I traveld thro´ a Land of Men,
A Land of Men & Women too,
And heard & saw dreadful things
As cold Earth Wanderers never knew.
William Blake, “The Mental Traveller”.1
Para se entender adequadamente os escritos do historiador galês Christopher Dawson (1889-1970), a palavra-chaves é dinâmica. Sem ela, jamais conseguiremos compreender o movimento dos vetores e das tensões que animam cada evento histórico que ele narra nos seus livros imprescindíveis para vermos o que realmente aconteceu naquilo que ainda insistimos de chamar “Civilização Ocidental”.
Os Deuses da Revolução (“The Gods of Revolution”), o relato de Dawson sobre a Revolução Francesa escrito na segunda metade da década de 1930, mas publicado postumamente em 1970, chega somente agora nas prateleiras brasileiras pela É Realizações. Trata-se de um excelente exemplo de como essa dinâmica narrativa nos ajuda a iluminar não só o que aconteceu entre 1789 e 1793, mas também o que está acontecendo conosco, neste Brasil acima de tudo (e com Deus acima de todos), no glorioso ano de 2019.
Os paralelos entre as duas situações são assustadores. Assim como ocorreu no Brasil entre 2013 e 2018, a França de Luís XVI não viveu somente uma revolução política – e sim, segundo Dawson, uma revolução intelectual que posteriormente culminaria numa revolução espiritual. Tanto aqui como lá, independentemente das circunstâncias do tempo e do espaço, o estopim foram as limitações da ideologia do liberalismo que, somadas ao secularismo que não conseguiu compreender os anseios morais e religiosos do povo, isolou ainda mais o Ancien Régime em seus palácios e bailes luxuosos. Isso deu margem para o surgimento de uma nova elite de escritores, intelectuais e propagandistas que derrubaria sem nenhuma hesitação a velha política, na criação de uma nova ordem que ninguém sabia como terminaria.
Essa abordagem histórica feita por Dawson vai na contramão dos tradicionais estudos sobre o mesmo período. O argumento principal deles é o de que a Revolução foi um evento comandado pelo povo, de caráter essencialmente político, e que a burguesia e os iluministas apenas acompanharam o levante. Em Os Deuses da Revolução, o galês deixa claro que a queda da monarquia francesa foi, em primeiro lugar, uma consequência imprevisível da Reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero, que intensificou não só a quebra da unidade cristã (representada localmente pela ligação que havia entre a Igreja Católica e o Estado francês), como sobretudo o ódio racional pela perspectiva religiosa e transcendente. Aí está a revolução intelectual que, em segundo lugar, iniciaria a “religião política” desses deuses que ainda caminham no nosso panorama psíquico, seja na França escravizada pela União Europeia, seja no Brasil que quer se separar de Brasília.
Tal reviravolta só foi possível porque, com a vitória do liberalismo e do secularismo, o próprio Deus cristão foi expulso do seu trono e substituído por outra divindade mais abstrata – a democracia. Contudo, conforme a cristalina explicação de Dawson, a deusa favorita das três revoluções que transformaram a Europa – a Inglesa (de 1688), a Americana (de 1776) e a Francesa – foi a prole paradoxal de monarquias absolutistas e igrejas estatais que, subterraneamente, foram também revoluções liberais, além de serem expressões políticas do movimento do Iluminismo europeu em suas fases sucessivas. Ou seja, a democracia não nasceu originalmente como um “movimento democrático”, já que, conforme insistimos, “a revolução das ideias precedeu as revoluções política e econômica”. Ela foi, nas palavras de Dawson, “obra de uma pequena minoria de homens letrados que se importavam mais com os nobres e príncipes da Europa do que com as pessoas comuns, e cujo ideal de governo era um absolutismo benevolente e esclarecido, como o de Frederico, o Grande, ou da imperatriz Catarina da Rússia. Havia um abismo entre as ideias de Voltaire e Turgot, de Diderot e D´Alembert [os representantes máximos do Iluminismo francês], e as opiniões do homem comum. O liberalismo dos filósofos era uma planta de estufa que não poderia ser facilmente aclimatada ao ar aberto dos campos e ao mercado”.
