Há alguns dias, enquanto quatro juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) participavam em Nova York de um evento promovido pelo think tank Lide (financiado por João Doria), cujo tema era a discussão sobre os destinos da democracia brasileira, uma moça bem apessoada, que proferia um sotaque portunhol e afirmava ser mexicana, resolveu questionar o senhor Gilmar Mendes sobre se “o crime compensa” no Brasil. A princípio encantado com a delicadeza da dama, o magistrado se espantou com a pergunta tão incisiva e balbuciou uma negativa tão hesitante que parecia que o distinto jurista estava prestes a ter alguma espécie de paralisia momentânea.
A hesitação de Gilmar Mendes faz parte do atual desespero jurídico que o Supremo vive ao confrontar, com todos os meios possíveis, dentro e fora da Constituição Brasileira, os seus inimigos maiores do momento – no caso, os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (e suas variantes).
Esse desespero tem raiz nas próprias atitudes de Mendes, hoje considerado pelos próprios pares como o grande estrategista do STF. Ele delega para os outros três juízes que o acompanhavam no evento da Lide a função de serem a vanguarda do exército responsável por combater aquilo que eles denominaram como “a revolução judiciária”, iniciada em meados da década de 1990.
A trinca de executores é composta por Luís Roberto Barroso, José Antonio Dias Toffoli – e Alexandre de Moraes, sobre quem falaremos em breve com mais detalhes. Junto com o grande titereiro que é Mendes, eles acreditam, em sintonia com os outros companheiros de plenário, que a tal da “revolução judiciária” se acentuou com a Operação Lava Jato, liderada pelo ex-juiz Sergio Moro e por um grupo de promotores do Ministro Público Federal do Paraná e a qual, entre outros feitos polêmicos, prendeu não só a elite das empreiteiras (a Odebrecht foi apenas a cereja do bolo), mas também o ex-presidente, agora reeleito, Luís Inácio Lula da Silva.
De acordo com o teórico Christian Lynch (que usa o termo “revolução judiciarista” em vez de “judiciária”), o aspecto revolucionário da Lava Jato, segundo Mendes & Cia., é que ela expandiu os seus poderes discricionários na hora de acusar, investigar e julgar, tornando-se assim um tribunal paralelo cuja meta principal era a realização da justiça sem passar por aquilo que chamam de “devido processo legal”. A consequência disso no mundo do Direito é que a ordem constitucional foi subvertida, impedindo que o réu perdesse a garantia de se defender do crime acusado em todas as etapas determinadas pelos respectivos códigos cível, penal e processual. Já a consequência prática é que a Lava Jato desvelou o modo como o mecanismo da corrupção transformou o Brasil em um gigantesco tumor, afetando todos os estratos da vida cotidiana em uma metástase incontrolável.
Para Mendes & Cia., a Lava Jato foi também a grande responsável para o surgimento de “populistas perigosos” como Jair Bolsonaro, que, sem dúvida nenhuma, foi o principal beneficiário da “revolução judiciária”. Portanto, era fundamental que o STF iniciasse uma “contrarrevolução” e assim restaurasse a ordem que estava prestes a ser corroída para sempre. Pouco importa que, no passado recente, o mesmo Supremo tenha aprovado, quase por unanimidade, as decisões de Sergio Moro, chamando atenção para a excelência técnica do ex-juiz na hora de manejá-las. Mendes convencera seus pares que aquilo fora um erro quase mortal – e que era hora de recuperar o prumo no mundo jurídico.
Esse cenário é essencial para compreender as ações que Alexandre de Moraes tomaria a respeito daquilo que seria apelidado de “inquérito do fim do mundo” ou “inquérito das fake news”, o instrumento cirúrgico criado por Dias Toffoli quando este era presidente do STF para impedir a divulgação de matérias jornalísticas desfavoráveis a membros do tribunal (especialmente o próprio Toffoli, alvo de uma reportagem acusatória da Revista Crusoé).
No livro Os Onze, de Felipe Recondo e Luiz Weber, sabemos que Moraes foi indicado como relator do inquérito porque, segundo o presidente do Supremo, tinha experiência com o assunto “redes sociais” ao impedir a disseminação criminosa de conversas privadas da então primeira dama Marcela Temer quando foi secretário estadual de Segurança de São Paulo. Foi também esse fato que o favoreceu a ser eleito pelo seu padrinho, o presidente Michel Temer, para ser juiz do STF – o sonho de todo jurista brasileiro.
