Em 2009 o mundo e o Brasil assistiram aos Estados Unidos elegerem seu primeiro presidente negro, Barack Obama. O que poucos sabem, no entanto, é que nós já tivemos um presidente negro muito antes disso ser modinha. E o que menos ainda sabem é que, muito antes de bolsonaristas e lulistas pautarem os rumos da política brasileira, já tivemos outro político populista cujos seguidores tiveram influência marcante no cenário nacional: os “nilistas”, nome dado já na época aos fervorosos apoiadores de Nilo Peçanha.
Nascido em 2 de outubro de 1867 numa família pobre de Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, Nilo era filho de um padeiro dono de um sítio no distrito do Morro do Coco e de uma descendente de políticos tradicionais da região. Segundo dizia, foi criado à base de “pão dormido e paçoca”, e sua origem humilde fez com que ao longo de sua juventude e por boa parte de sua carreira política tenha sido alvo de charges e piadas a respeito tanto de sua cor como sua origem pobre; não foram poucas as vezes em que se referiram a ele como “o mestiço do Morro do Coco”.
A despeito de suas dificuldades e dos preconceitos que sofreu, teve uma carreira meteórica na política, que fizeram com que Gilberto Freyre o comparasse aos jogadores mulatos do futebol brasileiro: “o nosso estilo de jogar exprime o mesmo mulatismo de que Nilo Peçanha foi até hoje a melhor afirmação na arte política”. “Mulatismo” esse que Nilo jamais ostentou, e que até mesmo procurou, quando não ocultar, evitar abordar, já que o contexto social do Brasil da época jamais veria com bons olhos um negro ocupando cargos públicos.
Carreira política
Depois de se formar nas Faculdades de Direito de São Paulo e Recife, voltou para sua terra natal, onde se casou com uma descendente de família aristocrática da região, o que causou grande escândalo na época e obrigou-a a fugir de casa. Entrou para a política defendendo fervorosamente primeiro a causa abolicionista e, depois, a causa republicana, sendo eleito como representante do Rio de Janeiro para a Assembleia Constituinte de 1890 pelo Partido Republicano.
Quando o presidente Deodoro da Fonseca fechou o Congresso, no ano seguinte, lutou pelo seu afastamento, apoiando seu sucessor, Floriano Peixoto. Anos mais tarde foi acusado de fazer parte de uma conspiração que atentou contra a vida do presidente Prudente de Morais, o que o afastou brevemente da vida política até a concessão de uma anistia.
Depois de passagens pelo Senado, acabou atingindo o cargo de Presidente do Estado, equivalente ao governador dos dias de hoje, cargo no qual permaneceu até 1906. Sua administração foi considerada impecável, e foi durante ela que o Palácio do Ingá passou a ser a sede do governo do estado, com a volta da capital fluminense para Niterói (que tinha sido transferida para Petrópolis desde a Revolta da Armada, em 1893). Procurou recuperar economicamente o estado, que estava passando por uma situação de penúria desde a perda do status de grande produtor de café do país para São Paulo.
Sua popularidade foi tamanha que começou assim a ser formado um primeiro esboço do movimento popular que viria mais tarde a ser conhecido como “nilismo”, uma maneira nova para a época de fazer política, com um apelo mais populista, procurando se distanciar das antigas oligarquias que até então conduziam as finanças do estado e tinham levado ele ao caos econômico devido às crises relacionadas ao café.
Nilo era figura fácil nos bares e lojas do Rio de Janeiro, e usava seus dons retóricos para discursar nas praças da cidade. Uma vez no poder, procurou montar uma verdadeira máquina política, eliminando de maneira ardilosa seus opositores, trazendo-os para o seu lado, sempre que possível, ou coagindo-os se necessário.
Chegada à presidência
Com sua popularidade não foi difícil ser eleito vice-presidente, nas eleições de 1906, que levaram Afonso Pena ao cargo máximo do executivo brasileiro. Na época, vice-presidentes ainda eram eleitos separadamente dos presidentes, e Peçanha obteve a esmagadora maioria de 272.529 votos, contra 618 de seu rival, Alfredo Varela.
Três anos depois, com a morte inesperada de Pena, Nilo viu-se alçado à presidência. Perguntado sobre o que pautaria sua maneira de governar, respondeu: “farei um governo de paz e amor”, o que acabaria por tornar uma espécie de slogan de sua carreira política.
