Ao denunciar a depravação e a corrupção de seu maior inimigo, o cônsul Cícero proferiu uma frase simples que ecoaria pelos séculos, expressando a surpresa do homem diante da maldade e da injustiça ao seu redor. A frase - O tempora o mores! - pode ser traduzida como “Ah, que tempos! Ah, que costumes!”.
Foi tomado por essa surpresa ciceriana que testemunhei o governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel descendo de um helicóptero como se tivesse ganhado uma Copa do Mundo, celebrando não exatamente o fim do sequestro de um ônibus na Ponte Rio-Niterói, e sim a neutralização do sequestrador – alvejado por seis tiros de snipers.
Não, não vou aqui reforçar o coro daqueles que se sentem mais ultrajados pela morte do sequestrador do que pelo suplício de quase 40 pessoas que passaram quatro horas sob a ameaça de uma arma de brinquedo e de garrafas de gasolina muito reais.
O interessante, não do ponto de vista político, e sim do ponto de vista moral, é a comemoração meio macabra, meio sádica do governante em êxtase. É entender por que os punhos cerrados de Witzel e a sua expressão de moleque que acabou de marcar um gol na final do campeonato são recebidos com um furor igualmente extasiado por milhões de pessoas quer recorrem a argumentos hiperbólicos como “não era um ser humano; era um animal” e o já tradicional “bandido bom é bandido morto”.
Também muito interessantes, de uma perspectiva ciceriana, foram as reações das pessoas que ficaram presas no congestionamento que se formou na ponte por causa do sequestro. Elas jogaram cartas, empinaram pipa e até bateram uma bolinha – porque ninguém é de ferro. O que esse estado de normalidade diante de uma tragédia (palavra a qual nos acostumamos tanto que parece ter perdido toda a força) diz sobre nosso tempo e nossos costumes?
Um bandido, mas não um animal
Apesar de não ter antecedentes criminais, William Augusto da Silva, de 20 anos, era inquestionavelmente um bandido. Ou melhor, ele se tornou bandido quando, na manhã de terça-feira (20), entrou num ônibus munido de uma arma de brinquedo e um recipiente com combustível. Ao ameaçar pôr fogo no ônibus, ele pôs em risco a vida de 39 pessoas.
Era um bandido, sim, mas também era um ser humano. Ao que tudo indica, William tinha transtornos mentais. Seu ato tresloucado, portanto, não foi motivado por ideologia ou por falha de caráter. Foi motivado por um surto psicótico.
A polícia agiu corretamente ao disparar contra o homem que ameaçava submeter quase 40 pessoas a uma morte horrível. Ainda assim, vale a pena discutir a qualidade do treinamento por que passam os atiradores de elite da polícia carioca. Seis tiros para matar um homem que em várias ocasiões tirou o corpo inteiro para fora do ônibus, se expondo destemidamente? Mas isso é uma tecnicalidade, claro.
A questão aqui é outra, bem menos técnica e que exige uma mira precisa na própria alma: é moralmente aceitável e até louvável celebrar a morte de um homem, seja ele bandido ou não? A pergunta vale tanto para o governador do Rio de Janeiro quanto para o cidadão comum.
A resposta parece autoevidente: não, não é moralmente aceitável celebrar a morte de um homem. O problema é que, num país com mais de 60 mil assassinatos por ano, sem contar os casos de roubo e de estupro, me parece compreensível que a bússola moral de governantes e governados esteja um tanto quanto descalibrada. Dilema semelhante foi enfrentado pelas forças aliadas em Haia, quando do julgamento dos nazistas acusados de crimes contra a Humanidade.
Vivemos, no Brasil deste início de século XXI, num estado quase permanente de raiva, de revolta e, por consequência, de vingança e revanche. Odiamos os bandidos (e os políticos) e queremos que eles morram uma morte dolorosa e tão cruel quanto foram seus atos em vida. Queremos que eles sejam julgados pelo capeta e condenados ao sofrimento eterno. Ou seja, viramos todos um pouco discípulos daquela comicidade histriônica do finado Alborghetti.