Até então, Alexandre de Moraes era considerado um bom constitucionalista, um bom professor de Direito e um promotor de Justiça agressivo, mas também um negociador implacável, especialmente quando teve de lidar com o Primeiro Comando da Capital, o PCC, durante a sua passagem na Secretaria de Segurança. Exceto por algumas declarações de plágio feitas por seus oponentes (nunca comprovadas), seu prestígio na área jurídica é inegável.
Contudo, suas decisões mais recentes no STF mostram também que ele está possuído (sim, a palavra é esta) por um espectro que orienta suas liminares judiciais e sua visão de mundo, consciente ou inconscientemente. Trata-se da sombra do jurista alemão e filósofo político Carl Schmitt, nascido em 1888 e falecido em 1985.
A referência a este nome é polêmica, sem dúvida – e por dois motivos, aparentemente paradoxais. O primeiro é que Schmitt era defensor do Partido Nazista e um notório antissemita (mesmo depois da derrota da Alemanha em 1945). O segundo é que, apesar de todas essas credenciais extremamente negativas, ele ainda é estudado como um dos maiores constitucionalistas que já existiu, influenciando tanto a esquerda (por meio da obra de Giorgio Agamben) como a direita (vejam os livros de Adrian Vermeule), o resto do mundo (os escritos do francês Alain de Benoist e do russo Alexander Dugin) e a elite intelectual brasileira (Sergio Buarque de Holanda citou Schmitt diversas vezes nas primeiras edições de Raízes do Brasil e as doutrinas do alemão moldaram Oliveira Vianna e Francisco Campos na redação da Constituinte que embasaria o surgimento do Estado Novo de Getúlio Vargas em 1937).
Por que o fascínio por esse personagem tão controverso? Poderíamos citar os clichês de sempre – os de que ele foi o criador do termo “estado de exceção”; o divulgador da dinâmica “amigo-inimigo” como fundamento de toda atividade política; e que a sua destreza técnica na hora de definir conceitos jurídicos é admirável. Mas a verdade da sua filosofia política (geralmente soterrada pela sua ciência do direito, que não nos interessa aqui) pode ser resumida em três pontos principais e que poucos repararam ao analisar seus escritos porque eles estão interligados – mostrando, portanto, a coerência assustadora da sua obra.
O primeiro ponto é que Carl Schmitt é uma espécie de sucessor moderno de Thomas Hobbes, o autor do clássico "Leviatã" (1651). Indo muito além da distinção entre amizade e inimizade, ambos são filósofos políticos que acreditam que o ser humano é intrinsecamente perverso – e, por isso, o que eles mais temem não é apenas o medo da morte e sim sobretudo o medo da morte violenta, segundo a observação perspicaz de Leo Strauss. Como não há mais um Deus que guia o Bem das ações humanas (o summum bonum), o que temos é um Mal Supremo (summum malum) a ser controlado por uma violência reguladora que precisa ou da coerção das leis (via o Estado) ou da punição judicial e militar (por meio de leis de exceção ou de uma guerra global entre os países). A conclusão é evidente: a política só existe de fato se for subordinada a uma religião estatal que reafirme a sua autoridade perante a consciência individual do cidadão. Fora desse domínio, não há mais nada, exceto caos e destruição.
Isso nos leva ao segundo ponto, que é a ambiguidade proposital que Schmitt instituiu no vocábulo jurídico, político e filosófico a respeito das diferenças entre autoritarismo e totalitarismo. Segundo o seu próprio ponto de vista, ele se via como um defensor da autoridade do Estado em tempos de tormenta ideológica; Schmitt achava que a República de Weimar social-democrata dos anos 1920 era demasiadamente permissiva com seus oponentes comunistas e fascistas – e, como o liberalismo defendido pelo regime era uma ficção institucional que negava a todo custo a dinâmica “amigo-inimigo”, ele seria também incapaz de lidar com o Mal Supremo que sempre fundamentou a sociedade. Se o Estado fosse autoritário para impor a ordem necessária, não havia problema algum nisso – daí o seu elogio a Adolf Hitler, um dos principais motivos para a ascensão popular (e tragicamente democrática) do tirano em 1933. O xis da questão é que Schmitt também acreditava que, para impor a autoridade do Estado, a submissão do cidadão deveria ser total, completa e irrestrita; portanto, a política deveria perpassar todos os estratos da vida cotidiana, inclusive o individual. Neste aspecto, não há exagero afirmar que Schmitt é pouco tímido ao fazer a passagem completa que leva do autoritarismo ao totalitarismo.