Durante seu curto mandato, tentou modernizar o país e realizar medidas importantes: sua amizade com o marechal Rondon motivou a criação do Serviço de Proteção aos Índios, que se tornaria a FUNAI, e instalou em sua cidade natal a primeira Escola de Aprendizes Artífices, que futuramente daria origem aos atuais Centros Federais de Educação Tecnológica, como forma de inserir no mercado de trabalho a mão-de-obra desempregada com fim da escravidão. Em duas palavras, “o Brasil de hoje sai das academias. O país do futuro sairá das oficinas”.
Foi também durante seu governo que surgiriam duas inovações que até hoje nos acompanham, embora em nomes e formatos diferentes: o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio e a Legislação Nacional de Trânsito.
A eleição mais polarizada da história
Mas nem a paz nem o amor pareciam interessados em reciprocar essa relação. O Brasil vivia então o período chamado de “política do café com leite”, com uma alternância entre presidentes oriundos de São Paulo e de Minas Gerais. Com a decisão tomada por Pena antes de sua morte de apontar um mineiro como seu sucessor as primeiras rachas desta política começaram a surgir, e seu Ministro da Guerra, o marechal Hermes da Fonseca, decidiu se nomear incondicionalmente como candidato à sucessão presidencial nas eleições seguintes, contando com o apoio de políticos de Minas.
Os paulistas, temendo o retorno dos militares ao poder, decidiram nomear um candidato próprio, Ruy Barbosa, dando início à disputa eleitoral de 1910 que muitos consideram a mais polarizada da história do país. E tanto as oligárquicas nacionais quanto as disputas internas dentro das diversas facções regionais do Partido Republicano acabaram colocando Barbosa do lado oposto ao de Peçanha, que apoiou a candidatura de Hermes da Fonseca, que, com o apoio do nilismo incipiente, tornou-se presidente do Brasil.
Depois de passar um ano na Europa, Nilo voltou ao Rio e se elegeu senador, tornando-se líder do ramo fluminense do Partido Republicano Conservador. Mas as disputas oligárquicas ainda pautavam a política brasileira, e os nilistas acabaram por romper com o governo de seu antigo aliado, o presidente Hermes da Fonseca, e Peçanha se viu isolado politicamente.
Decidiu então usar seu capital político e lançou-se novamente à presidência do Rio de Janeiro, percorrendo todo o estado, fazendo comícios e passeatas de uma maneira que até então não havia sido vista no cenário político nacional. Seus oponentes, com a ajuda de figuras proeminentes de outros estados, tentaram impedir sua posse e até mesmo removê-lo do poder, sem sucesso, o que só serviu para fortalecer o nilismo.
Ao longo de seu mandato procurou revitalizar a economia local, afetada pela crise do café, investindo em infraestrutura, educação profissionalizante e na produção agrícola local. Mas seu mandato foi curto, e atendeu ao chamado do então presidente Venceslau Brás para ser ministro das Relações Exteriores, sendo responsável por declarar guerra à Alemanha durante a Primeira Guerra.
Reação Republicana
Depois de mais uma temporada fora do Brasil, Peçanha voltou ao país em 1921. O presidente do país era Epitácio Pessoa, durante cujo governo as tensões existentes entre as oligarquias antigas e os outros estados que queriam também ter seu quinhão do federalismo tomaram proporções inéditas.
Foi aí que Nilo decidiu formar o movimento Reação Republicana, visando as eleições presidenciais do ano seguinte, em oposição à candidatura do candidato governista Artur Bernardes. Entre os pontos básicos que defendia estavam pautas de liberalismo econômico, a reivindicação de maior autonomia para o legislativo, e a “defesa dos princípios republicanos” para que as decisões políticas nacionais saíssem “do terreno das convergências regionais para horizontes mais iluminados de crítica e liberdade”.
O nilismo assumiu então proporção nacionais, e saiu dos horizontes fluminenses. Nilo percorreu o país numa campanha política aos moldes modernos, com direito a comícios, propagandas, e até mesmo distribuição de brindes.
A situação de candidato de oposição, no entanto, trouxe todo tipo de problemas, e diante da oposição ferrenha do establishment oligarca e coronelista, Peçanha abraçou uma aproximação com os militares, cuja insatisfação com o governo federal era notória.