Aqui estavam as sementes do jacobinismo que depois seria a marca registrada da Revolução Francesa quando ela se transformou no seu terrível resultado – o período de Terror, comandado por Danton, Robespierre e Marat, cada um sendo eliminado sucessivamente conforme os desejos impulsivos da malta manobrada pelos intelectuais e pelos políticos revolucionários que só queriam se manter no poder (e, claro, não terem a sua cabeça cortada na Madame Guilhotina). Hoje, o termo “jacobino” indica justamente um tipo peculiar de sensibilidade diante das ambiguidades do real, incapaz de compreender as suas sutilezas e tensões, na crença absoluta de que a atividade política, repleta de altos e baixos, deve ser praticada conforme os ditames absolutos da razão humana, mesmo que esta seja divulgada com a ajuda de uma retórica religiosa.
Mas, naquela época, os jacobinos foram a consequência específica de uma secessão da “direita liberal” francesa representada no Parlamento, que passou a se chamar oficialmente de “Sociedade dos Amigos da Constituição” – e cujos integrantes “ainda tinham visões moderadas e representavam uma forma ortodoxa de liberalismo revolucionário”. Só após a famosa manifestação do Campo de Marte, em julho de 1791, é que esses democratas – e os sans-culottes – foram encontrar um lugar mais adequado no Clube dos Cordeliers, uma sociedade rival que passou a incorporar sem nenhuma hesitação “o espírito da violência revolucionária e do terrorismo”, depois identificado como a característica principal de quem fazia parte da facção dos jacobinos. Esses clubes de intelectuais e de aspirantes a políticos rompiam sutilmente com o sentimento francês de comunidade entre os membros do Estado antigo e a Igreja gaulesa, já que, por meio desses mesmos cordeliers, mesmo sem ter a importância nacional dos jacobinos, formavam com eles uma “intensa influência sobre a democracia parisiense por meio da fundação e organização das Sociedades Fraternas ou Populares, que, por sua vez, deram à turba revolucionária sua disciplina e suas ordens de marcha”.
A perícia da narrativa dinâmica de Dawson – com sua perspicácia de perceber e acompanhar os diversos feixes de interesses que sedimentam o fato histórico – se torna evidente quando ele nos faz ver toda a complexidade da descentralização de poder e de mentalidade assimétrica que tornou os jacobinos uma força revolucionária contra a qual não se podia fazer mais nada exceto aceitá-la como um “tsunami”:
“[Esses] clubes eram ao mesmo tempo sociedades de propaganda e associações para a ação. Eles formaram uma hierarquia regular por meio da qual as doutrinas e ordens das autoridades revolucionárias eram transmitidas para o povo. Nas palavras de um jornalista revolucionário, cada rua e cada vila deviam ter seu clube, onde os decretos seriam lidos e comentados, como fazem os padres na quaresma e no Advento. Os clubes deveriam ser, na verdade, as igrejas da nova religião.”
Nesta revolta do subsolo que seria depois paradigmática para todos os jacobinos do futuro, inclusive os nossos tupiniquins deste século XXI, os clubes seriam a base das networks, as redes sociais informais que, de acordo com Dawson,
“herdaram e absorveram as tradições da maçonaria do século XVIII, a qual se dissolvia na tempestade da Revolução. Eles exibiam o mesmo deísmo otimista e clamavam, como os maçons, representar o cumprimento dos ideais cristãos de fraternidade, caridade e moralidade. [Para eles], a Assembleia deveria reconhecer a religião católica como o único culto autorizado. Mas a religião dos jacobinos era uma teoria muito mais definida e dogmática do que os maçons jamais teriam. Desde o começo, ela baseava seu credo na Declaração dos Direitos, e suas escrituras no Contrato Social [de Jean-Jacques Rousseau], e gradualmente desenvolveu um culto regular e seu centro ritualístico em torno do Altar da Pátria, da Árvore da Liberdade, do Livro da Constituição, e se dirigia a abstrações deificadas como a Razão, a Liberdade, a Natureza e a Pátria. Embora esse novo culto pudesse ser combinado com a religião da Igreja [...], ele era essencialmente distinto e potencialmente hostil a ela. Como o cristianismo, era uma religião da salvação humana, a salvação do mundo pelo poder do homem tornado livre pela Razão. A Cruz foi substituída pela Árvore da Liberdade, a Graça de Deus pela Razão do Homem, e a Redenção pela Revolução”.
