Setembro mal terminou, e já teve sua devida parcela de massacres a tiros. Num encontro de amigos em Plano, Texas, para assistir a uma partida dos Dallas Cowboys, o ex-marido de uma das presentes assassinou sua ex-mulher e sete dos amigos dela. Em Rockford, Washington, um atirador abriu fogo num colégio secundário, matando pelo menos uma pessoa e deixando pelo menos três feridos. Outubro começa com o ataque a Las Vegas que deixou pelo menos 50 mortos e mais de 400 feridos.
Venho cobrindo massacres desse tipo nos últimos dois anos para o site The Trace, organização de jornalismo sem fins lucrativos voltada unicamente a cobrir notícias sobre violência cometida com armas de fogo. Já estou acostumado com a discussão pública padrão que geralmente se dá após esse tipo de episódios: o que pode ter motivado esses atos de violência insensata?
As chacinas em escolas, em particular, parecem gerar muita discussão política, ou em torno das ideias dos atiradores (atividade ocultista no caso de Christopher Harper Mercer; videogames e música violentos no de Eric Harris e Dylan Klebold; no caso de muitos outros, misoginia, masculinidade e o sentimento de que a pessoa tem muitos direitos, mas não deve respeito a outros) ou do papel das armas de fogo em suas vidas.
Mas minha experiência sugere que o excesso de atenção que é voltada às crenças ou posições particulares do atirador obscurece os vínculos reais que unem os atiradores em massa. O que os vincula e que eleva sua probabilidade de matar dessa maneira em especial não é qualquer conjunto particular de crenças, mas um histórico de comportamento antissocial, às vezes violento.
O The Trace entrou no ar 48 horas após o massacre de 2015 numa igreja de Charleston. Desde então, meus colegas e eu já cobrimos massacres semelhantes cometidos por donos de estabelecimentos comerciais falidos, veteranos de guerra desajustados, adolescentes problemáticos, candidatos a jihadistas, funcionários revoltados com seus empregadores, ex-cônjuges, partidários do movimento Black Lives Matter, cidadãos soberanos (americanos que consideram que não devem lealdade ao governo, NT) e muitos outros. Geralmente é difícil decidir qual etiqueta é a melhor para descrever o perpetrador.
Muitas vezes várias delas parecem se aplicar a ele, ou então nenhuma. A dificuldade de interpretar as motivações dessas pessoas se agrava pelo fato de que, quando essas chacinas terminam, o atirador normalmente está entre os mortos (caso de Las Vegas).
O que fica claro, porém, é que, independentemente de motivação ideológica, ou mesmo na ausência total de qualquer motivação desse tipo, esse tipo de ataque geralmente é pressagiado por indícios claros que serviriam de avisos.
“A maioria das pessoas que comete crimes graves não começa assim. Elas não começam simplesmente cometendo homicídios com armas de fogo”, me disse o psiquiatra Jeffrey Swanson, da Duke University, após o massacre de 2016 na boa Pulse, em Orlando, Flórida.
Antes de matarem de fato, os atiradores geralmente agridem ou ameaçam pessoas próximas a eles, como cônjuges ou colegas de trabalho. Em muitos casos eles se isolam profundamente do resto da sociedade.
Por exemplo, James Hodgkinson, que no verão passado abriu fogo contra parlamentares republicanos que treinavam beisebol numa quadra na Virgínia, ameaçou sua filha com uma faca, deu um soco no rosto de um vizinho e deu uma coronhada no namorado de uma vizinha, disparando em seguida contra o homem quando ele fugia. Nos meses antes de atirar nos deputados, ele morou numa van a mais de 1.500 km de sua casa no Illinois.
Omar Mateen, que cometeu o massacre na Flórida, batia habitualmente em sua primeira mulher, ameaçava colegas de trabalho e teve dificuldade em permanecer num emprego.
Mesmo os atiradores sem histórico passado de violência, como Dylan Roof, Elliot Rodger ou Seung-Hoi Cho, tinham feito ameaças perturbadoras a amigos, familiares ou professores e se isolado da vida social normal.
O número de pessoas que cometem esses tipos de comportamentos antissociais é superado de muito longe pelo de pessoas com posições intransigentes em relação à política, sociedade ou religião.
