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Fim da desoneração

O PT agora esquece, mas os pobres são os mais prejudicados com o aumento do combustível

Quem ganha menos canaliza uma parcela maior de seu orçamento para custos de transporte e outros itens básicos, como alimentos e energia, em relação às famílias mais ricas
Quem ganha menos canaliza uma parcela maior de seu orçamento para custos de transporte e outros itens básicos, como alimentos e energia, em relação às famílias mais ricas (Foto: EFE/Antonio Lacerda)

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O governo Lula vai retomar a cobrança de tributos federais sobre os combustíveis, o que deve impactar em alta nos preços da gasolina e do etanol a partir de quarta-feira (1º). Em 2022, o governo Bolsonaro editou uma medida provisória reduzindo as alíquotas do PIS/Cofins sobre os combustíveis até o último dia 31 de dezembro. No início do governo Lula, a medida foi prorrogada até o fim de 2023, mas apenas para óleo diesel, biodiesel e GLP. Álcool e gasolina ficaram isentos somente até esta terça-feira (28). O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, defendeu que a volta imediata dos tributos é essencial para o equilíbrio das contas do governo federal — o que contraria as críticas feitas recentemente pelo próprio PT a esse tipo de política.

A ideia de retomar os impostos ganhou respaldo de analistas respeitados na área da economia, como Raquel Landim: “É um gasto alto, para subsidiar um combustível poluente que favorece a classe média. Esse não é um programa voltado para os pobres”, tuitou. Apesar disso, dados mundiais, inclusive do FMI, mostram que o aumento no preço dos combustíveis prejudica mais os pobres que os ricos.

Durante o governo Bolsonaro, o próprio Partido dos Trabalhadores (PT) afirmou que aumentos na gasolina representam “inflação para pobres, dividendos para ricos”. “Quem sofre com os sucessivos aumentos é o consumidor final que paga o preço da soma de tributos federais e estaduais, custos para aquisição e mistura obrigatória de etanol anidro, além dos custos e margens das companhias distribuidoras e dos revendedores”, publicou o PT em seu site oficial, em 2021.

“Esses sucessivos reajustes no preço do combustível aumentam os índices de inflação porque impactam nos preços de todas as mercadorias, que ficam muito mais caras e aprofundam ainda mais a crise social que atinge as famílias mais pobres, já bastante afetadas pelo desemprego e pela diminuição dos salários”, criticou o PT, um ano e meio atrás.

Em março do ano passado, o jornal esquerdista Hora do Povo também publicou uma reportagem afirmando que a “gasolina é mais cara para os mais pobres”. O texto acentua que, além de trocar o automóvel particular ou transporte público para a locomoção por bicicletas e cavalos, a alta dos combustíveis estava levando a população de uma cidade de Goiânia a deixar de comer carne e a voltar a usar lenha para cozinhar. “Famílias de menor renda acabam alterando as cestas de produtos”, analisou o economista e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Felipe Queiroz, para a publicação.

Segundo o economista, o aumento gera um efeito cascata, que afeta quem depende direta ou indiretamente dos combustíveis fósseis. “O combustível é um bem intermediário. Ou seja, aumenta o custo dos fretes, porque a maior parte do transporte brasileiro é feito sobre rodovias. Além dos fretes, aumenta o custo de produção de outros bens que são derivados de petróleo ou dependem dele. Por exemplo o custo dos alimentos, aumenta o preço dos fertilizantes. Além disso, aumenta diretamente o preço da passagem do transporte, então é todo um aumento em cadeia”, detalhou.

Efeito cascata na cesta básica 

Em um texto publicado no blog da editora esquerdista Boitempo, no ano passado, a assistente social Renata de Oliveira Cardoso compilou dados nacionais para mostrar o efeito cascata do preço dos combustíveis em itens da cesta básica. Com cerca de 65% do transporte de cargas no Brasil ocorrendo por rodovias, modalidade que também representa 90% do transporte de passageiros, “torna-se fácil compreender a relação entre o aumento do preço dos combustíveis e a inflação de produtos e serviços de transporte, pois parte do aumento dos preços dos combustíveis acaba sendo repassada ao consumidor, na expectativa de garantir os lucros dos produtores”.

De acordo com o IBGE, famílias que vivem com até cinco salários mínimos gastam 23,84% da renda com alimentação. A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) realizada em 2018 pelo Instituto mostrava gastos com transporte representando 18,1% do orçamento das famílias. Já alimentação e transporte contabilizavam, juntos, 35,6% do orçamento das famílias brasileiras.

“Quando direcionamos nosso olhar investigativo aos grupos de renda, identificamos que os mais pobres gastam 31% com alimentação e transporte enquanto os ricos gastam 23%. Se é verdade que os mais pobres gastam mais com transporte e alimentação, devemos considerar um movimento cruel da realidade econômica brasileira atual: a inflação dos alimentos”, reforça Cardoso.

