A homossexualidade deixou de ser considerada uma patologia, em 1992, quando a Associação de Psiquiatria dos Estados Unidos tomou a iniciativa de reclassificar a orientação homossexual como “distúrbio”, e não mais “doença”| Foto: Pixabay

Uma liminar concedida pela Justiça do Distrito Federal, determinando que o Conselho Federal de Psicologia (CFP) não proíba “o aprofundamento de estudos científicos relacionados à (re)orientação sexual” e nem impeça “os psicólogos de promoverem estudos ou atendimentos, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual”, vem sendo interpretada como uma liberação das terapias conhecidas popularmente como tentativas de “cura gay”, vetadas pelo CFP desde a década de 90.

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Embora essa interpretação seja questionável, já que a própria liminar ressalta que a homossexualidade não deve ser tratada como uma doença, a autora da ação que obteve a liminar, a psicóloga Rozângela Alves Justino, falava em cura. Em declarações públicas feitas em 2014, Rozângela disse que Resolução 1/99 do CFP que veta a colaboração de psicólogos “em eventos e serviços que proponham tratamento e cura da homossexualidade” era “discriminatória, preconceituosa, nazista”. 

A norma do CFP, no entanto, está alinhada com a postura de órgãos internacionais de saúde pública. Em 2012, por exemplo, a Associação Pan-Americana de Saúde, órgão regional da Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou uma nota oficial afirmando que “serviços que pretendem ‘curar’ pessoas com orientação sexual não-heterossexual sofrem de falta de justificativa médica, e representam uma séria ameaça à saúde e ao bem-estar das pessoas afetadas”. A Associação sugere que “as terapias de ‘conversão’ ou ‘reparativas’ e as clínicas que as oferecem devem ser denunciadas e sofrer as sanções cabíveis”. 

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Ciência 

Chamadas diversamente de terapias “reparativas”, de “reorientação” ou de “conversão” sexual, essas práticas tornaram-se menos comuns desde que a homossexualidade deixou de ser considerada uma patologia, em 1992, na culminação de um processo iniciado em 1973, quando a Associação de Psiquiatria dos Estados Unidos tomou a iniciativa de reclassificar a orientação homossexual como “distúrbio”, e não mais “doença”. Entre o período em que a homossexualidade ainda era considerada patológica, passando pelo fim dessa classificação e até o presente, diversas abordagens foram tentadas para operar a “reversão”. 

Alguma funciona? Em 2008 foi publicado, no periódico Journal of Marital and Family Therapy um artigo com o título “A Systematic Review of the Research Base on Sexual Reorientation Therapies” (”Uma Revisão Sistemática da Base de Pesquisas sobre Terapias de Reorientação Sexual”) , que analisou estudos sobre os efeitos desses tratamentos, realizados a partir de 1956 e até a década passada. 

Conclusão: "Homens e mulheres que buscam mudar comportamentos sexuais (...) devem ser informados de que a eficácia dessas terapias não foi provada, que a pesquisa sobre essas terapias é metodologicamente falha. Além disso, a teoria e a prática dessas terapias viola princípios de dignidade, competência e (...) responsabilidade social". 

Esse trabalho basicamente reafirmou o que já havia sido constatado mais de uma década antes, em 1994, quando o artigo “The Practice and Ethics of Sexual Orientation Conversion Therapy” (“A Prática e a Ética da Terapia de Conversão Sexual”), publicado pelo Journal of Consulting and Clinical Psychology, apontava que “não há evidência de que tais tratamentos sejam eficazes no que se propõem”. 

“Desculpas à comunidade gay” 

Isso não significa que não existem estudos sugerindo que a tentativa de “curar” a homossexualidade pode ser bem-sucedida. O problema é que esses trabalhos são uma minoria, têm baixa qualidade e estão repletos de problemas metodológicos, como basearem-se em amostras pequenas, terem pouca clareza sobre o que constitui “cura” – há uma diferença enorme, por exemplo, entre abstinência sexual e mudança de orientação – ou dependerem de entrevistas com supostos “ex-gays” que estão sob pressão social ou psicológica para mentir. 

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O mais perto que as terapias de reorientação sexual estiveram de conquistar alguma credibilidade científica foi em 2001, quando o eminente psiquiatra americano Robert Spitzer (1932-2015), principal responsável pela decisão de 1973 de classificar a homossexualidade como “distúrbio” e não mais “doença”, apresentou os resultados de entrevistas com 200 pacientes de terapia de reorientação sexual e concluiu que muitos deles haviam, sim, se convertido à heterossexualidade. Em 2012, no entanto, Spitzer retratou-se, reconheceu falhas graves no estudo e pediu que o artigo fosse removido da literatura científica. 

Na época da publicação original, a reputação de Spitzer havia dado peso e notoriedade ao artigo, mesmo diante das críticas de que sua amostra era viciada, por incluir ativistas do movimento “ex-gay” e depender, em muitos casos, de lembranças muito antigas dos entrevistados. Em 2002, outro estudo, de autoria de Ariel Shidlo e Michael Schroeder, baseado na experiência de 202 pacientes, concluiu que “a maioria não obteve mudança de orientação sexual, e muitos informaram ter associado as intervenções de conversão a efeitos deletérios”. 

Na carta em que se retratava pelo estudo, Siptzer reconhece suas falhas metodológicas e conclui dizendo que “devo desculpas à comunidade gay (...) e peço desculpas a qualquer pessoa gay que tenha perdido tempo e energia submetendo-se a algum tipo de terapia reparativa por acreditar que eu havia provado que a terapia reparativa funciona”. 

Dano para a juventude 

Uma cartilha publicada pela Academia de Pediatria dos Estados Unidos, e endossada por mais de dez outras entidades profissionais (incluindo a Associação de Psicólogos), informa que "tanto a heterossexualidade quanto a homossexualidade são expressões normais da sexualidade humana", e que esforços terapêuticos para mudar a orientação sexual humana "têm grave potencial de dano para a juventude, porque apresentam a visão de que a orientação sexual de jovens gays, lésbicas e bissexuais é uma doença ou distúrbio mental, e frequentemente tratam a incapacidade de mudar de orientação sexual como uma falha pessoal de caráter". 

A Associação de Psiquiatria dos EUA, por sua vez, afirma que "os riscos potenciais da terapia reparativa são grandes, incluindo depressão, ansiedade e comportamento autodestrutivo, já que o alinhamento do terapeuta com os preconceitos sociais contra a homossexualidade pode reforçar o ódio a si mesmo já sentido pelo paciente". 

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Um estudo de 2002 apontava que, quando o "bullying" e a perseguição por parte dos colegas era controlado, a taxa de suicídio e de outros comportamentos antissociais entre adolescentes homossexuais caía ao mesmo nível da população heterossexual da mesma idade. 

O consenso científico diz que, se os gays precisam de psicoterapia, é para aprender a lidar com a própria identidade sexual em meio a um ambiente hostil, e não para mudar de identidade -- mesmo porque essa segunda opção não existe cientificamente, e buscá-la traz riscos de dano, seja físico ou psicológico. 

Publicada no ano 2000, uma carta de posição da Associação de Psiquiatria dos EUA afirmava que “os praticantes éticos devem se abster de tentativas de mudar a orientação sexual dos indivíduos, tendo em mente o lema médico de ‘Acima de tudo, não causar o mal’”. 

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