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Progressismo

O que é a cultura do cancelamento

A premissa dos militantes progressistas é a de que quem foge dos ditames politicamente corretos do momento merece não apenas uma reprimenda ou advertência, mas deve ser boicotado e removido de qualquer posição de destaque.
A premissa dos militantes progressistas é a de que quem foge dos ditames politicamente corretos do momento merece não apenas uma reprimenda ou advertência, mas deve ser boicotado e removido de qualquer posição de destaque. (Foto: Pixabay)

Em dezembro de 2018, quando os organizadores do Oscar anunciaram que o humorista Kevin Hart seria o apresentador da cerimônia do ano seguinte, ele comemorou: “Estou estupefato, simplesmente porque esse tem sido um objetivo na minha lista por muito tempo”. Mas a alegria não durou muito tempo.

De imediato, militantes de esquerda desenterraram algumas piadas que Hart havia feito no Twitter e em um show entre 2009 e 2011. Em meio a pressão, inclusive da própria organização do Oscar, ele aceitou abrir mão do posto.

Foi-se o tempo em que os artistas americanos precisavam se preocupar apenas com seu trabalho. Em um ambiente de exposição virtual exacerbada e de radicalismo político – neste caso, quase sempre por parte da esquerda –, episódios como esse se tornaram frequentes. É a chamada “cancel culture”, ou cultura do cancelamento.

A premissa dos militantes progressistas é a de que quem foge dos ditames politicamente corretos do momento merece não apenas uma reprimenda ou advertência, mas deve ser boicotado e removido de qualquer posição de destaque. Neste sentido, o sentido de “cancelamento” talvez esteja mais próximo da sua raiz latina “cancellare”, que significa “apagar”, “eliminar”.

Existe uma espécie de manual informal, segundo o qual os pecados imperdoáveis envolvem tudo o que pode ser interpretado, mesmo que remotamente, como racismo, machismo e homofobia. Em outras áreas, o rigor é menor. Um artista pode fazer uso ostensivo de drogas ou trair a esposa sem ter de encarar as mesmas consequências. Mas o uso de uma palavra errada, como “nigger” (com sentido semelhante a “crioulo”) é inaceitável.

Com frequência, as próprias vítimas da “cancel culture” são figuras de esquerda que ajudaram a politizar a arte e o entretenimento. A comediante Sarah Silverman, por exemplo, perdeu o papel em um filme depois que o diretor descobriu uma esquete de 2007 na qual aparece com o rosto pintado com tinta negra – o que é um caso grave de racismo no manual progressista. A ironia é que, nas cenas que motivaram o cancelamento, Sarah tentava justamente usar de ironia para atacar o racismo.

Se a “cancel culture” estivesse sido implementada algumas décadas atrás é possível que a carreira de muitos artistas de renome tivesse sido mais curta. Frank Sinatra, por exemplo, fez piadas que hoje seriam consideradas homofóbicas e racistas, especialmente quando fazia parte de um grupo informal de músicos chamado Rat Pack. O pintor Pablo Picasso, frequentemente acusado de machismo , talvez tivesse sido “cancelado”.

Aliás, nem a morte é garantia de imunidade. A cantora Kate Smith, cujo auge aconteceu nos anos 30 e 40, foi “cancelada” de forma póstuma no início deste ano. O time de baseball Yankees, de Nova York, e o a equipe de futebol americano Eagles, da Philadelphia, pararam de reproduzir a tradicional versão de Kate para “God Bless America” antes de seus jogos. O motivo: vieram a tona músicas em que ela se referia aos negros em tom depreciativo.

Além do entretenimento

Em campus universitários americanos, por exemplo, se tornou comum entidades de esquerda mobilizarem-se para impedir palestras de qualquer convidado conservador – mesmo os mais moderados.

A Nike cancelou uma linha de tênis que exibia a Betsy Ross – primeira bandeira dos Estados Unidos – porque, para parte do público, os produtos remetiam indiretamente ao passado escravagista.

O restaurante de fast-food Chick-fil-A, um dos mais populares dos Estados Unidos, se transformou em um alvo preferencial da esquerda desde que veio à tona que os proprietários da companhia haviam feito doações para grupos conservadores cristãos, entre eles organizações que defendiam o casamento tradicional, entre homem e mulher. Neste caso, o boicote foi além do público. Neste ano, a Câmara de Vereadores de San Antonio, no Texas, se recusou a conceder uma licença para que o Chick-fil-A abrisse uma filial no aeroporto da cidade. Em 2016, o prefeito de Nova York, o democrata Bill de Blasio, também incentivou um boicote à rede de restaurantes.

Ainda em 2014, o CEO da Mozilla, empresa responsável pelo Firefox, foi forçado a renunciar depois de vir à tona a informação de que ele doara uma pequena quantidade de dinheiro para a campanha contra o casamento gay na Califórnia seis anos antes.

Por que a cultura do cancelamento se tornou tão agressiva?

Uma das explicações tem a ver com a polarização. Os Estados Unidos estão divididos não apenas politicamente, mas culturalmente e geograficamente.

Os moradores das grandes cidades, mesmo que distantes uma das outras, têm valores parecidos. É perfeitamente possível passar a vida toda sem ter um contato direto com subculturas mais conservadoras, ou mesmo com o chamado “homem mediano”, que não acredita que um comediante deva ser punido por fazer piadas com um grupo específico de pessoas. A homogeneidade cria uma falsa ideia de consenso.

O fenômeno, frequentemente citado como uma das causas da eleição de Donald Trump, é descrito pelo pesquisador Charles Murray no livro Coming Apart , lançado em 2012. Ele analisa a formação de uma nova elite cultural “que, cada vez mais, vive no seu próprio mundo”. O americano médio nunca foi a Manhattan ou Holywood, não frequenta saraus artísticos e provavelmente não está no Twitter – e, se estiver, tem pouco tempo para vigiar o comportamento de artistas de Holywood. No fim, a “cultura do cancelamento” é promovida por uma minoria, mas uma minoria cada vez mais barulhenta e articulada.

Em um artigo para o City Journal, Robert Henderson chamou atenção para um aspecto importante desse comportamento inquisitório: ele traz ganhos imediatos para quem o promove. Denunciar o racismo e a homofobia traz, além de um sentimento de realização pessoal, a admiração das pessoas em redor. “A cultura do cancelamento veio para ficar. As recompensas sociais são imediatas e gratificantes, e os perigos são muito distantes e abstratos”, diz ele.

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