“Os dados ora trabalhados nos mostram os impactos diferenciados do preço do combustível sobre as famílias brasileiras e elucidam a hipótese aqui anunciada: a inflação do combustível afeta, especialmente, a vida dos mais pobres em nosso país”, conclui.

Menos proteínas 

Nos Estados Unidos, onde a inflação atingiu 7,9% há um ano (maior índice desde 1982, inclusive superando o Brasil), as principais áreas de preocupação são moradia e combustível, que representam pelo menos metade dos gastos das famílias. Entre fevereiro de 2021 e de 2022, os custos com combustível aumentaram cerca de 40% no país. Já os salários dos horistas subiram cerca de 5% no período.

“Os que ganham menos canalizam uma parcela maior de seus orçamentos para custos de transporte e outros itens básicos, como alimentos e energia, em relação às famílias mais ricas”, analisa uma reportagem da CNBC. De acordo com a publicação, dados da Secretaria Federal de Estatísticas Trabalhistas dos EUA mostram que “gastos com gasolina como parcela das despesas anuais diminuem à medida que a renda cresce”.

Enquanto os custos da gasolina representavam 2% dos gastos totais para americanos com mais de US$ 200 mil anuais de renda, aqueles com renda de US$ 15 mil por ano gastaram 3,7% de seus orçamentos com gasolina em 2019 (foram tomados dados pré-pandemia, uma vez que após 2020 houve uma distorção no consumo de combustível).

A diferença parece insignificante, mas é quase o que famílias de baixa renda gastam com peixes, ovos, aves e carnes. “Em outras palavras, se as famílias de baixa renda pudessem gastar a mesma parcela em gasolina (e outros combustíveis) que as famílias de renda mais alta, as famílias de renda mais baixa poderiam dobrar sua ingestão dessas proteínas”, calcula Kent Smetters, economista da Universidade da Pensilvânia.

Subsídios no mundo 

De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), “na maioria dos países europeus, os preços mais altos da energia impõem um fardo ainda maior às famílias de baixa renda, porque gastam uma parcela maior de seu orçamento em eletricidade e gás”. O órgão defende que os governos não intervenham no preço dos combustíveis, mas direcione auxílios a famílias de baixa renda. “Na Estônia e no Reino Unido, por exemplo, o custo de vida dos 20% mais pobres das famílias deve aumentar cerca de duas vezes mais do que o dos mais ricos”, afirma o FMI.

O economista Adriano Pires, presidente do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CIEB), afirmou em uma entrevista à Exame, no ano passado, que os eventos mundiais de alta dos combustíveis têm sido combatidos com redução de impostos e programas sociais ao redor do planeta. “É um custo alto? É. Mas, no fim do dia, petróleo alto significa inflação, juros mais altos, e sempre quem sai prejudicado com isso é a população mais pobre”, acentuou.

Autora de livros na área e membro sênior da The Brookings Institution (que realiza pesquisas sobre política e desenvolvimento econômico), Isabel Sawhill reforça a tese de que aumentos nos preços de combustíveis afetam “negativamente os consumidores e a economia, e é especialmente prejudicial para as famílias de renda baixa e moderada”. “O aumento dos preços do gás produz um nível de dificuldade para um grupo que já sofre com altos níveis de desemprego e salários reais estagnados ou em declínio”, afirma.

Analisando o contexto americano, ela aponta que mesmo as famílias mais pobres costumam ter carro (por lá, 80% da população conta com pelo menos um veículo em casa). “É claro que, mesmo que eles não possuam carros, os preços mais altos da gasolina também podem afetar os passageiros do transporte coletivo, uma vez que os custos mais altos aparecem na caixa de tarifas, embora isso sem dúvida ocorra com mais atraso”, acrescenta.

Nos EUA, calcula Sawhill, cada dólar de aumento no preço do litro de combustível impacta em aumento de 2,7% na renda total de uma família que ganhe 20 mil dólares anuais e percorra cerca de 16 mil quilômetros por ano. Se, na teoria, essas altas encorajariam a população a buscar meios de transporte alternativos e mais econômicos, no curto prazo a opção acaba sendo “cortar outros gastos no orçamento familiar”.

“Como as famílias de baixa e média renda gastam a maior parte de sua renda, em média, no curtíssimo prazo, eles só podem escolher entre gastar menos em outros itens e se endividar ainda mais. Além disso, menos gastos em outros itens funcionam como impostos mais altos em desacelerar uma recuperação incipiente. Em outras palavras, os preços mais altos do gás drenam o poder de compra da economia. Isso significa que essas famílias são atingidas duas vezes: uma vez pelo impacto direto em seus orçamentos domésticos, mas uma segunda vez quando os preços mais altos retardam a recuperação econômica”, lamenta a especialista.

Para Sawhill, embora não haja como o governo interferir em questões externas que impactam nos preços, como distúrbios no Oriente Médio, é possível “amortecer esses efeitos”, por meio de medidas como “benefícios de seguro-desemprego, cortes de impostos sobre a folha de pagamento ou outra assistência às famílias de baixa renda”.

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