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Opinião

O que a lista de livros mais vendidos realmente diz sobre os leitores brasileiros

Enquanto intelectuais choram e reclamam da predominância dos títulos de autoajuda, leitores procuram livros que os ajudem a ser pessoas melhores. (Foto: Pixabay)

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Na semana passada, a consultoria Nielsen divulgou a lista dos 15 livros mais vendidos no Brasil em 2019. Alguns detalhes chamam a atenção. O primeiro é que na lista só há livros de autoajuda pessoal e financeira e nenhum livro de ficção. Outro é a baixa rotatividade dos títulos que figuram no ranking, apesar de as editoras brasileiras lançarem milhares de títulos novos todos os anos: só um dos 15 livros teve sua primeira edição em 2019. Por fim, há dois brasileiros na concorrida e invejada lista – Paulo Vieira e Luccas Neto – e nenhum deles é sucesso de crítica nem participa do chá da tarde na Academia Brasileira de Letras. Ainda.

A lista gerou uma torrente de lágrimas por parte de intelectuais com espaço no debate público e sobretudo por parte daquele tipo de intelectual que “adora cheiro de livro” e aparece o tempo todo no Instagram diante de uma estante cheia de lombadas multicoloridas, entre as quais podemos identificar facilmente um Shakespeare ou Machado de Assis nunca tocado. Decepcionante, disse um. Deprimente, chorou outro. Como assim nenhum livro de poesia?, desesperou-se um terceiro.

Toda essa reclamação e tristeza revelam três coisas. A primeira é uma profunda dissociação entre o que os intelectuais acreditam que o brasileiro deva ler e o que o brasileiro lê de fato. A segunda é uma postura superior e autoritária que, nos últimos vinte ou trinta anos, só contribuiu para alienar ainda mais os intelectuais e criar um clima de anti-intelectualismo no já reduzido público consumidor de livros. Por fim, e mais importante, a reação de certa intelectualidade de cavanhaque e a mão sempre pregada ao queixo mostra que a elite editorial ignora e despreza a ascensão, nas últimas décadas, de uma mentalidade técnica que prefere manuais e caminhos que prometem ser diretos e rápidos à reflexão tortuosa e ineficiente da ficção.

Vida melhor, sem depender do Estado

Mas antes vale a pena falar um pouco sobre alguns dos campeões de vendas. Aliás, talvez seja apropriado agora apontar uma característica importante, óbvia e geralmente negligenciada da lista dos livros mais vendidos no Brasil: os livros ali contidos são comprados, mas não necessariamente lidos.  Não à toa, muitas das grandes livrarias brasileiras se transformaram, nos últimos tempos, em lojas de presentes, não em "espaços de cultura", como se dizia antigamente. Mas isso é assunto para outro texto.

O livro mais vendido em 2019, com 386.555 cópias (e 439.251 em 2018), segundo o site PublishNews é A Sutil Arte De Ligar O F*da-Se, de Mark Manson. Depois dos livros para colorir e dos livros com referência a Auschwitz no nome (teve até A Dieta de Auschwitz), o livro de Manson deu origem à atual moda editorial: livros com palavrão no título. A ele se seguiram Seja Foda!, de Caio Carneiro (129.172 cópias vendidas em 2019) e o recente Enfodere-se, do mesmo autor.

O fato de ser o livro mais vendido no país por dois anos consecutivos o torna necessariamente ruim? De jeito nenhum. Com um tom despretensioso, jovem, direto e coloquial a ponto de ser vulgar, Manson mostra saber, senão o que as pessoas querem ler, como elas querem ler. E, assim, com esse tom de conversa de bar depois de duas ou três cervejas, Manson acaba transmitindo uma mensagem ancestral presente na obra dos filósofos estoicos e também no Eclesiastes, atribuído ao Rei Salomão. A mensagem é: resista à vaidade e não deixe que ela o impeça de fazer as coisas.

