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Houve muitas causas para a insurreição no Capitólio dos Estados Unidos, em 6 de janeiro. Logo depois, boa parte da culpa foi depositada sobre a retórica inflamada de Trump. Os que tendem a analisar com mais profundidade veem uma ligação entre as palavras de Trump e a polarização extrema que marcou a presidência dele. Subgrupos da cultura norte-americana vivem em mundos cada vez mais distintos uns dos outros.
Isso é mais do que uma metáfora. Nós — nos Estados Unidos e no mundo todo — praticamente perdemos a capacidade de interagir e coexistir no mundo comum que antes compartilhávamos.
Não estou falando apenas de visões de mundo conflituosas, perspectivas radicalmente diferentes, disparidades educacionais ou polarização político-partidária. Estou falando do problema específico, simples e cotidiano que gerou e reforçou todas essas motivações políticas e sociais mais amplas. É um problema tão onipresente, tão poderoso e tão sutil que a maioria dos meus leitores provavelmente não têm ideia do que estou falando.
Estou me referindo ao chamado “problema metade-metade”: mais da metade dos norte-americanos passam mais da metade das horas de seus dias vivendo em mundos artificiais, e não no mundo real. A marca de 50% representa o ponto da virada que torna qualquer diálogo, deliberação, amizade e comprometimento extraordinariamente difíceis em qualquer sociedade.
De acordo com uma pesquisa de 2014 feita pela Pew Research Center, de 2004 a 2014 houve um aumento drástico na polarização política. Esse período, que antecede a Trump, corresponde ao aumento no uso de smartphones (o iPhone foi lançado em 2007) e no uso da Internet, tanto nos Estados Unidos quanto no restante do mundo. A marca de 50%-50% no uso da Internet nos EUA foi alcançada pouco depois de 2014, provavelmente em 2015. Neste mesmo período, a porcentagem de democratas que se definiam como progressistas e dos republicanos que se definiam como conservadores ultrapassou os 50%. Correlação não significa necessariamente causalidade, mas neste caso digo que a hipótese faz sentido.
Quando muitas pessoas passam a viver a maior parte de sua vida em outros mundos que não o mundo real que compartilham com seus concidadãos, elas se tornam incapazes de encontrar o meio-termo em questões de política ou princípios. Os estudos captam a realidade: a Internet causa um deslocamento social e uma crise de informação mais amplos e profundos do que nunca. Hoje as consequências da sociedade saturada de Internet começam a se manifestar de uma forma politicamente óbvia.
A descorporificação da consciência
Para muitos, usar a Internet e suas várias ferramentas, sobretudo as redes sociais, parece algo inofensivo. Afinal, você está lendo este artigo inteligente e esclarecedor pela Internet agora mesmo. A reação natural de muitos a afirmações hiperbólicas sobre os perigos da Internet tem um quê de aprovação intelectual combinada a uma boa dose de negação prática. Se é tão útil, não pode ser tão ruim assim, não é?
Isso está tão presente nas sociedades humanas que não há motivo para questionar o valor das consequências, ou há? Como o sapo na panela de água fervente, muitos de nós sentimos que a água começa a esquentar. Mas ainda não está quente demais, não é mesmo?
Afinal, os mundos virtuais da Internet nos conectam a nossos concidadãos e seres humanos como nunca antes. Será que hoje não temos à nossa disposição fatos e informações como nunca? Esses truísmos do século XXI são equivocados.
Pense por um instante no que você está fazendo agora mesmo. Sua mente, sua consciência, está envolvida neste artigo exibido na sua tela. O que seu corpo está fazendo? Talvez ele esteja parado como uma pedra ou talvez caminhando, mas a única forma de interação do seu corpo com o mundo real é por meio do contato de seus olhos com uma tela artificial. Sua mente está num lugar e seu corpo noutro.
Sua consciência está explorando o mundo abstrato que foi criado por seres humanos; um mundo artificial, não natural. Seu corpo, cuja função é ajudar a conectar sua mente ao mundo natural por meio dos sentidos e da experiência, foi excluído da equação.