Esse parágrafo mostra como os jacobinos se articulavam dentro do espectro dos “idealistas liberais”, seduzindo até mesmo grandes mentes como William Blake, Percy Shelley e Victor Hugo, além de adquirirem “a organização externa de uma seita, com uma disciplina estrita, um rígido padrão de ortodoxia e uma intolerância fanática para com outros credos”. Como este tipo de imaginação utópica conquistou essas almas tão astutas? Este parece ser o verdadeiro enigma que intrigou Christopher Dawson enquanto escrevia o manuscrito de Os Deuses da Revolução – e no qual ele tentou encontrar uma resposta provisória, ao afirmar que a oposição a essa revolta intelectual contra o senso comum do povo, cada vez mais afastado das decisões governamentais, se deu somente no seio da Igreja, neste longo parágrafo a ser citado por extenso para que o leitor perceba a beleza terrível que há em suas linhas:
“Foi a Igreja que trabalhou praticamente sozinha, e sem sucesso, pela causa da educação popular, ao passo que os filósofos se contentavam em devotar suas energias à instrução do ‘pequeno rebanho’ dos ricos, as pessoas bem-nascidas e bem-educadas que formavam a opinião pública. Nisso, sua propaganda se mostrou extraordinariamente bem-sucedida. Com a queda dos jesuítas, a Igreja perdeu sua influência sobre as mentes das classes dominantes e os filósofos tomaram o lugar dos confessores e guias espirituais de reis e ministros. O movimento atingiu seu ápice na geração anterior à Revolução Francesa, a época de José II na Áustria e seu irmão Leopoldo na Toscana, Catarina II na Rússia, Gustavo III na Suécia, Struensse na Dinamarca, Florida Blanca na Espanha e Turgot e Malesherbes na França. Mesmo antes desse período, as novas ideias estavam em ação na França sob Choiseul e Madame de Pompadour, na Prússia sob Frederico, o Grande, na Áustria sob Kaunitz, em Nápoles sob Tanucci e em Portugal sob Pombal. Em toda a Europa, estadistas estavam empenhados em varrer os destroços da Idade Média e realizar reformas administrativas, sociais e econômicas de acordo com os princípios da nova filosofia. Porém, embora o sucesso desse movimento tenha sido rápido e generalizado, ele também foi limitado e superficial. Debaixo da superfície de ilustração racional, a vida dos camponeses e artesãos seguia os velhos costumes das tradições sociais e religiosas. Enquanto a corte de Catarina II ou de José II lia os livros mais recentes de Paris e adorava o racionalismo em voga na sociedade cosmopolita, seus servos camponeses ainda viviam no mundo do catolicismo barroco ou da ortodoxia bizantina. E, desse modo, desenvolveu-se uma divisão na sociedade que continha as sementes do conflito de classes e da revolução social. Na velha ordem cristã, nobres e camponeses compartilhavam uma fé comum e um serviço religioso comum. Mas, agora que o cristianismo só era considerado bom para as classes inferiores, como Voltaire afirmava com tanta frequência, o alicerce espiritual da sociedade estava destruído. A despeito de tudo, o que os déspotas esclarecidos e seus ministros fizeram pela causa da civilização e do progresso, eles perderam o caráter sagrado da velha realeza cristã que investira até mesmo o inexpressivo exterior dos últimos Habsburgo com a aura da divindade. E, com a perda dessa tradição, o coração abandonou o Ancien Régime e deixou apenas uma casca vazia. É verdade que, em certos aspectos, a cultura europeia jamais alcançou um nível mais elevado do que na França durante a Era das Luzes. Jamais a arte de viver foi mais cultivada, jamais a sociedade foi mais aberta a ideias e mais disposta a apreciar e recompensar o talento intelectual; mas todas as graças da vida – as famosas douceur de vivre de que fala Talleyrand – eram com frequência uma fachada brilhante que nada tinha além de um vácuo espiritual atrás de si. Os homens leais à velha tradição, como o Dr. Johnson, tinham seus corações no lugar certo, por mais estreitos e intolerantes que fossem em suas posições. Mas há uma desumanidade repulsiva nos líderes do Humanismo, como Frederico, o Grande, e Voltaire e Chesterfield e Horace Walpole e Talleyrand, desumanidade que é a fraqueza característica de uma cultura puramente racional. Por conseguinte, surgiu uma reação ao Iluminismo, que afirmava os direitos do coração contra a ditadura da razão, e criou uma nova religião do sentimento que fez mais do que todas as racionalizações dos filósofos para criar uma nova ordem social”.
