Há menos de dez anos, a esquerda dominava a política nacional. Em 2011, por exemplo, o PT e seus aliados controlavam mais de 80% do Congresso. Na oposição, estavam apenas PSDB, PPS e DEM. Os dois primeiros diziam-se de esquerda e o terceiro fazia questão de se afirmar como centrista. Hoje, o cenário se inverteu: o presidente da República e boa parte do Congresso se identificam como conservadores, e organizações dedicadas à defesa do conservadorismo se multiplicaram país afora.
Mas, no fim das contas, o que é o conservadorismo? A resposta não é tão simples.
O conservadorismo não é um conjunto de doutrinas, mas uma atitude de apreço pelas tradições e costumes, e de desconfiança quanto a modelos pré-fabricados de sociedade. O socialismo é um movimento internacional, enquanto o conservadorismo é local. Existe uma Internacional Socialista desde 1951, mas não uma Internacional Conservadora. Por isso, partidos socialistas no Brasil e na Europa têm doutrinas parecidas, o que não necessariamente acontece com as siglas conservadoras.
Isso não significa que é impossível definir o conservadorismo de forma objetiva.
Na filosofia política, o irlandês Edmund Burke (1729-1797) costuma ser identificado como o primeiro teórico do conservadorismo. Sua obra clássica é “Reflexões sobre a Revolução em França” (1790), em que ele apresenta uma crítica rigorosa da Revolução Francesa apenas um ano depois dos acontecimentos que derrubaram o rei Luís XVI.
A pretensão dos revolucionários era criar, do zero, um novo tipo de sociedade: uma fraternidade universal dos homens, baseada na “solidariedade” e não mais na ideia de comunidade, família, pátria ou religião (os revolucionários chegaram a transformar a Catedral de Notre Dame em um templo à “deusa” Razão). Para Burke, isso levaria a um banho de sangue seguido por uma ditadura. Foi exatamente o que aconteceu.
Burke se recusava a concordar que uma elite revolucionária tivesse poder absoluto sobre os rumos da nação, e que nenhuma esfera da sociedade esteja protegida à vontade do governante da ocasião.
“Quando homens de alta classe sacrificam todas as ideias de dignidade a uma ambição sem objeto definido, e trabalham para objetivos vis com instrumentos indignos, todos os espíritos se tornam baixos e desprezíveis. Não vemos algo semelhante aparecendo na França neste momento? E seu resultado não é ignóbil e inglório?”, escreveu.
Onde o revolucionário vê apenas o indivíduo submisso ao Estado (e, por isso, atomizado), o conservador vê uma variedade de degraus que incluem a família, a comunidade e a igreja.
“O amor à classe, ao pequeno núcleo ao qual pertencemos na sociedade, é o primeiro princípio - o germe, por assim dizer - de nossas afeições públicas. Este é o primeiro elo da corrente que nos liga a nossa pátria e à humanidade”, afirmou Burke.
A obra do pensador britânico oferece uma exposição dos princípios do conservadorismo, especialmente os da prudência e do ceticismo.
Na prática, isso significa a defesa de mudanças graduais e reversíveis, em vez de rupturas radicais. O conservador não acredita em um modelo pronto de sociedade, mas olha para a experiência do passado em busca de conservar o que merece ser conservado e modificar, cautelosamente, o que precisa ser modificado.
“Um Estado onde não se pode mudar nada não tem meios de se conservar. Sem meios de mudança, ele arrisca perder as partes de sua Constituição que com mais ardor desejaria conservar”, escreveu Burke.
Mas Edmund Burke não era um sistematizador. Ele nem mesmo usa o termo “conservadorismo” em sua obra. Esse papel seria exercido por Russell Kirk (1918-1994), um dos mais influentes pensadores americanos do século 20.
Sintetizando os pensamentos de Burke e de outros teóricos, Kirk elaborou uma lista de dez princípios conservadores. Os tópicos incluem a prudência, a crença na imperfectibilidade humana, a defesa da liberdade e da necessidade de restrições ao poder do Estado.
