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O que aconteceria se 60% dos americanos tivessem o poder de usar a bomba atômica?

Pesquisa de opinião pública antes da eleição de Donald Trump mostra como população adulta apoiaria decisão de lançar ataque aéreo nuclear para poupar soldados

Bomba atômica lançada pelos Estados Unidos devastou Hiroshima em 1945 | HANDOUT/
REUTERS
Bomba atômica lançada pelos Estados Unidos devastou Hiroshima em 1945 (Foto: HANDOUT/ REUTERS)

Cerca de 60% da população adulta dos Estados Unidos apoiaria uma decisão presidencial de lançar um ataque aéreo com bomba atômica contra uma cidade iraniana, matando 2 milhões de civis, se o bombardeio acontecesse em resposta a uma agressão anterior do governo do Irã e pudesse poupar a vida de 20 mil soldados americanos. E pouco menos da metade da população (48%) de fato preferiria que o presidente ordenasse o ataque atômico contra civis, se isso poupasse a vida de militares dos Estados Unidos. 

É o que sugere pesquisa de opinião pública conduzida em 2015 – antes da eleição de Donald Trump – e apresentada como parte do artigo acadêmico “Revisiting Hiroshima in Iran” (“Revisitando Hiroshima no Irã”), que aparece no periódico International Security, uma publicação conjunta de Harvard e do Massachusetts Institute of Technology (MIT). 

De autoria dos pesquisadores Scott D. Sagan e Benjamin A. Valentino, o trabalho tem por objetivo investigar a solidez da ideia de que existiria uma espécie de “tabu nuclear” na mentalidade americana, um veto moral e psicológico ao uso de armas atômicas. Esse tabu estaria evidenciado, por exemplo, na queda, ao longo das décadas, do apoio da opinião pública à decisão do presidente Harry S. Truman de usar bombas nucleares contra o Japão, na Segunda Guerra Mundial. 

Além disso, o estudo testa a presunção de que a opinião pública de uma democracia liberal, baseada em valores ligados aos direitos humanos, veria como inaceitável um massacre de civis não-combatentes. 

Os resultados da pesquisa mostram, de acordo com seus autores, que há circunstâncias em que a opinião pública do país estaria disposta tanto a ignorar o “tabu” quanto a abrir mão da sacralidade da vida dos não-combatentes. 

A situação hipotética apresentada pelos cientistas aos quase 800 respondentes da pesquisa foi construída de forma a traçar um paralelo com as condições que antecederam os ataques nucleares a Hiroshima e Nagasaki em 1945, incluindo um primeiro ataque iraniano contra forças americanas e a recusa do Irã em se render incondicionalmente, mesmo após uma série de bombardeios convencionais e um início de invasão terrestre. 

“Que cerca de 60% do público americano aprovaria um ataque nuclear contra o Irã, que mataria 2 milhões de civis, sugere que a queda no nível de apoio, encontrado em pesquisas recentes, à decisão de Truman de lançar as bombas em 1945 é um guia enganoso para a opinião pública sobre o uso nuclear hoje em dia”, escrevem os autores. 

Democracia 

Ao contrário do que sugere o senso comum, “democracias têm maior probabilidade, se comparadas a não-democracias, de atacar civis” em situações de guerra, aponta o cientista político Alexander Downes em seu livro “Targeting Civilians in War”, um levantamento da vitimização de civis em conflitos armados entre 1816 e 2003. 

“Democracias podem tender a vitimar mais não-combatentes por causa da vulnerabilidade de seus líderes à opinião pública”, escreve Downes. Em democracias, a liderança do país “teme os altos custos do campo de batalha, por conta do risco de perder o apoio doméstico”. 

O autor aponta, no entanto, que embora Estados democráticos tendam a vitimar mais a população civil do inimigo em caso de guerra, o regime não é, por si só, o fator decisivo nessa questão – a ele aparecem associadas uma série de “lógicas”, incluindo a “do desespero” e a da “punição”. Descrevendo a lógica do desespero, Downes escreve: “Estados – incluindo democracias – tendem a valorizar a vitória e a preservação das vidas de seu próprio povo acima da humanidade na guerra: o desespero supera as inibições morais”.

Já a “lógica da punição” vê o ataque contra civis como uma forma de coagir o inimigo a se render, solapando a vontade de lutar do povo. “A violência é dirigida aos não-combatentes na esperança de que eles se ergam e exijam que seu governo encerre a guerra”, diz o livro. 