Levando isso em conta, disse Swanson, analisar as convicções políticas de um atirador ou seus hábitos de consumo de mídia tem mais ou menos a mesma utilidade que analisar videogames violentos ou a música de Marilyn Manson após o massacre de Columbine em 1999.
Apesar do fato de os atiradores em massa frequentemente se enquadrarem num perfil claro, nosso sistema de checagem de antecedentes não está equipado para impedir pessoas assim de comprar armas. Em 32 Estados americanos muitas delas poderiam facilmente adquirir uma arma numa transação particular não regulamentada. Mas, mesmo assim, muitas delas passam por checagens de antecedentes para comprar as armas com as quais vão cometer crimes.
Sua personalidade pode deixar seus familiares ou conhecidos preocupados, mas os atiradores em massa raramente se encaixam os critérios seguidos pelo governo federal para classificar pessoas como não tendo condições mentais de adquirir uma arma. Não basta um diagnóstico psiquiátrico, sem sequer uma internação psiquiátrica.
O sistema de verificação de antecedentes só impede pessoas de comprarem armas se um tribunal, uma comissão ou outro organismo legal considerá-las mentalmente doentes.
Pessoas internadas em clínicas psiquiátricas por seus familiares não entram nessa categoria e ainda podem comprar armas.
De qualquer maneira, a propensão a se enraivecer não é, estritamente falando, uma doença mental, e os doentes mentais têm chances muito maiores de serem vítimas de violência ou fazer mal a si mesmos do que de fazer mal a outros.
Do mesmo modo, embora muitos atiradores em massa possam ameaçar ou até ferir outras pessoas antes de pegarem em armas, eles raramente são condenados por crimes que os impediriam de comprar ou possuir uma arma de fogo.
A violência doméstica, uma precursora especialmente comum dos massacres, é notoriamente difícil de processar nos tribunais. Outros tipos de comportamento antissocial podem não constituir crimes, podem ser apenas infrações menores, mesmo que psiquiatras os vejam como sinais evidentes de alarme.
Diante dessas dificuldades, alguns Estados americanos estão tentando reagir. A Califórnia, por exemplo, ampliou o número de delitos criminais que impedem seus residentes de comprar armas, para incluir delitos violentos como agressão física. A agressão física não é passível de punição com sentenças longas de prisão, de modo que não é reconhecida pelo sistema federal de verificação de antecedentes, apesar de uma condenação por agressão física constituir um sinal claro de aviso. Mas a Califórnia examina a conduta dos compradores de armas com rigor adicional.
Alguns Estados criaram Ordens de Restrição de Violência com Armas de Fogo. Com elas, familiares ou a polícia podem pedir a um tribunal que apreenda temporariamente as armas de uma pessoa, quando se considera que ela representa um risco a ela própria ou a outros.
Essas ordens são emitidas por tribunais cíveis, que não exigem o mesmo nível de comprovação que os criminais. Esses procedimentos também permitem que o dono das armas recorra da ordem ou aguarde por um período de tempo determinado e então volte ao tribunal para provar que já deixou de ser perigoso e recuperar suas armas.
São intervenções altamente focalizadas, baseadas em pesquisas empíricas que respeitam os direitos legais do cidadão. Elas não afetariam a imensa maioria dos donos de armas, nem tampouco aqueles que lançam ameaças online. Mesmo assim, a Associação Nacional de Rifles (NRA, o lobby pró-armas nos EUA), já se opôs reiteradamente à ampliação de políticas desse tipo. Ela aplaudiu a sugestão do juiz Clarence Thomas, da Suprema Corte, de que a proibição federal de posse de armas por pessoas condenadas por violência doméstica seria inconstitucional.
Isso não significa que as crenças das pessoas não possam ocasionalmente levar diretamente ao derramamento de sangue. As crenças motivam violência há séculos: quando líderes explicitamente advogam ou toleram a violência, movimentos sociais ou células se organizam para enfrentar adversários brutalmente ou promover assassinatos, e tentativas de conscientizar a população desse risco são ignoradas propositalmente.
Mas, se quisermos impedir os massacres antes de acontecerem, não devemos focar nossa atenção sobre ideias ou motivações extremistas, e sim sobre o comportamento antissocial, violento e ameaçador de pessoas à nossa volta, sejam ou não esses comportamentos ideologicamente motivados.
*Alex Yablon é repórter do The Trace, site de jornalismo sem fins lucrativos que cobre armas de fogo na América.