Quando Theresa May convocou eleições antecipadas para o Parlamento Britânico, na metade de abril, sua estratégia parecia brilhante: seu Partido Conservador, os “tories”, então liderava as pesquisas por quase vinte pontos percentuais. Chamar novas eleições permitiria à premiê aumentar seu poder, legitimar seu governo e brigar por um Brexit mais duro, com menos contestações internas, graças a um número ainda maior de aliados no Parlamento. As eleições estão marcadas para a próxima quinta-feira (8), mas, um mês e meio depois do anúncio, o projeto de May pode sair pela culatra.
Com a oposição crescendo vertiginosamente às vésperas da votação, May chega à semana decisiva fugindo de debates, vendo uma canção que a chama de “mentirosa” (“Liar Liar”, da banda Captain Ska) se tornar a mais ouvida do país e sofrendo para pôr um fim ao terrorismo em solo inglês. May viu sua vantagem se diluir: nas pesquisas mais recentes, sua vantagem sobre Jeremy Corbyn, líder do Partido Trabalhista, de oposição, caiu para cerca de 5%. Ainda que saia vitoriosa, May corre o risco de sair do pleito com uma oposição ainda mais forte do que antes. E até mesmo a derrota, antes impensável, se tornou uma possibilidade. A possibilidade de Corbyn como novo premiê britânico acendeu a dúvida: se as urnas confirmarem a surpresa, o que acontece com um Brexit comandado pela atual oposição?
Respeito ao resultado do referendo
A pergunta fundamental dos eleitores é quanto à realização de um novo referendo sobre a permanência ou não na União Europeia. Desde que o Reino Unido fez uso do chamado “Artigo 50”, dando início oficial ao processo de saída, reverter a decisão das urnas não se tornou apenas uma questão democraticamente polêmica: também geraria um imbróglio jurídico que nenhum político parece disposto a provocar – menos ainda Jeremy Corbyn, que passou a campanha inteira tentando superar a desconfiança do eleitorado.
De fato, o próprio Corbyn, na época do referendo original, foi criticado por membros do Partido Trabalhista por não ter se oposto de forma mais convicta ao Brexit. De lá para cá, o partido anunciou que seguirá a vontade dos eleitores e não colocará empecilhos ao rompimento com a UE, mas promete mudanças importantes na maneira como esse divórcio acontecerá, garantindo uma relação muito mais amistosa com Bruxelas: a diferença em relação aos tories não é quanto ao resultado final – a saída do bloco europeu –, mas o caminho para se chegar até ele.
Fim do personalismo nas negociações
Assessores de Corbyn já indicaram que o Brexit não é uma questão primordial para o candidato a premiê: diferentemente de May, que já foi chamada de “dama de ferro do Brexit” e quer controlar as negociações de perto, o possível primeiro-ministro trabalhista deverá delegar essa tarefa a um conjunto de colaboradores especializados. A tendência é que a liderança das negociações passe para as mãos de Keir Starmer, ex-procurador-geral britânico e atual comandante do gabinete da oposição para assuntos relativos ao Brexit.
Durante a campanha, Theresa May deu repetidas declarações dizendo que Starmer não é capacitado para o trabalho, garantindo que ela é a única liderança capaz de sair com um acordo favorável frente à União Europeia. Para Starmer, o tema é complexo demais para ser levado adiante por uma liderança personalista, e precisa ser discutido por uma equipe de especialistas em legislação. Os trabalhistas, hoje, apostam em um projeto tecnocrático: “a abordagem trabalhista é a do trabalho em equipe, na qual vamos nos valer de todos os talentos e recursos que temos na nossa equipe do Brexit. May, por outro lado, está isolada”, disse Starmer em pronunciamento na última semana.
Tom mais amistoso
A diferença prometida pelos trabalhistas na relação com a UE não se restringe à quantidade de negociadores que se sentarão à mesa em Bruxelas, mas também ao tom adotado nas conversas. Para a oposição, May aposta num discurso que põe em risco a chance de uma saída benéfica para a Grã-Bretanha: “ela já tirou várias opções de cima da mesa e estabeleceu um tom beligerante com nossos colegas da União Europeia”, afirmou Starmer, sugerindo que a atual premiê confunde uma abordagem dura com uma ideia de conflito entre lados inimigos.
O Partido Trabalhista promete mudar o relacionamento do governo britânico desde o momento em que chegar ao poder. Hoje, May luta por manter uma abertura alfandegária ao mesmo tempo em que aumenta as restrições imigratórias, postura que também é defendida pelos trabalhistas. Até aqui, porém, a UE não parece disposta a ceder: a premiê alemã, Angela Merkel, já alertou que fechar as fronteiras para indivíduos também significará fechá-las ao comércio. Para a oposição, o bloco europeu não estaria dando margem para negociação por conta da antipatia provocada por May: “o tom adotado pela primeira-ministra nos fez ter um mau começo – o botão ‘reset’ precisa ser apertado no primeiro dia”, garante Starmer.
