Paul Cantor é o maior especialista em Shakespeare dos Estados Unidos. Seus livros, sobretudo sobre as peças romanas, são os melhores estudos que temos porque eles unem não apenas a visão literária como também a da filosofia política. Isto é, quando os personagens falam na peças, Cantor pensa na situação política e no caráter deles. Ele trata escritores e artistas de todos os tipos como pensadores políticos, sem dúvida acatando a ideia aristotélica de que todos somos animais políticos.
Cantor acha que os norte-americanos não são diferentes. Nas últimas duas décadas, ele voltou sua atenção para a cultura popular, aplicando o que aprendeu com os clássicos ao entretenimento contemporâneo. Agora ele publica o terceiro de uma série de livros sobre nosso entretenimento popular, insistindo que ele serve tanto para esclarecer o que está acontecendo nos Estados Unidos quanto qualquer outra coisa por aí. Pop Culture and the Dark Side of the American Dream: Con Men, Gangsters, Drug Lords, and Zombies [Cultura pop e o lado negro do sonho norte-americano: trapaceiros, gangster, traficantes e zumbis] é sua melhor obra sobre o assunto, até porque ele fala das coisas que mais ama entre as obras que admira.
Em cinco capítulos, Cantor o acompanha num passeio pela história da Guerra Civil norte-americana, começando com Huck Finn de Mark Twain, passando pela carreira de W. C. Fields como comediante na Broadway e na Hollywood do entreguerras, depois O Poderoso Chefão de Francis Ford Coppola e Mario Puzo, a Guerra do Vietnã, até as séries pós-11/9, como Breaking Bad e The Walking Dead. As guerras norte-americanos cultivaram uma sensibilidade exagerada em alguns dos mais bem-sucedidos ficcionistas do país – e certa disposição temporária em parte da audiência de aceitar a ideia de que a vida é trágica.
Heróis trágicos
Essa ideia é fundamental para o livro de Cantor, que defende que o povo norte-americano tem o direito de admirar os heróis trágicos e que ele não deve ter medo de expressar isso. Aqui dá para ver como a obra de Cantor sobre Shakespeare é útil. Mas Cantor, professor de inglês na Universidade da Virgínia, não é apenas um acadêmico aprovando o gosto popular na esperança de educá-lo – ele é também um homem do povo repreendendo os acadêmicos por serem esnobes. Cantor argumenta que a tragédia grega, assim como as tragédias de Shakespeare, fazia parte da cultura popular da época. Elas não foram criadas para o uso exclusivo das classes abastadas.
Era assim em Atenas e Londres e é assim nos Estados Unidos. Algumas das histórias assustadoras que fazem sucesso em nosso tempo tratam de temas surpreendentemente sérios. Elas são reflexões sobre o que está acontecendo nos Estados Unidos, feitas sem a hipocrisia do nosso debate público. Elas merecem análises inteligentes e cuidadosas. Ninguém que faça filmes ou séries hoje é tão bom quanto Shakespeare, admite Cantor, mas eles tampouco são desprezíveis – e nossos escritores mais talentosos estão muito mais próximos de Shakespeare do que nossos jornalistas e acadêmicos. Cantor talvez pertença à segunda categoria, mas ele se diverte com o passatempo norte-americano de trair sua própria classe se interessando pelo bem maior que corresponde ao que as pessoas adoram.
Cantor vê tragédia e popularidade combinadas no Sonho Americano. O trabalho duro cedo ou tarde afetará sua obra e você vai, mais cedo do que imagina, atingir seu objetivo, que é uma vida de classe média: casamento, filhos e uns dois carros na garagem, além de saber que você faz parte da maior potência do mundo, ou melhor, da história. Fazer parte da classe média significa, acima de tudo, ser um trabalhador respeitável e amar sinceramente o país. E claro que significa ainda ser obediente às leis. Não é um mau negócio, e é por isso que muitas pessoas, incluindo Cantor, desejam e conseguem viver essa vida.
Quando não dá certo, nem sempre é porque algumas pessoas são fracas demais – algumas pessoas, por mais fortes que sejam, podem simplesmente desprezar o Sonho Americano e acabam por se revelar vilãs. Para os norte-americanos é fácil e não de todo desagradável assistir a essas histórias sobre os marginais, os oprimidos, os azarados e as vítimas de catástrofes. O sofrimento é um espetáculo muito atraente, como sabemos por causa da TV, e é ainda uma oportunidade para que ajamos como seres morais criados por um Deus amoroso. Ali estão os pobres e arruinados; somos a nação mais caridosa do planeta porque não queremos ter o mesmo destino deles.
Mas a vida não é apenas moralidade e compaixão. Pessoas normais, como eu e você, às vezes sentimos raiva e somos desrespeitosos. Na verdade, se a Internet serve como prova de alguma coisa, há muito ódio dentro de nós. O comportamento das pessoas na Internet indica certo descontentamento com nosso Sonho Americano, uma suspeita de que ele não seja tão real como queríamos que fosse. Talvez precisemos nos esforçar mais para alcançá-lo, e é por isso que temos eventos religiosos, reformas políticas, disputas pelos direitos civis e até uma Guerra Civil. Somos capazes de sermos menos do que comuns – e até de nos tornarmos seres violentos.