A resposta a esse sentimentalismo pervertido veio sob a forma da filosofia de Jean-Jacques Rousseau. Mas Dawson, provavelmente sem saber, chegou, no trecho citado acima, àquilo que chamaríamos de “o coração do problema” abordado no seu relato histórico – o fato de que o mal que despertou a Revolução Francesa não será encontrado em fatores externos ou meramente políticos, e sim dentro do que conseguimos fazer com as paixões que dominam a nossa alma.
As consequências do secularismo
Como bem observou Joseph P. Stuart, tanto o primeiro como o último livro de Dawson têm a palavra “deuses” no título (respectivamente, The Age of Gods, de 1928, e Os Deuses da Revolução). Mas há um outro fio de Ariadne que liga as duas pontas da longa obra do historiador: a preocupação com a permanência de uma comunidade que, amparada pela experiência religiosa, encontrasse também a sua “unidade espiritual orgânica”.
Para o autor do grande painel formado por A Formação da Cristandade e A Divisão da Cristandade – um feito comparável somente ao vasto panorama que é a História das Ideias Políticas, de Eric Voegelin –, quem cumpriu rigorosamente esse papel, ao mesmo tempo em que permitiu uma saudável flexibilidade na dinâmica de todas essas variantes, foi ninguém menos que a Igreja Católica.
Contudo, em 1928, com o lançamento do seu primeiro livro, Dawson ainda não podia exibir toda a sua “teologia da História”, especialmente porque o assunto era somente a recuperação da cultura pré-histórica, naquilo que Voegelin chamaria de “participantes da ordem cosmológica”, não tendo nenhuma relação com a visão histórica que seria disseminada depois pela tradição judaico-cristã, com toques helenistas. Ele fez isso paulatinamente, até chegar ao díptico citado acima e que expõe, em detalhes, todo o seu eixo metafísico de reflexão histórica.
Esse eixo consiste na seguinte orientação: após o surgimento da Reforma Protestante, em 1517, e sua expansão pela Europa, a Cristandade perdeu não só a sua unidade espiritual orgânica com o fim da autoridade eclesiástica e a ascensão dos poderes estatais, como também foi consumida por “cismas atrás de cismas” que a desintegraram quase por completo. Dessa forma, a cultura que antes dava a conexão profunda entre os católicos e os protestantes foi sendo dissolvida entre os membros desta comunidade invisível até se tornar uma divisão tão profunda que os próprios cristãos começaram a se tornar irreconhecíveis entre si.
Dawson dialoga, neste aspecto, com três outros grandes homens que usaram da história para dramatizar a condição humana em seus escritos. O primeiro é o seu conterrâneo Edward Gibbon que, apesar do talento estilístico e metodológico demonstrado nas páginas do clássico Declínio e Queda do Império Romano, ainda assim falhou miseravelmente ao desprezar a dinâmica religiosa e espiritual no tecido da cultura, na falsa crença de que o cristianismo era uma religião de ressentidos e covardes (um preconceito típico de quem era adorador da razão jacobina dos Iluministas europeus); o segundo é o alemão Oswald Spengler que, com seu A Decadência do Ocidente, escrito durante a Primeira Guerra Mundial, mas publicado anos depois, divulgou como se fosse um fato científico e biológico o descenso civilizacional de todos nós, algo de que até hoje estamos à espera; e o terceiro é o bispo africano Agostinho de Hipona, um dos Pais da Igreja, que, ao escrever A Cidade de Deus enquanto os bárbaros chegavam aos portões das províncias de Roma, viu a história como um grande drama cósmico, um embate entre a cidade dos homens, dominada pelo orgulho diabólico, e a cidade divina, voltada para a abertura amorosa da alma rumo ao transcendente.
O que Christopher Dawson fez com sua obra foi uma síntese original da clareza da escrita de Gibbon, do pessimismo de Spengler (mas sem a sua desesperança fatalista) e da intuição intelectual brilhante de Agostinho sobre o que realmente movimenta a história humana. Contudo, a experiência da modernidade foi o que moldou sua compreensão derradeira sobre aquilo que posteriormente ele chamaria de “o julgamento das nações” – o evento catastrófico que uniu tanto a Primeira quanto a Segunda Guerra Mundiais, numa espécie de conflito que durou os trinta anos. Esta desintegração paulatina também destruiu a Europa renascentista, vítima da revolução protestante que quebrou para sempre a hierarquia do catolicismo.