Mas talvez o traço mais importante seja a crença em uma “ordem natural permanente”, nas palavras de Kirk. Este é o primeiro item da lista: “O conservador acredita que existe uma ordem moral duradoura. Esta ordem foi feita para o homem, e o homem foi feito para ela: a natureza humana é constante, e as verdades morais são permanentes”.
Kirk estava apenas articulando de forma explícita aquilo que os fundadores dos Estados Unidos haviam expressado na Declaração de Independência do país: os direitos não são meras criações sociais, mas existem porque o homem foi criado por Deus. Nas palavras da Declaração: “Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados”.
Portanto, a defesa do governo limitado, da família tradicional e da inviolabilidade da vida humana, tão cara aos conservadores, é em grande parte a consequência da crença nessa ordem moral duradoura que assegura direitos inalienáveis. Esses direitos não estão sujeitos à vontade do governante do momento.
No século 20, especialmente nos Estados Unidos, o movimento conservador se consolidou como uma aliança de anticomunistas, defensores do livre mercado (o chamado liberalismo econômico) e cristãos apegados a valores tradicionais. Ronald Reagan, que presidiu o país entre 1980 e 1988, foi o maior símbolo dessa coalizão conservadora.
Com sua evolução, o conservadorismo acabou incorporando pautas que não estavam no centro do debate na época de Burke. Uma delas é a oposição ao aborto. Hoje, com base no avanço das técnicas da medicina, é possível sustentar que o embrião é uma vida separada da mãe, e que por isso também merece proteção legal.
Além disso, os conservadores adotaram uma defesa mais enfática das políticas de livre mercado, influenciados sobretudo nas obras de economistas como Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, que demoliram os pressupostos econômicos socialistas.
Hoje, as ideias do movimento conservador americano são quase indistinguíveis da plataforma do Partido Republicano, de Donald Trump (o magnata, aliás, foi duramente criticado por parte de seus correligionários na campanha de 2016 por não ser um conservador legítimo).
Brasil
O conservadorismo como filosofia política é uma tradição majoritariamente nos países de língua inglesa. Será possível falar em um conservadorismo brasileiro? Grosso modo, sim. É que diz o cientista político Paulo Kramer, professor aposentado da Universidade de Brasília e autor de um livro sobre o assunto.
Kramer lembra que os chamados Saquaremas, bloco parlamentar conservador durante o reinado de Dom Pedro II, foram os maiores representantes de uma tradição conservadora que gerou estadistas como Duque de Caxias e o Visconde do Rio Branco.“Eles não só garantiram a nossa unidade terrotirial como avançaram na senda gradualista de reformas seociais importantes”, diz ele, lembrando que os conservadores encamparam bandeiras tidas como liberais, como a Lei do Ventre Livre. Mas a consolidação de uma tradição conservadora brasileira foi prejudicada pela proclamação da República em 1889. Isso aconteceu outras vezes ao longo do Século 20.
Ao longo do regime militar, por exemplo, lideranças como Carlos Lacerda acabaram escanteadas pela ditadura, ainda fortemente influenciada pelo mesmo autoritarismo de cunho positivista que motivara, em grande parte, a derrubada da monarquia.
No Brasil pós-ditadura, o termo “conservador” acabou sendo empregado, pejorativamente, para classificar políticos mais interessados em benesses do que no debate de ideias. “O desafio para quem defende o conservadorismo burkeano no Brasil é se distanciar da herança ruim da tradição patrimonialista ibero-americana”, afirma o professor Kramer.
Mais recentemente, o Brasil viu surgir um tipo conservadorismo forte em matéria de tradição e defesa dos chamados valores morais, mas não necessariamente prudente quanto às mudanças graduais, cético quanto ao poder do Estado ou zeloso com as instituições. A acensão de Jair Bolsonaro ao poder consolidou, para muitos, a ideia de que os conservadores são simplesmente aqueles que apoiam o governo.
É provável que ainda seja cedo para definir se o bolsonarismo será reconhecido como a renovação do conservadorismo no Brasil ou, pelo contrário, como uma perversão dos verdadeiros princípios conservadores.
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