Isso não é necessariamente ruim em si. Afinal, quando nos sentamos para ler um livro, nossa mente parece sair do nosso corpo da mesma forma. A descorporificação da consciência só se torna um problema quando é tão frequente a ponto de ocultar ou distorcer nossa capacidade de nos envolvermos no mundo real e natural. Como complemento e extensão da nossa experiência e consciência corporificadas, o pensamento abstrato é natural, necessário e benéfico. Como substituto da nossa consciência corporificada, ele é desastroso.
O problema “metade-metade”
De acordo com uma pesquisa de 2019 da Pew Research Center, aproximadamente oito em cada dez norte-americanos entra diariamente na Internet. Quase três em cada dez adultos dizem que estão “constantemente” online. De acordo com uma pesquisa de 2019 do Digital Information World, os internautas norte-americanos passam, em média, seis horas e 31 minutos online diariamente. Ao longo de um ano, o internauta norte-americano médio passa cerca de 100 dias online.
Note que esses números foram obtidos antes de percebermos os efeitos da pandemia de Covid no uso mundial da Internet. É provável que todos os indicadores de uso da Internet tenham aumentado de 10% a 20% em 2020. Juntos, esses números mostram que ultrapassamos a marca de 50%-50%: mais da metade dos americanos passam mais da metade do tempo em mundos virtuais.
Esses mundos virtuais são artificiais não apenas por dependerem da tecnologia criada pelo homem, mas também por motivos mais extremos. O conteúdo de nossos mundos virtuais é determinado por cada um de nós: vamos aonde queremos ir, vemos o que queremos ver, interagimos apenas com as pessoas com as quais queremos interagir, e assim por diante.
Para se explicar isso, geralmente se usa o termo “câmara de eco”. Mas há ainda o poder imenso e silencioso de incontáveis algoritmos que aprender com nosso comportamento a fim de nos dar automaticamente o que queremos e manipulam nosso comportamento de maneiras que combinam com nossa psiquê.
Como mostra o documentário “O Dilema das Redes”, não é preciso ser filósofo nem psicólogo para perceber que nós, humanos, não nascemos para isso. Os mundos virtuais que criamos para nós mesmos — e que são constantemente recriados para nós por entes invisíveis — são profundamente diferentes do mundo real que nosso corpo habita.
Diante da tela, não aprendemos da mesma maneira que aprendíamos olhando o mundo ao nosso redor (sobretudo nossos semelhantes), por mais que a tela pareça cheia de informações e ideias naquele momento. Nossa mente se torna ao mesmo tempo hiperativa e paralisada, como um fisiculturista que só consegue levantar peso com o dedão do pé. Mergulhamos tanto na toca do coelho que não conseguimos encontrar o caminho de volta, não conseguimos mais encontrar outros coelhos em suas tocas e até nos esquecemos de que estamos numa toca.
Platão anteviu isso ao criar sua metáfora da caverna na República: os habitantes da caverna estão, na verdade, com os olhos fixos em telas primitivas.
Em mundos distintos
Pode parecer estranho dizendo que eu, no Arizona, estaria mais conectado a alguém de Nova York se não nos conectássemos pelas redes sociais, preferindo nos ater às nossas vidas reais no mundo real e em nossas comunidades locais. Mas é exatamente isso o que estou querendo dizer.
O mundo natural e social com o qual meu corpo humano interage no Arizona é muito mais parecido com o mundo natural e social com o qual o corpo do meu semelhante interage em Nova York do que meu mundo virtual com o dele.
O mito do universo virtual comum foi destruído. Talvez a ideia de um mundo natural comum — como o criado pela teoria da lei natural — não seja um mito tão grande quanto se pensava.
As pessoas que acham que Trump venceu a eleição não são loucas. Elas só vivem num mundo virtual diferente do de muitos outros norte-americanos. E os apoiadores entusiasmados de Trump não são os únicos a viverem nessa realidade alternativa. Todos vivemos.
Muitas coisas são necessárias para que nossa frágil democracia constitucional norte-americana sobreviva: a melhora da educação cívica nas escolas, o redirecionamento do ensino superior para que ele busque a verdade objetiva, a reformulação do nossos sistema político-partidário e a melhora nas instituições de governo, entre outras. Além dessas, é fundamental que encontremos uma forma de resolver o problema “metade-metade”.
S. Adam Seagrave é diretor e professor na Arizona State University.