"Contra tudo o que está aí"
A Reação Republicana provocou uma empolgação popular como só vimos em tempos recentes no Brasil. A vontade de lutar “contra tudo que está aí” parece ter feito o clima político do país pegar fogo, e estados que até então se viam sub-representados na estrutura política do país, como Bahia, Rio Grande do Sul, Pernambuco, encamparam suas ideias.
Sua campanha pregava “arrancar a República da mão de alguns para as mãos de todos”, e Nilo acrescentava: “o mundo não pode ser mais o domínio egoístico dos ricos. (...) Só teremos paz de verdade, e uma de justiça, quando nas nossas propriedades e nas nossas consciências (...) forem tão legítimos os direitos do trabalho como os do capital. Não é mais possível a nenhum governo brasileiro deixar de respeitar, dentro da ordem, a liberdade, a liberdade operária, o pensamento operário”.
A imprensa não passou incólume à disputa eleitoral, e logo jornais aderiram à causa nilista, como O Imparcial, um dos primeiros jornais do país a publicar ilustrações, que retratou Nilo Peçanha retornando ao Brasil nos braços de um general e um almirante com a legenda “O Exército e a Armada se confraternizam com o povo para glorificar o grande líder democrático”, além do Correio da Manhã, que publicou uma série de cartas supostamente enviadas pelo rival de Peçanha, Artur Bernardes, com “referências grosseiras” e desrespeitosas aos militares e ao ex-presidente Hermes da Fonseca, e que mais tarde se revelaram falsas. O mesmo Correio da Manhã também publicou uma suposta carta de Bernardes chamando Peçanha de “o moleque capaz de tudo”.
A agitação política prosseguiu até a data das eleições, em março de 1922, vencidas por Bernardes. A despeito de seu discurso populista, Peçanha não foi capaz de vencer as barreiras geográficas e perdeu para Bernardes por 446 mil votos contra 317 mil.
"Proclamaremos um ditador"
A Reação Republicana recusou-se a aceitar a derrota e exigiu a criação de um Tribunal de Honra para reavaliar o processo eleitoral, ao mesmo tempo em que procurava insuflar a fúria popular e atiçar a ira da ala militar contra o que alegava ser uma derrota injusta.
Os militares ameaçaram um levante, e uma ala do exército soltou na imprensa uma circular na qual diziam que “se o Sr. Bernardes for eleito, impediremos aqui o seu reconhecimento pelo Congresso; se for reconhecido, impediremos a sua posse de qualquer modo! Em 15 de novembro, não haverá governo; tomaremos conta do sr. Bernardes, vivo ou morto, e então daremos posse ao Sr. Nilo ou proclamaremos um ditador.”
Enquanto isso, líderes de estados pró-Bernardes como São Paulo e Minas Gerais respondiam de maneira igualmente enérgica à ameaça. O estado do Rio de Janeiro, majoritariamente nilista, entrou num processo de anarquia, fazendo com que seu governador solicitasse uma intervenção federal.
Foi então que a ala da imprensa que apoiava o candidato vitorioso entrou em cena, e começou uma campanha impiedosa contra Peçanha e seus nilistas. O jornal O Fluminense, depois de acusá-los de “assalto ao poder presidencial” (“Pode-se mesmo dizer que Deus os fez e o Diabo os juntou para fins tão infernais. (...) Pactuando nem sempre com as misérias do outro durante todos os negros dias dessa trama satânica com que se quis afastar da suprema magistratura nacional, essa incomparável celebração de estadista, sem dúvida uma das maiores que o Brasil tem tido em todas as fases da sua existência histórica, que é o doutor Arthur Bernardes”), acrescenta que “como é geralmente sabido, o Nilismo votou sempre uma ojeriza especial à instrução pública, pois era mesmo do seu programa conservar a população fluminense sepultada nas trevas da ignorância, por ser este o estado único certamente em que ele podia prosperar impunemente”.
Nilo Peçanha ainda fez um último pronunciamento no dia 15 de novembro de 1922, lançando um manifesto à nação defendendo “a regeneração da República”. Seu apelo, no entanto, foi amplamente ignorado diante dos novos esforços das oligarquias brasileiras em reestruturar um novo modelo, e seu projeto de criar um novo eixo de poder para o país foi finalmente minado por completo. A intervenção federal no Rio de Janeiro acabaria por eliminar completo os nilistas e o seu legado político no estado.
Com a derrota, Nilo Peçanha se afastou da vida política. Morreu dois anos depois.
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