas explora as muitas formas pelas quais meninas em situação de vulnerabilidade agem de forma sexualizada. Situado na França nos dias de hoje, o filme conta a história de Amy (Fathia Youssouf), que se muda com a família (sua mãe e dois irmãos mais novos) para uma moradia financiada pelo governo. Amy, cuja família faz parte de uma rigorosa comunidade muçulmana, logo descobre que seu pai quer se casar com uma segunda esposa, que irá morar no quarto vazio ao lado do seu.
Devido às convenções estabelecidas por sua religião, sua mãe não pode expressar qualquer opinião a respeito desse fato, e deve até mesmo fingir um certo entusiasmo. O estado de raiva e confusão de Amy é perfeitamente compreensível, e ela acaba internalizando o estado de miséria da mãe e tenta escapar de toda essa situação.
Em pouco tempo, as “lindinhas”, um grupo de garotas populares altamente problemáticas na escola, atraem a atenção de Amy. As lindinhas mentem, roubam, brigam e (com acesso irrestrito à cultura pop hiper-sexualizada por meio de seus smartphones) exibem uma curiosidade sexual precoce, principalmente sob a forma da dança. Tendo ganho a aceitação do grupo, Amy logo é pressionada a filmar o pênis de um garoto enquanto ele usa o banheiro da escola.
Em pouco tempo, absorta em sua nova vida dupla, Amy deixa deslizar seu hijab sobre a cabeça em um encontro de oração para assistir a um vídeo onde mulheres adultas dançam uma coreografia com movimentos que não seriam estranhos se também fossem executados por uma stripper em uma boate.
As lindinhas fazem graça da pornografia a que assistem nos banheiros da escola; elas fazem caras e bocas e usam comentários sexuais rudes como forma de atrair a atenção dos meninos mais velhos; elas se vestem com roupas curtas e provocantes (Amy empresta uma camiseta do irmão para usar como um cropped top).
E, no entanto, durante todo esse tempo, os produtores do filme nos lembram de que elas realmente não entendem o que estão fazendo – são crianças, afinal. Em uma das cenas, uma das meninas confunde uma camisinha usada com uma bexiga, causando um coro de gritos entre as pré-adolescentes.
Angelica, a líder do grupo, reclama que é negligenciada pelos pais, mas acrescenta que pelo menos “as pessoas gostam de mim.” Amy percebe, durante uma das cenas mais controversas de todo o filme – a coreografia das Lindinhas – que aquilo não é seu eu verdadeiro e foge do palco para reencontrar a mãe. Depois disso, ela volta a ser uma menina, com trajes de menina e comportamento de menina, e brinca de pular corda, uma lembrança do que a infância deveria ser.
Mas, mesmo que o comportamento inadequado das meninas não seja enquadrado como uma libertação, e sim um pedido de ajuda, e embora o filme igualmente não endosse esse tipo de comportamento, a forma como a representação visual se apresenta é difícil de ser justificada.
Durante a sequência de dança, as meninas em seus trajes escandalosos expõem seus corpos e se contorcem de forma gratuita, de forma a facilmente serem vistas por adultos como indivíduos sexuais, nunca como crianças. Até mesmo o generoso “Guia Parental” do site IMDB não consegue minimizar:
“As calças apertadas de couro de uma menina de 11 anos são forçadamente puxadas para baixo durante uma briga com outra menina (...) Meninas de 11 anos dançam de forma sugestiva em frente a uma plateia de adultos.”
"Intenções artísticas"
Assim, quaisquer que fossem as intenções artísticas, ao fazer uma crítica social sobre a sexualização de crianças, os produtores do filme inegavelmente acabaram por sexualizar as crianças.
Imagine se um filme, uma crítica social sobre crueldade com animais, mostrasse imagens reais de espancamento de cães e gatos, ou mesmo mostrasse esses animais sendo queimados vivos.
Seria moralmente convincente para os cineastas simplesmente substituir o habitual aviso de que “nenhum animal foi ferido durante as gravações deste filme” por um protesto pós-produção do tipo “Ah, mas nosso objetivo era mostrar como isso é errado”? Óbvio que não.
Além disso, no caso de Lindinhas, havia uma maneira fácil de contornar o desafio artístico que o roteiro apresentava. Por que não escolheram jovens adultas com aparência de meninas mais novas?
Quem defende Lindinhas diz que quem o critica sequer assistiu ao filme. Minha reclamação com quem faz essa defesa é que essas pessoas assistiram ao filme, e mesmo assim fingem que não há ali nenhum grande problema ético.
Richard Brody, do The New Yorker, escreveu que “Lindinhas é um filme do centro, e é esteticamente do centro – ele retrata os excluídos sem avançar para o reino do subjetivo, e não permite às jovens protagonistas muitos discursos, internos ou externos.”
Apenas um verdadeiro intelectual poderia – quando confrontado com as bundas das meninas, parcialmente vestidas em roupas coladas de couro, se contorcendo e com a quantidade de pernas das meninas se abrindo – se posicionar para além da linha do nonsense.
"Intelligentsia" francesa
Eu odeio dizer isso, mas não é nem um pouco surpreendente que esse filme tenha sido feito na França. Nos anos 1970, pensadores importantes da intelligentsia francesa – Michel Foucault, Roland Barthes, Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, entre outros – publicaram uma carta aberta no Le Monde, um dos maiores jornais daquele país, defendendo três homens que haviam sido acusados de fazer sexo com uma menina que tinha menos de 15 anos.
Por séculos, as leis francesas não tinham as relações sexuais com crianças como crime e, aparentemente, em alguns casos continua assim. Em 2017, a escritora francesa Valentine Faure resumiu um caso recente em um artigo intitulado “Pode uma menina de 11 anos fazer sexo consentido?” (ela acha que não) para o New York Times:
“A situação, primeiramente reportada pelo site Mediapart, aconteceu em 24 de abril no subúrbio parisiense de Montmagny. Naquela tarde, a criança seguiu um homem que já havia se aproximado dela por duas vezes dizendo que ‘poderia ensiná-la a beijar e mais algumas coisas.’
Eles foram até o prédio dele, onde ela fez sexo oral nele no corredor. Então ela o seguiu até o seu apartamento onde tiveram uma relação sexual. Depois, ele disse a ela que não contasse nada sobre o que havia ocorrido, a beijou na testa e pediu para vê-la novamente.
No caminho de volta para casa, a menina ligou para a mãe em uma crise de pânico, percebendo tudo o que tinha acontecido. ‘Papai vai achar que eu sou uma vadia’, disse ela. A mãe imediatamente ligou para a polícia e prestou queixa por estupro.
Mas citando o artigo 227-25 do código penal francês, o promotor público afirmou que ‘não houve violência, nem coerção, nem ameaça e nem surpresa,’ e, portanto, o homem seria acusado apenas de ‘infração sexual.’ Esse delito é punível com cinco anos de prisão, enquanto o estupro poderia lhe render 20 anos de cadeia pelo fato de a vítima ser menor de 15 anos.”
A título de comparação, a indignação moral dos americanos ao primeiro sinal de pedofilia é profundamente reconfortante. Sim, os produtores do filme se posicionaram sobre algo muito importante: há muito em jogo aqui, e para garantir a proteção de nossas crianças temos que explorar realidades desagradáveis como as discutidas no filme.
Ainda assim, uma linha muito clara foi ultrapassada. Os cineastas de Lindinhas não apenas simularam a degradação cultural e o abuso de crianças, eles se tornaram parte do problema que pretendiam combater.
Madeleine Kearns é redatora da National Review.
©2020 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês.
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