Algo além da vida de classe média
Aqui e ali somos tentados a enxergarmos para além da nossa condição social e pensarmos no que mais o ser humano pode alcançar além da vida de classe média. É por isso, explica Cantor, que todos amávamos filmes de faroeste e hoje, privados deles, estamos obcecados por histórias medievais que se revelam violentas ou pelo cotidiano da aristocracia inglesa. Nestes casos, vemos pessoas de fora do nosso ambiente e para além da nossa moralidade. Não são pessoas decentes e produtivas – mas as paixões delas têm um quê de esplendor, já que no amor e na crueldade elas são muito menos contidas do que nós somos.
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Vemos isso em nossas próprias celebridades, nossos representantes do heroísmo trágico – elas vivem, às vezes, na decadência dos imperadores romanos, eles próprios grandes admiradores dos heróis trágicos – e elas não raro morrem de formas assustadoras. Como dissemos, o sofrimento é um grande espetáculo. Cantor se atém aos vilões das nossas histórias porque, em relação a eles, estamos dispostos a aceitar a tragédia – a tentativa, em nome do povo, de se sobrepor à condição humana e se tornar uma divindade, o que geralmente os leva a agirem como monstros. Como afirma Cantor, é normal, em nosso tempo, que os vilões sejam protagonistas.
Estamos prontos, portanto, para reencenar a tragédia, seja ela grega ou shakespeariana. Cantor nos guia discretamente à medida que nos aproximamos da tragédia. Embora a vida tenha se tornado infinitamente mais civilizada e os Estados Unidos tenham se tornado muito mais poderosos do que na época de Mark Twain, queremos cada vez mais ver o apocalipse pessoal, nacional ou mundial na tela, e com uma impressionante regularidade — pense no sucesso de The Walking Dead, que é um retorno ao faroeste, como diz Cantor. Mas essa não é mais a história norte-americana por excelência, e sim uma história sobre o fim dos Estados Unidos. Não conseguimos evitar, sabe, nem quando nos esforçamos ao máximo para nos superarmos.
Heróis, mas não caridade
O lado negro do sonho americano gera heróis, mas não caridade – não há mais heróis cristãos, e sim heróis trágicos, muito mais interessados em vencer seus inimigos, em se autoafirmarem, do que em salvarem suas almas e as almas dos demais. Esses novos heróis sombrios são a conclusão necessária de que vivemos, por muito tempo, no mundo que Marshall McLuhan chamava de “televisual”. McLuhan dizia que estávamos tão submersos em fantasia que nos transformamos numa fantasia – que chamamos de redes sociais, nas quais eu e você e todo mundo podemos tentar nos tornar celebridades e nos vender aos outros, por assim dizer.
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Mas o mundo das celebridades é necessariamente antidemocrático. Se todos somos estátuas em pedestais, quem está olhando para nós? Essa contradição deu origem ao mundo atual que destrói celebridades, seja pela “cultura do cancelamento”, seja pelos movimentos #metoo e #timesup, ou qualquer um desses meios da moda de nos vingarmos de fantasias que se provaram falsas. Isso foi antevisto pela tragédia, mas também pelo lado negro do sonho americano. Se você se acha capaz de controlar o acaso por meio da produção de fantasias que leva a um futuro no qual todos se espelham em seus ídolos, você só estará criando o caos no qual as pessoas se revoltam contra seus ídolos. O mundo das séries franqueadas, dos universos e dos conteúdos “multiplataforma” é uma tentativa desesperada do mundo do entretenimento de controlar as mudanças, isto é, de controlar o acaso. De prever o que amaremos ou odiaremos na próxima temporada ou próxima geração. Nós, contudo, estamos nos rebelando.
Há muito o que aprender com o livro de Cantor sobre essa nova situação. O livro confere uma urgência que não costumamos atribuir às críticas de cinema e aos estudos acadêmicos. Aqui, a força intelectual e moral de uma educação liberal se faz sentir. Não que queiramos novos heróis sombrios e não reluzentes. Ao contrário, os heróis sombrios são um padrão que nossos escritores descobriram, embora sem querer, para nossas prováveis ações futuras. Esses personagens têm fins trágicos, então por definição eles não podem nos guiar em nossa rebelião contra as celebridades e as instituições que insistem em nos encorajar a termos sonhos grandes e a trabalhar para tornarmos esses sonhos realidade. O que nossos escritores e seus melhores críticos, como Cantor, querem é que deixemos de sonhar.
A tragédia se diz mais realista do que o fim hollywoodiano tradicional. Ela é mais realista quanto à condição humana, quanto à nossa moralidade, nossos limites e sofrimento. Quando a crise atinge os Estados Unidos, essa ideia se torna novamente plausível. Vemos tragédias por todos os lugares e nossa reação não é das melhores — há revolta em todos os lugares, sempre que expressamos nossos sentimentos. Podemos aprender muito sobre porções do caráter nacional que geralmente evitamos mencionar e sobre como lidar com as crises se deixarmos de lado as imagens brilhantes em nossas telas e se recorrermos às pessoas inteligentes por trás delas. Cantor é um guia raro nessa aventura política e intelectual diferente.
Titus Techera apresenta o podcast de cinema da American Cinema Foundation.
©2019 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês.