O ministro Dias Toffoli, novo presidente do Supremo Tribunal Federal| Foto: EVARISTO SA/AFP

Durante uma ruidosa festa de posse, semana passada, o ministro Dias Toffoli, novo presidente do Supremo Tribunal Federal, cantou Tempo Perdido, sucesso da banda Legião Urbana entre os adolescentes deprimidos das décadas de 1980 e 1990. Pelo vídeo que circula nas redes sociais, é possível ver que Toffoli, o mais jovem presidente da mais alta corte brasileira, com apenas cinquenta aninhos, não é dos mais afinados cantores do rock nacional. 

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Vi muita gente na internet associando a Festa do Toffoli™ ao famoso Baile da Ilha Fiscal, aquela suntuosa festa que teria precipitado a queda da Monarquia no Brasil, em 1889. Mas esse tipo de “previsão a posteriori” é apenas leviandade. A não ser que analisemos a comparação à luz do delicioso freudianismo diletante. 

Analistas muito mais competentes do que eu certamente analisarão as roupas e até o jeito de andar dos mais de mil presentes à festa. Outros usarão gráficos para mim incompreensíveis para examinar os impactos da farra na economia mundial. E haverá ainda os que simplesmente pegarão a lista de presentes e soltarão aquele suspiro resignado de quem está assistindo a uma peça de Ionesco – e não está gostando. 

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Prefiro me ater ao fato de Dias Toffoli ter cantado Tempo Perdido, da Legião Urbana. Mas não estou interessado nos vibratos, falsetos ou graves do excelentíssimo ministro. Por sorte, não tenho ouvido absoluto. O que me interessa é o fato em si (um ministro da mais alta corte do país cantando rock nacional) e principalmente a letra da música que, ao que parece, e desde já pedindo todas as vênias possíveis e imagináveis, acalenta o jovem ministro nos momentos mais importantes de sua vida. 

O que, sem que o ministro perceba, acaba revelando muito sobre o que ele pensa a respeito do... nosso tempo. Tanto que me vejo obrigado aqui a dizer que a música, cuidadosamente escolhida ou fruto de uma animação passageira, é um delicioso e esclarecedor ato falho. 

Porque Tempo Perdido começa já com uma declaração explícita de nostalgia. E nostalgia, sabemos bem, anda de mãos dadas com o ressentimento: 

Todos os dias quando acordo
Não tenho mais o tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo 

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Aqui, eu-poético (sim, ele existe!) de Renato Russo dialoga com Yesterday, dos Beatles. Naquela coisa toda de “ontem meus problemas pareciam distantes”. Toffoli, pode-se supor, no conforto do nosso consultório de psicanálise virtual, anseia por um tempo, há não muito tempo, em que a vida era mais tranquila, seus amigos ocupavam os palácios de Brasília, a vida era boa e a Revolução (o objetivo de todo o roqueiro é a revolução com letra maiúscula) era um futuro garantido. 

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Mas repare na exortação do último verso: temos todo o tempo do mundo. Só pensa assim quem exerce o poder com consciência do poder. Porque só alguém que se considera acima de todas as coisas, acima dos próprios desígnios divinos, acima do Acaso, é capaz de encher a boca para cantar que temos todo o tempo do mundo. (Não temos). E, justamente porque o tempo nos é escasso, a música continua: 

Todos os dias antes de dormir
Lembro e esqueço como foi o dia 
Sempre em frente 
Não temos tempo a perder 

Aqui a nostalgia é explícita. E vale a pena reparar que o eu-poético, incapaz de aprender com o tempo que passou, aquele do qual ele se lembra e imediatamente esquece, se levanta todo animado da cama, depois de um sono supostamente reparador, para dizer “sempre em frente!”. Porque (e é preciso ler este verso com toda a atenção do mundo) “não temos tempo a perder”. Se Toffoli estivesse no meu divã, e eu não fosse um psicanalista freudiano ultraortodoxo, daqueles que mal dizem “seu tempo acabou, seiscentos reais”, arriscaria afirmar que o Ministro é daqueles jovens senhores para os quais a maturidade paciente ainda não chegou. O inconsciente dele tem pressa. 

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Nosso suor sagrado 
É bem mais belo que esse sangue amargo 
E tão sério 
E selvagem 
Selvagem 
Selvagem 

Aqui, o letrista (nunca poeta, apesar do eu-poético) faz uma exaltação do trabalho, do suor sagrado, em contraposição a esse sangue amargo, vertido por meio da violência institucionalizada (a guerra) ou não. E emenda: o suor, além de sagrado, é sério. É selvagem. Ao ler isso, dá quase para ver, ao fundo, as massas selvagens e sérias usando o sangue amargo para fazer prevalecer a beleza do suor sagrado. Se é que você me entende. 

(...) 
Então me abraça forte 
Me diz mais uma vez que já estamos 
Distantes de tudo 
Temos nosso próprio tempo 
Temos nosso próprio tempo 
Temos nosso próprio tempo 

Essa é a estrofe mais importante da música. E é justamente essa parte que Dias Toffoli aparece cantando no vídeo que tive o prazer de assistir. No vídeo, Toffoli exibe não só sua afinação, como também sua animação sui generis (tinha que ter um latinório no texto, claro) e seus dons como animador de plateia. No verso mais simbólico da música, levando em conta o personagem, a situação, o tempo político do país, as páginas policiais e até a localização geográfica daquele monstrengo arquitetônico que é o Supremo Tribunal Federal, Toffoli puxa o coro em “Me diz mais uma vez que já estamos distantes”, solta um silviosantanesco “do quê?!” e responde: “de tudo”. 

Eu diria que este é o maior ato falho da República desde que Itamar Franco foi flagrado ao lado de uma despudorada Lilian Ramos, mas não. Porque a música continua e o ato falho se agrava. “Temos nosso próprio tempo”, repete Toffoli/Renato Russo três vezes. A um observador distraído, a cena pode parecer apenas uma celebração de alguém que chegou ao auge da carreira; para mim, contudo, é um Ministro da Suprema Corte batendo no peito, reconhecendo que vive numa torre de marfim (e uma torre de marfim planejada por Niemeyer!) e que vive o seu próprio tempo, indiferente ao mundo, maior e melhor do que os outros, os meros mortais que se sujeitam ao mais implacável dos deuses: o tempo. 

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A música prossegue com uma súbita confissão de covardia que alguém também pode ver como uma declaração honesta de uma criança encurralada pela noite, daquelas todas valentonas na hora do recreio, mas que, ao voltar para casa e se deitar no quarto escuro, se rende ao maior de todos os medos infantis: o Bicho Papão. 

Não tenho medo do escuro
Mas deixe as luzes 
Acesas agora 

E tudo termina numa apoteose que, levando em consideração o contexto aqui analisado, é uma explosão de atos falhos, capaz de fazer qualquer discípulo de Freud jogar o bloquinho de notas na parede e se encolher em posição fetal sob o divã. São versos que poderiam muito bem ilustrar os feitos de certo partido que governou o país por treze anos e que tem como presidente de honra um senhor barbudo e de voz rouca, por acaso (um acaso nunca é um acaso) o mesmo que indicou o Dias Toffoli ao desejadíssimo cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, a corte que, na teoria, dá legitimidade a todos os atos do Leviatã. 

O que foi escondido 
É o que se escondeu 
E o que foi prometido 
Ninguém prometeu 
Nem foi tempo perdido (...)