Essa ambiguidade conceitual inverte por completo o laço que foi a base de qualquer sociedade sadia, de acordo com a filosofia clássica defendida por Platão, Aristóteles e Santo Agostinho: o de que as relações humanas são feitas por meio da philia, da amizade entre os homens e, sobretudo, entre o ser humano e Deus.
Eis o terceiro ponto que nos perturba ao ler a obra de Schmitt, mas jamais o menos importante. O que ele propõe então é uma negação daquilo que Iris Murdoch chamava de “a soberania do Bem”, na qual a sociedade conseguiria reparar de forma orgânica todos os traumas vindos das ideologias homicidas que dominaram a História, pois a natureza humana em si é capaz de atos benevolentes na mesma medida em que ela é responsável por perversidades inimagináveis. Essa “tensão” simultânea entre uma alma que se abre ao mistério da transcendência e a que está fechada diante das exigências da realidade é o que permite a existência concreta daquela virtude do meio-termo e da prudência, conhecida também pelo nome de “justiça”.
A possessão de Alexandre de Moraes pelo espectro de Carl Schmitt não é algo explícito, apesar do alemão ter sido citado pelo brasileiro em um artigo escrito em 1998 (intitulado “Controle externo do Poder Judiciário – Inconstitucionalidade”) – o que significa que ele tem algum conhecimento do assunto. Mas é de se perguntar se não há, entre os dois, uma convergência de intenções. Obviamente, não se trata de classificar o jurista do STF na famosa gavetinha da reductio ad hitlerium que os progressistas sempre praticam ao apelarem para o dispositivo (igualmente schmittiano, por sinal) de chamarem assim os seus inimigos na posição de embate ideológico. Contudo, em um país como o Brasil, onde, se não há um totalitarismo político nas instituições originadas pelo pacto da Nova República, há sem dúvida um totalitarismo cultural entre as elites intelectuais e políticas, cujo desejo maior é controlar cada detalhe da vida do cidadão, especialmente como este vê a si mesmo e aos seus próximos. É de se perguntar se Alexandre de Moraes não comete o mesmo erro de Schmitt ao fazer a travessia do autoritarismo para algo muito pior.
As provas disso são abundantes: cerceamento da liberdade de expressão, proibição de informação, bloqueio imediato de contas, prisões feitas a torto e direito, suspensão de passaportes – tudo isso realizado sem o mesmo “devido processo legal” que a “revolução judiciária” praticava no auge do prestígio da Operação Lava Jato entre a sociedade brasileira, contra a qual o STF alega hoje combater com unhas e dentes. O célebre “inquérito do fim do mundo”, por exemplo, foi batizado justamente dessa maneira porque ele não tem um prazo para terminar – condição básica de qualquer processo que precisa prescrever para assim a máquina do poder judiciário não se transformar em um moto-perpétuo e descambar no “justiçamento”.
Na prática, mesmo com o fetiche que a elite jurídica tem pela Constituição de 1988, já vivemos em um estado de exceção há muito tempo, onde todos os dias ocorre a traição da democracia. O STF age como uma versão pós-moderna do que era o Poder Moderador no Império (representado na figura de D. Pedro II), na República Velha (a oligarquia entre os governadores paulistas e mineiros), no Estado Novo (simbolizado por Getúlio Vargas), na Ditadura das décadas de 1960 e 1970 (praticado pelo Exército) e que ficou meio perdido com a Nova República. Neste vácuo de poder, os juízes resolveram tomar para si esse papel de mediador de conflitos, judicializando a política de tal forma que a técnica da lei substituiu a consciência moral do legislador sobre o que significa de fato a justiça.