A essência desse “julgamento” – e que é a consequência direta do protestantismo, segundo Dawson – foi o secularismo, uma visão de mundo que não só recusa a perspectiva metafísica como também a substitui sem nenhuma misericórdia. Porém, por causa das duas guerras, o historiador galês também chegou a uma conclusão oposta à de seus companheiros de profissão, que afirmaram que a culpa disso tudo era, nada mais, nada menos, da rigidez imposta pelo Cristianismo. Ele afirmou peremptoriamente que não foi nada disso. O “julgamento das nações” que o Ocidente atravessava não era por causa do fracasso da religião cristã, e sim por causa da falência intrínseca ao liberalismo político e econômico, idolatrado pelos intelectuais da época, conforme Dawson explica no seu melancólico livro de mesmo título:
[...] O que vemos, hoje, todavia, não é o colapso da cultura tradicional do cristianismo, é a catástrofe da cultura secular que a substituiu. Por ter um horizonte limitado ao secular e por não poder responder aos anseios mais profundos da humanidade, o liberalismo fomentou um vácuo espiritual, um coração de trevas e caos sob a ordem mecânica e a inteligência científica do mundo moderno. Por isso a requisição de uma nova ordem, de uma solução total para nossos problemas sociais, de um replanejamento da sociedade que transformará a vida humana e reconstruirá o próprio homem. Há, de fato, sintomas de uma necessidade espiritual fundamental – experimentada nas novas formas que correspondem à cultura puramente secular em que surgiram. Mas se, como argumentamos, o fracasso da civilização moderna está diretamente direcionado ao seu secularismo e à perda dos valores espirituais, é inútil criar esperanças em remédios, por mais drásticos, que ignorem esse problema fundamental. Portanto, há mais oportunidade do que antes de afirmar a alternativa cristã de renovação e de ordem espirituais, pois é aqui e não na região da organização política e econômica que deve ser encontrado o verdadeiro centro do problema.
O liberalismo foi o solo sobre o qual surgiu o “novo Leviatã” – um monstro estatal, tecnocrático, que abstrai a natureza humana e do qual os totalitarismos nazista e socialista se apropriaram com sucesso para persistirem na desumanização completa e na casca vazia de um corpo que possui apenas um coração de lata. E os primeiros vislumbres desta criação pervertida foram vistos dentro do ventre desta baleia que foi a Revolução Francesa.
O Deus Selvagem tupiniquim
Os Deuses da Revolução foi concebido e escrito no mesmo período em que Dawson também elaborava O Julgamento das Nações. Ele intuía que, de alguma forma misteriosa, os dois eventos – o Terror jacobino e a ascensão das ideologias totalitárias no século XX – estavam conectados por alguma espécie de Providência.
E aqui está outra palavra-chave essencial para se entender que a própria obra dawsoniana tem um coração de fato, uma inteligência emocionante que jamais tornaria o homem alguém desumano. Aqui, o historiador acredita que a sua musa tem uma intenção própria – uma verdadeira providência que vai contra o acaso e a necessidade dominantes no mundo moderno.
