Eram os últimos dias do remoto ano de 1992. As pessoas se preparavam para o Réveillon quando veio a notícia – na minha casa, pelo rádio AM, provavelmente no programa do Pirajá Ferreira: Daniella Perez, de apenas 22 anos, a Yasmin da novela De Corpo e Alma, escrita por sua mãe, Glória Perez, tinha sido encontrada morta num matagal, com o corpo todo perfurado pelo que mais tarde se descobriu ser uma tesoura.
O assassinato em si é uma tragédia, mas piora. Porque os assassinos daquela que todos acreditavam ser a futura “namoradinha do Brasil” foram ninguém menos do que o par romântico da atriz na novela, Guilherme de Pádua, e a esposa dele à época, Paula Thomaz. Eles foram condenados a 19 anos, dos quais cumpriram os seis anos regulamentares de acordo com o generoso Código Penal brasileiro.
As memórias daquele assassinato muito real, mas com toques folhetinescos, vieram à tona no fim de semana, depois que o ator José de Abreu escreveu um tuíte estupefato (estão lá os dois pontos de exclamação que não me deixam mentir) diante do fato de Glória Perez e Guilherme de Pádua supostamente compartilharem da mesma predileção política, isto é, por Jair Bolsonaro.
Abreu costuma sair incólume desse tipo de diatribe, como na ocasião em que teria cuspido e xingado um casal num restaurante de São Paulo. Desta vez, contudo, a vítima não se calou. Glória Perez xingou o ator de canalha, o bloqueou e, sem ser explícita, mencionou uma tragédia pessoal de que Zé de Abreu foi vítima e que alguém poderia usar para revidar a agressão. José de Abreu pediu desculpas daquele modo que lhe é característico, ou seja, sem se arrepender de fato.
E a história teria morrido aí, não tivesse o Presidente da República prestado solidariedade à mãe ofendida.
Inimigos por todos os lados
A conduta de José de Abreu só reforça sua imagem como a de um homem que abnegou da humanidade para ser apenas um “ser político” – isto é, uma pessoa cuja vida gira em torno da guerra ideológica, com suas simplificações grosseiras e suas consequências nefastas para a alma. José de Abreu não é o único a ter sucumbido aos encantos dessa visão de mundo profundamente artificial e desumanizante. Ele parece ser apenas a parte mais histriônica deste fenômeno que afeta nossa vida em casa, no trabalho, na escola e sobretudo nas reuniões familiares.
A politização extrema do cotidiano tem este efeito colateral: transforma todos em ativistas de alguma causa que, para ter relevância, precisa de inimigos. De Lula Livre aos canudinhos plásticos, passando até mesmo pela defesa apaixonada da liberdade, tudo é motivo para o confronto, com a consequência aniquilação, ainda que simbólica, do outro. Eis o verdadeiro flagelo do tal materialismo dialético: a instrumentalização da violência para a concretização da vingança ardilosamente disfarçada de justiça.
Esse tipo de postura transforma a vida numa interminável batalha na qual até mesmo o motorista de Uber se considera na obrigação de agir como herói da sua causa ao se recusar a transportar uma pessoa que, por sua vez, estava lá agindo como herói nas fileiras inimigas. Outra coisa que ajuda a alimentar esse fascismo light, cotidiano, quase inconsciente e natural é o medo – muitas vezes encenado, é verdade, e sempre muito útil para se arregimentar soldados.
Repare como hoje estamos cercados por medos que até ontem não existiam, ou talvez até existissem, mas não tornavam o convívio pacífico dos contrários impraticável. Medo da palavra que vai ofender, da risada que vai chatear, da opinião que vai corromper, da Medida Provisória que vai acabar com o oxigênio do mundo, da reforma trabalhista que vai transformar todo mundo em escravo, do decreto que obrigará todo mundo a andar armado.
Neste clima de conflagração, as relações humanas são reduzidas a posicionamentos políticos. O tiozão do churrasco cujo único pecado até anteontem era ser um chato com meia-dúzia de piadas repetitivas e sem graça de repente se torna símbolo de algo que precisa ser destruído – neste caso, o patriarcado. A vizinha que vai à Missa, reza o terço e aqui e ali recita uns versículos que a muito custo decorou de repente é a encarnação da opressão de toda a Civilização Ocidental. O homem branco que fica num canto em silêncio se torna racista só porque lhe falta melanina. E o churrasqueiro nada mais é do que a personificação da maldade perpetrada contra as espécies domesticadas por nossos antepassados todos muito malvados.
A realização do ser político
No momento em que escrevo este texto, há um sem-número de xingamentos e pedidos de retaliação contra o ator José de Abreu por causa de suas palavras insensíveis. A tudo o ator responde com mais xingamentos, com correções da ortografia alheia – que é um artifício bastante comum para se afetar superioridade intelectual, quando não moral –, com ameaças de processo e reproduzindo manifestações de apoio que parecem servir para conferir um caráter universal à sua guerrinha muito particular.
O ator, recentemente sentenciado a pagar uma indenização de R$20 mil ao hospital Albert Einstein por ter dito que a instituição estava envolvida numa grande conspiração para eleger Jair Bolsonaro, também gasta seu tempo divulgando uma campanha de financiamento coletivo entre seus fãs.
E é assim, em meio a este tornado, que o ser político, José de Abreu ou qualquer outro, se realiza plenamente. Não há espaço para perdão ou a solidariedade. Arrependimento é visto como fraqueza. O silêncio, como covardia. O que há é somente um ciclo vicioso de injustiça (e tudo é visto como injustiça), vingança e ressentimento.
Diante do que me é impossível acompanhar o coro da execração pública. O ser político, o ativista que abdicou da vida para se tornar bandeira, deve ter garantido um palco para si, de onde ele possa esbravejar e, aqui e ali, soltar perdigotos que são pura mágoa.
Nem que seja só para os virtuosos (eles ainda existem) se lembrarem de como não se deve agir.