Desumanização e culpa 

Caso o povo do país inimigo não se subleve seguindo o roteiro indicado pela “lógica da punição”, Sagan e Valentino apontam que a população civil atingida pode passar a ser vista, pelo país agressor, como causadores da própria desgraça. O artigo em International Security cita, nesse contexto, os trabalhos do psicólogo Stanley Milgram sobre obediência e o de Albert Brandura sobre desumanização do adversário

Em seu artigo “Moral Disengagement in the Perpetration of Inhumanities” (“Desengajamento Moral e a Perpetração de Desumanidades”), Brandura nota que “os mecanismos que governam a conduta moral não entram em ação a menos que sejam ativados”, e que “há muitas manobras psicológicas pelas quais a autocensura moral é seletivamente desengajada da conduta desumana”. 

“O processo de desumanização é ingrediente essencial para o cometimento de desumanidades”, escreve mais adiante, posição que é confirmada em algumas das justificativas, dadas pelos respondentes da pesquisa de Sagan e Valentino: quando os autores pediram que os entrevistados justificassem suas respostas, parte dos que defenderam o bombardeio nuclear referiram-se aos iranianos como “selvagens” ou “baratas”. 

“Os resultados revelam que um cálculo utilitário sobre salvar vidas americanas e terminar a guerra rapidamente, bem como uma atribuição retrospectiva de culpa, podem ter motivado a preferência dos respondentes pelo ataque aéreo”, diz o artigo. Os autores ainda acrescentam: “Foi surpreendente o número de americanos que sugeriu que os civis iranianos mereciam culpa, ou eram menos que humanos”. 

 “Culpar o adversário ou as circunstâncias é ainda outro expediente que pode servir para o propósito de exoneração pessoal”, destaca Brandura. “Nesse processo, as pessoas veem a si mesmas como vítimas inocentes, forçadas a adotar uma conduta nociva por conta de uma provocação grave. A conduta punitiva, então, é vista como defesa justificável contra provocações beligerantes”. 

Pena de morte 

Há pesquisas que apontam uma associação entre a crença em justiça retributiva – a ideia de que a pena por um crime deve não apenas servir como dissuasão ou reparação, mas também para fazer o criminoso “pagar”, ou sofrer, pelo que fez – e o apoio à pena de morte, tortura e ações militares. 

No artigo “War and Revenge: Explaining Conflict Initiation by Democracies” (“Guerra e Vingança: Explicando a Iniciação de Conflitos por Democracias”), a cientista política Rachel M. Stein estuda a correlação entre uso da pena de morte e belicosidade de um país, e constata que “democracias que mantiveram a pena de morte por longos períodos de tempo têm probabilidade significativamente maior de iniciar conflitos”. 

Tratando da opinião pública a respeito da Guerra do Golfo de 1991, outro cientista político, Peter Liberman, encontrou uma associação entre apoio à pena de morte e o apoio à guerra, à aceitação das baixas causadas no Iraque e à ideia, que não vingou na época, de escalar o conflito até a remoção de Saddam Hussein do poder. 

Sagan e Valentino, por sua vez, escrevem que “nossas pesquisas mostram uma forte atração por retribuição, e uma tendência de indivíduos racionalizarem a morte de terceiros alegando que a culpa é deles”. Eles notam que “americanos que aprovam a pena de morte tiveram mais de duas vezes a probabilidade de preferir o taque aéreo [contra civis iranianos] (67,3%) do que os americanos que são contra a pena de morte (31,5%)”. 

Os autores evitam generalizar seus resultados para a opinião pública de outros países, lembrando que os Estados Unidos são um caso excepcional, entre as democracias ocidentais, no que diz respeito ao uso da pena de morte – o que pode sugerir que sejam, também, um caso excepcional na preferência pelo uso de armas nucleares. 

Brandura, no entanto, aponta que desumanização, transferência de culpa para a vítima e desengajamento moral são fenômenos que aparecem em diversos momentos e em diversas sociedades. Seu artigo sobre condutas desumanas, “Moral Disengagement in the Perpetration of Inhumanities” traz exemplos que vão do Holocausto à Guerra do Vietnã. 

“As pessoas não se envolvem, ordinariamente, em condutas nocivas até que tenham justificado a moralidade de suas ações para si mesmas”, escreve. “Nesse processo de justificação moral, a conduta deletéria torna-se aceitável, nos níveis pessoal e social, quando é apresentada como servindo a propósitos morais ou sociais dignos”.

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