Aqui, a presença assombrada de Carl Schmitt caiu como uma luva na mentalidade dos magistrados do STF. Com os atritos políticos a crescerem desde as manifestações populares de 2013 e as sucessivas vitórias da Lava Jato a partir de 2015, além do impeachment de Dilma Rousseff em 2016, o Supremo não teve outra alternativa exceto assumir de uma vez por todas algo que Schmitt sempre adorava se vangloriar em seus escritos: o de ser um katechon, o poder que freia a vinda do Anticristo, segundo a terminologia de São Paulo na Segunda Epístola dos Tessalonicenses.
A terminologia apocalíptica é apropriada para os nossos tempos ásperos, apesar da aparente higiene técnica das medidas jurídicas proferidas por Alexandre de Moraes e seus companheiros. Cada facção política que atua decisivamente na arena pública brasileira tem algum componente escatológico (de revelação das primeiras e últimas coisas). Desde o bolsonarismo, que se prepara para a intervenção militar a qual salvará o seu líder providencial da infâmia absoluta, até o petismo, com seu discurso messiânico baseado em um caudilho metalúrgico que agora é também uma vítima ressurrecta, passando pela casta intelectual, absolutamente convencida de que a inteligência é a única maneira possível de controlar a dinâmica imprevisível da ação humana – todos lutam para serem ora os apocalípticos que dominarão a sociedade, ora os “bestializados” que assistem a tudo impassíveis, sem saberem o que fazer e sem saberem o que aconteceu diante dos seus olhos.
Na ânsia de ser o novo Poder Moderador, o STF acredita fazer o papel do katechon, mas no fim acaba sendo mais um responsável pela “bestialização” da república brasileira. Porém, isto não nos impede de admitir que, assim como aconteceu com Carl Schmitt na conturbada República de Weimar, ao verificar a periculosidade dos comunistas e dos fascistas, os inimigos que o Supremo combate são reais – e mortíferos. Pois, de fato, houve ataques contra a democracia perpetrados por influenciadores bolsonaristas; ocorreu a disseminação de notícias falsas que levaram à morte de milhares de pessoas durante uma pandemia; havia um presidente da República que negligenciou o cuidado com uma doença que ninguém sabia como tratar corretamente; e, sim, declarações absurdas foram ditas sem nenhum pudor e que atentaram não só contra a vida e a honra dos membros do Supremo, mas sobretudo contra a de seus familiares.
Nada disso pode ser tratado como se fosse algo normal, pois um dos princípios não-escritos da democracia é que ela não é um pacto suicida – e que a liberdade precisa de um mínimo de ordem e de hierarquia para prosperar. Entretanto, para combater a tão odiada “revolução judiciária” e o repugnante populismo bolsonarista, o STF teve de se unir também com uma outra parte do Anticristo – o apocalipse bestial do PT. Afinal de contas, de todas as ideologias políticas dominantes no Brasil, o petismo é a que mais se aproxima da religião estatal defendida por Schmitt. Perto dele, o bolsonarismo é uma paródia de culto ecumênico no qual, como mostraram os últimos dias, seus integrantes mais fervorosos cantam hinos diante de um pneu. O perigo da aliança dos juízes da Corte Suprema com o Partido dos Trabalhadores está no fundamento perverso do discurso de ambas as instituições: trata-se de um “nós versus eles” que descambará inevitavelmente para uma tensão entre “eleitos” e “não-eleitos”, os togados e os não-togados, a qual levará o próprio STF, obcecado em ser o nosso katechon tupiniquim, a decidir se vai lutar pela sua própria sobrevivência como um verdadeiro tribunal de justiça ou se abraçará de vez a função diminuta de ser somente um jardim belo, frio e geométrico, concebido para abrigar estátuas com vendas nos seus olhos.
Este impasse não resultou apenas em um desespero jurídico do Supremo sobre o que fazer com as leis ou com a própria noção do que significa ser justo, como revelou a resposta balbuciante do senhor Gilmar Mendes à senhorita mexicana que apenas lhe perguntou se o crime compensa no Brasil. Resultou sobretudo no desespero espiritual de uma elite a qual, ao se espelhar direta ou indiretamente em um filósofo macabro como Carl Schmitt – responsável por romper com toda a “soberania do Bem”, na intenção de impedir o caos no mundo –, apenas mostra que sempre está errada em tudo o que importa para a nossa existência.
Martim Vasques da Cunha é autor de Um Democrata do Direito (Metalivros, 2021) e coordenador das obras completas de Mario Vieira de Mello, publicadas pela É Realizações.
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