Natural, pois, que demagogos e populistas se alimentem dessa irracionalidade – e que as reforcem com gestos de triunfo diante do corpo morto do bandido que é, sim, um ser humano, não um animal.
Este ambiente de animosidade é corroborado, ainda, pelo discurso ora permissivo ora conspiracionista da esquerda. De um lado estão aqueles que, por cegueira ideológica ou por uma visão inexplicavelmente colorida do mundo, insistem em não enxergar a epidemia de criminalidade e, quando a enxergam, propõem soluções que primam pelo humor involuntário – como os já caricaturais cursos de artesanato com garrafa pet e aulas de capoeira. Há ainda aqueles que, como o ex-deputado Jean Wyllys, sugerem a existência de um grande plano conservador ou fascista ou neoliberal capaz de forjar o sequestro de um ônibus a fim de aumentar a popularidade de um inimigo político.
Pipa, bola e baralho
Havia uma tragédia em potencial em andamento na Ponte Rio-Niterói. William estava munido de uma arma de brinquedo, mas na hora ninguém sabia disso. O que se sabia é que ele estava com recipientes com algum combustível inflamável e que, em surto, podia pôr fogo no veículo, submetendo quase quarenta pessoas a uma morte horrível.
Isso não impediu as pessoas que estavam no engarrafamento que se formou no acesso ao Rio de Janeiro de soltarem pipa, jogarem baralho e até baterem uma bolinha daquele jeito que só o brasileiro sabe. As imagens de gente tentando transformar o caos em algo normalíssimo rodaram as redes sociais, gerando risadas ao mesmo tempo nervosas e indignadas.
Mas o que é menos pior: jogar baralho com os amigos enquanto a vida de 39 pessoas pende nas mãos de um louco ou ficar dentro do carro reclamando para, logo depois, comemorar não a morte do sequestrador nem a salvação dos reféns, e sim a liberação da pista?
Difícil dizer. A busca pelo prazer mesmo em meio a uma tragédia em potencial é sintomática do nosso tempo e também do lugar onde tudo ocorreu. Que hedonismo é esse que não pode esperar nem o desfecho de um sequestro? Que tipo de prazer é esse que as pessoas buscam concentradas na bola, nas cartas e na pipa, ignorando propositadamente a mortandade possível de seus semelhantes?
Por outro lado, o que é mais urgente do que o sofrimento de quarenta reféns na mão de um louco? O que justifica a impaciência do motorista que buzina numa situação dessas, tornando o caos ainda mais caótico?
A resposta a essas perguntas talvez esteja numa palavra que, de tanto ser usada inapropriadamente, acabou perdendo boa parte do seu sentido: empatia. Isto é, a capacidade de se colocar no lugar do outro, de sofrer como o outro, de se alegrar com o outro, de entender as motivações do outro, de se apiedar do outro e, se for o caso, de perdoar e amar o outro.
Me refiro, aqui, à empatia que falta ao motorista impaciente e aos entediados que jogavam truco. E também ao governador Witzel e todos aqueles que celebraram a morte de um ser humano, por mais que ele fosse doente ou bandido – ou as duas coisas ao mesmo tempo. Falo da empatia que está presente nos discursos de coaches e nos posts piegas das redes sociais, mas que está ausente do cotidiano.
Da empatia que faltou a Cícero, uma vez que o senador proferiu sua famosa frase num discurso em que pedia a execução de seu inimigo, Catilina.
Se bem que essa era a moral do tempo dele. Uma moral cruel, primitiva e bárbara – embora o termo seja, reconheço, historicamente equivocado. A moral de nosso tempo, contudo, da nossa Civilização, é outra e, até prova em contrário, preza pela boa convivência entre os homens.
Se fôssemos minimamente nobres em nossas intenções e governados por pessoas razoavelmente esclarecidas, era de se imaginar um Witzel não triunfante, e sim indignado com a normalidade da barbárie em que se transformou o Rio de Janeiro.
“O tempora o mores, mermão!”, diria ele, entrando para a história como vulto, não caricatura.
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