Neste ponto, os perfis que Dawson escreve sobre Joseph de Maistre e William Blake indicam onde estava realmente o seu coração enquanto executava o seu ofício. No primeiro exemplo, habitualmente odiado por liberais como Isaiah Berlin e John Gray, já que é constantemente acusado de ser o exemplo perfeito do que significa ser um “reacionário”, sabemos que, apesar de ser alguém que sofreu não só o impacto da Revolução, mas também o do romantismo que a seguiu, Maistre pressentia que era uma figura isolada, de pé “entre dois mundos, um morto e outro incapaz de nascer”. Mesmo sendo considerado um pessimista, um fatalista e um inimigo da humanidade, sua filosofia da história, na verdade, não ignora o sentimento trágico da existência, algo que os Iluministas e os jacobinos faziam à exaustão. Para ele,
“Guerra e revolução não são acidentes infelizes, elas são a própria textura da mudança histórica. Elas não são o resultado do livre-arbítrio dos indivíduos. Os homens que parecem responsáveis, tanto os vitoriosos quanto as vítimas, nada mais são do que instrumentos de forças impessoais que se movem para determinado fim por caminhos que ninguém pode prever. A sociedade não é um número de indivíduos que conscientemente decidiu se unir pela felicidade maior da maioria, é uma corrente viva cuja superfície pode ser parcialmente iluminada pela luz vacilante da razão, mas que brota de fontes subterrâneas e flui para um mar desconhecido. Nesse fluir incessante, nesse turbilhão de forças no qual todas as coisas passam e, no entanto, continuam as mesmas, como é possível distinguir a causa do efeito e os meios do fim? E se é esse o caso no decorrer da História, é assim sobretudo em tempos de revolução, quando a corrente da mudança subitamente aumenta seu ímpeto e varre toda e qualquer instituição estável do caminho. Homens sensatos e tolos, heróis e vilões, todos contribuem para o seu sucesso, quer se oponham, quer tentem usá-la para seus fins particulares. Os próprios homens que parecem liderar e dominar são ferramentas passivas nas mãos dos eventos, e são destruídos e jogados fora quando sua hora já passou. Esse espetáculo da importância humana para mudar o curso da História não leva Maistre ao fatalismo ou ao desespero. Na força misteriosa que carrega os homens feito galhos em uma avalanche, ele vê o poder de Deus, que destrói para criar e apaga para escrever de novo”.
O que fascina Dawson a respeito de Maistre é a capacidade desse pensador, mesmo com todas suas falhas, captar como poucos o sentido da história no meio de um processo turbulento como o da Revolução Francesa. Ambos os escritores querem ver a qualquer custo aquilo que Santo Agostinho dizia ser a glória divina, mesmo no meio dos escombros produzidos pelo próprio homem. Mas Dawson não conseguirá alcançar esse tipo de luz com a mente racional de um Maistre, e sim com a habilidade artística de William Blake, uma alma que também foi infectada pelo “idealismo liberal” do jacobinismo, logo percebeu a loucura disso tudo e se voltou para a criação de um sistema filosófico-poético idiossincrático que defendia, acima de tudo, o poder da imaginação diante das tormentas políticas e científicas:
“Como Maistre, [Blake] era um pensador solitário, um espírito exilado, ainda que o lugar do exílio não fosse a Rússia distante, às margens do Neva [onde Maistre foi viver após a Revolução], mas à beira das águas do Tâmisa, em Lambeth. Como Maistre, ele foi um profeta que viu eventos históricos sub specie aeternitatis, como naquela estranha pintura de Pitt em que o anjo cavalga nas asas da tempestade, ‘ordenando ao Ceifador que ceife as Vinhas da Terra e ao Lavrador que are as Cidades e Torres’. Porém, aqui, terminam as semelhanças. Em seus princípios e suas políticas, os dois homens eram antíteses. Maistre, o católico devoto, nobre e monarquista, o apóstolo da ordem moral e da autoridade social; Blake, um homem do povo, o herético dos heréticos e o revolucionário dos revolucionários, um apóstolo da anarquia e do antinomianismo; acima de tudo, enquanto Maistre ainda tinha fé na tradição clássica da clareza de seu estilo e na lógica firme de seu pensamento, Blake superou todos os românticos em se tratando de ausência de forma e obscuridade. Ele nada sabia de lógica e não se importava com coerência. Ele considerava a razão uma inimiga da visão espiritual, e a ciência a árvore da morte. Ele erigiu mitologias vastas e nebulosas sem se dar ao trabalho de explicar seu significado ou conciliar suas contradições. Ainda assim, quem quer que tenha paciência e imaginação para segui-lo através de seu mundo estranho e visionário obterá uma percepção mais direta do processo de mudança espiritual que acontecia sob a superfície da consciência europeia do que em qualquer outro escritor. Pois Blake, diferentemente dos outros românticos, emergiu diretamente do submundo religioso e teve pouco contato com os movimentos literários da sua época. Ele foi criado como swedenborgiano, e, embora desde cedo divergisse da linha estreita da ortodoxia swedenborgiana, continuou a levar sua vida espiritual no mundo da teosofia sectária. Ao mesmo tempo, seus sentimentos revolucionários o puseram em contato com os livres-pensadores e reformadores políticos da Sociedade Correspondente de Londres e com os Amigos da Liberdade, como Paine e Goodwin, e seus primeiros escritos proféticos foram diretamente inspirados pelo entusiasmo com a causa da Revolução. À primeira vista, essa fase inicial de seu pensamento parece não apenas heterodoxa, mas anticristã e antirreligiosa. A religião é a “Teia de Urizen”, o Deus perverso do Antigo Testamento que escraviza a humanidade sob as leis férreas da moralidade. O Messias do Novo Evangelho é o Espírito da Revolução, Ore, o “Filho do Fogo” que “reduz a forte lei a pó e espalha a religião aos quatro ventos feito um livro despedaçado”. Assim, o mal é a repressão: ‘Aquele que deseja e não age gera pestilência [...] Energia é Deleite Eterno... Pois tudo o que vive é sagrado, vida se deleita na vida: porque a alma no doce deleite não pode jamais ser profanada’”.