O Milagre da Manhã, de Hal Herold (257.451 cópias vendidas em 2019; talvez tivesse vendido mais se a editora pusesse um palavrão no título) fala sobre algo muito caro à geração que atravessa a noite jogando videogame ou assistindo a séries em maratona: a importância de acordar cedo. O fato de ele aparentemente ignorar as peculiaridades do ciclo circadiano de cada um é apenas um detalhe. Porque as pessoas querem acreditar que, acordando cedo e aproveitando aquelas horas de energia renovada, elas conseguirão realizar todos aqueles projetos que talvez as tenham deixado insones na noite anterior.

O coach Paulo Vieira figura na lista de Nielsen com dois títulos: O Poder da Autorresponsabilidade (149.022 cópias) e O Poder da Ação (117.315 cópias). Por mais que se torça o nariz para os coaches, que mal há em pregar a autorresponsabilidade num país que tanto a terceiriza para o Estado? Aliás, talvez os intelectuais que tanto choram hoje pela falta de literatura (e literatura de qualidade, sonham eles) na lista dos livros mais vendidos no Brasil talvez devessem comprar o livro de Paulo Vieira e refletir sobre a responsabilidade que tiveram nesse fenômeno. Sobretudo escritores que exaltam criminosos em narrativas que são “um soco no estômago”.

Esses e a maior parte dos outros livros que figuram no ranking mostram (supondo que as pessoas que os compram também os leem) um leitor preocupado em melhorar suas relações, melhorar a forma como encaram os problemas cotidianos e, por fim, melhorar financeiramente – por seu próprio esforço, sem precisar daquela ajudinha do Estado ou então das tradicionais e nem sempre éticas relações de compadrio do capitalismo à brasileira.

Superioridade moral

Para quem já viveu por dentro o mercado editorial, nada disso é novidade. Intelectuais dos dois lados da cadeira produtiva, isto é, tanto escritores quanto leitores há tempos reclamam do predomínio dos livros de autoajuda nas listas anuais dos mais vendidos. Mas não só. Nos anos em que livros de ficção ocuparam rankings do tipo, esses intelectuais também reclamaram da superficialidade e da má qualidade artística das obras. Paulo Coelho que o diga!

Por trás de tanto chororô está a ideia autoritária de que só um grupo restrito de intelectuais (normalmente aqueles que dominam as regras da ABNT e que ecoam o ideário progressista) tem o direito de dizer o que o povo (neste caso, de classe média e classe média alta) deve pensar – e, mais perigoso, como ele deve pensar e a partir de quais fontes. No livre mercado, contudo, a liberdade que o leitor tem de buscar informação e conhecimento onde bem entender não permite que esses intelectuais imponham um discurso único.

Outro traço importante do desespero diante da lista dos mais vendidos é o tom de superioridade moral dos que reclamam. Dá para imaginá-los empunhando a espada imaginária e gritando “Shakespeare ou morte!”. Como se o leitor de Shakespeare (ou de qualquer outro autor canônico) fosse melhor do que o pai de família empreendedor que realmente se vê capaz de ir do mil ao milhão sem cortar o cafezinho (título, por sinal do livro de Thiago Nigro que vendeu mais de 155 mil cópias em 2019.

A mentalidade técnica

O aspecto mais interessante da lista dos mais vendidos é a consolidação de uma mentalidade técnica entre aqueles que buscam a educação formal ou informal. É um processo antigo, cujo início alguns localizam na década de 1920 e outros na Revolução Francesa. É também um processo lento e, para os poetas W. H. Auden e T. S. Eliot, o escritor C. S. Lewis e a filósofa Simone Weil, todos citados e analisados em The Year of Our Lord 1943, de Alan Jacobs (que não foi nem lançado em português e, quando for, se for, duvido que entrará para a lista), incontornável, principalmente depois do banho de sangue da Segunda Guerra Mundial.

A mentalidade técnica é um fato consumado de difícil assimilação para os intelectuais à direita e à esquerda. É o triunfo da ciência sobre a metafísica, de tudo o que é material sobre os assuntos da alma. É a predominância dessa mentalidade o que explica por que as pessoas preferem ler Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, de Dale Carnegie, a se debruçar sobre os conselhos de Polônio a Laerte em Hamlet.

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