Busca por manter o mercado comum
Nos aspectos mais práticos, a plataforma trabalhista não diverge tanto daquela dos conservadores: os dois lados vão seguir trabalhando pela saída da União Europeia e um maior controle imigratório, ao mesmo tempo em que buscam um acordo que permita seguir com o livre comércio entre os países do continente e a Grã-Bretanha.
No entanto, os tories estão dispostos a sair da mesa sem qualquer acordo, caso a Europa não ceda em suas exigências. Os trabalhistas, por sua vez, garantem que “nenhum acordo” será o pior cenário possível para o país no longo prazo, e assinalam a possibilidade de abrir mão de algumas exigências se isso for preciso para manter uma união alfandegária com os países que seguirão na UE.
Por conta disso, o partido de Jeremy Corbyn ainda não estabeleceu uma política imigratória tão clara quanto a de May – a tendência é que, mesmo dificultando a entrada de estrangeiros como querem os conservadores, os trabalhistas devam impor menos restrições, sobretudo a cidadãos europeus. Um aspecto considerado simbólico nesse sentido é a promessa de não fechar a fronteira entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte: hoje é possível circular livremente entre os dois países, situação que está ameaçada pelo Brexit (a República, independente, seguirá na UE, enquanto o norte da ilha, parte do Reino Unido, deixará a comunidade europeia).
Respeito ao Tribunal Europeu
Theresa May também deseja acabar com qualquer resquício de influência do Tribunal de Justiça Europeu sobre a Grã-Bretanha. Enquanto a UE anseia que a corte siga lidando com os casos de cidadãos europeus residentes em solo britânico (e vice-versa), além de arbitrar sobre disputas comerciais, May busca a soberania plena do sistema jurídico do país – em suma, resolver dentro dos próprios tribunais britânicos as questões hoje consideradas de interesse internacional.
Diante da vontade da União Europeia de seguir utilizando a corte continental, May ainda se vê num beco sem saída. Os trabalhistas têm aproveitado essa indecisão para argumentar que a premiê, apesar de suas alegações de ser a mais bem preparada para negociar o Brexit, ainda tem vários pontos mal explicados em seu projeto. A oposição entende que o Tribunal Europeu deve ter seu poder reduzido sobre a Grã-Bretanha, mas defende que ele siga sendo utilizado para assuntos comerciais, como maneira de evitar futuros impasses jurídicos com investidores europeus no país.
Manutenção das regulamentações europeias
Os conservadores defendem uma revisão e flexibilização de diversos pontos das leis comuns europeias, sobretudo aquelas que regem as relações trabalhistas e à conservação do meio ambiente, com o objetivo de favorecer a indústria. Segundo a oposição, em seu programa de governo, “os tories queriam sair da UE para rasgar as regulamentações e enfraquecer direitos e proteções conquistados a duras penas”. Mesmo levando adiante o Brexit, Jeremy Corbyn promete manter intocadas as legislações herdadas do bloco europeu relativas a direitos trabalhistas, à defesa dos consumidores e à proteção ambiental.
Europeus residentes na Grã-Bretanha
Talvez o ponto que gerou mais controvérsia nas discussões entre o Reino Unido e a UE, a manutenção de direitos dos cidadãos europeus residentes na Grã-Bretanha é um dos aspectos em que os trabalhistas divergem mais claramente de Theresa May. Cerca de três milhões de europeus de outras nacionalidades vivem e trabalham no Reino Unido, e a atual premiê vem utilizando a presença deles como maneira de fazer pressão na busca por um acordo mais benéfico aos interesses britânicos: caso não tenha suas demandas atendidas, May vem ameaçando retirar os direitos dos cidadãos europeus, que hoje não precisam cumprir os trâmites burocráticos exigidos a outros imigrantes.
A resistência de May a um acordo mais pacífico sobre esse ponto ajudou a corroer sua popularidade, já que, seguindo a política de reciprocidade, a União Europeia ameaça retaliar com a retirada de direitos dos cidadãos britânicos residentes no continente – hoje, estimados em cerca de 1,2 milhão de pessoas. Antes de a atual primeira-ministra fazer uso do Artigo 50, os trabalhistas já haviam tentado resolver o impasse, sem sucesso. Em campanha, a oposição agora promete garantir os direitos de cidadãos da UE no momento em que tomar posse: em seu programa de governo, afirma que os imigrantes europeus “são parte de nossa sociedade” e “não devem ser usados como moeda de troca”.
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