Dawson fica fascinado por esse “evangelho da anarquia” porque Blake se desiludiu com o progresso incessante da Revolução. Ao atravessar uma crise espiritual em 1804, ele percebeu que tinha sido “um escravo preso em um moinho entre bestas e demônios” nos últimos vinte anos – e assim retornou ao cristianismo que tinha abandonado, mesmo que tenha sido de uma maneira bem peculiar. Agora representando a si mesmo como um “peregrino”, Blake privilegiava de vez a imaginação como o exemplo do “Logos Criativo e Eterno” e como a única forma para vencer o problema do Mal que tinha sido acentuado com o horror do que acontecera na França. Nas palavras de Dawson, a obra blakeana “reflete de uma forma altamente individual e independente o conflito espiritual que subjaz às mudanças sociais da época, as quais resultaram da insurgência de forças espirituais reprimidas pelo racionalismo e pelo moralismo iluministas”.
É precisamente esta dinâmica imprevisível que transformou uma revolta política em uma reviravolta religiosa e assim ressignifica ao leitor o verdadeiro sentido do título do livro – Os Deuses da Revolução. Dawson percebe que, depois do surgimento do liberalismo, da democracia e do secularismo, passou a existir um novo tipo de divindade, o Deus Selvagem do Estado-Leviatã que devora a todos, absorto e sedutor na sua fé ideológica de raptar justamente o que os seguidores deste culto têm de mais precioso: seus corações.
A contrapartida seria o regresso à unidade espiritual do Cristianismo. Contudo, tem-se a impressão de que Dawson já não tinha muitas esperanças de que isso acontecesse de fato. O mundo moderno se transformou na pós-modernidade, que nos últimos anos faliu completamente com outra revolução – desta vez, uma revolução cognitiva que, simbolizada pelas eleições de Donald Trump e Jair Bolsonaro, além do referendo do Brexit, indica que os antigos deuses da “liberdade, fraternidade e igualdade” estão sendo substituídos por algo que ainda não sabemos o que é, mas que será igualmente devastador.
Essas novas amostras do Deus Selvagem estão nas entranhas do atual governo brasileiro – e aqui a leitura do livro de Dawson é o exemplo perfeito de que o estudo da história será sempre a verdadeira lição para decifrar o comportamento humano. No caso, trata-se da única constante que qualquer historiador encontrará: a infinita capacidade que o homem tem de praticar o Mal aos seus semelhantes, independentemente das circunstâncias. Aqui, no Febeapá do bolsonarismo, temos os nossos jacobinos dominando o governo por dentro, numa “teia hierárquica”, deslocando a ambição tecnocrata dos militares e de um economista como Paulo Guedes, além de obrigar a (inevitável) cooptação que Sergio Moro terá de fazer com esses revolucionários para impor o seu projeto contra a corrupção como uma forma de “política de Estado” que seja realmente eficaz.
No centro disso, a desumanização completa, a total ausência do “coração que vê” – como diria o papa emérito Bento XVI. Com Os Deuses da Revolução, Christopher Dawson nos dá uma lição de sabedoria para finalmente confiar na Providência, mesmo quando tudo parece ser o caos absoluto. Há uma fragilidade comovente neste tipo de atitude, sem dúvida, pois ter um fiapo de esperança é o contrário do nada que nos aguarda.
Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015); pós-doutorando pela FGV-EAESP.
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