A definição de liberalismo, como quase toda definição em política, é tema de debates sem fim. Em primeiro lugar, talvez preciso distinguir o que não é liberalismo. Por exemplo: a esquerda americana que adotou o rótulo de “liberal” é hostil ao liberalismo clássico. Aquilo que os esquerdistas brasileiros chamam de “neoliberalismo” não necessariamente tem a ver com as ideias liberais. E quem for olhar para o programa do Partido Liberal (comandado pelo corrupto condenado Valdemar Costa Neto) dificilmente vai encontrar inspiração.
De forma ampla, assim como o socialismo preconiza socialização dos meios de produção e o conservadorismo prioriza a conservação de valores tradicionais, o liberalismo prima pela liberdade. “Entre os princípios do liberalismo estão a tolerância, o pluralismo, a liberdade de expressão, o estado de direito e a ênfase na sociedade civil em vez de no governo”, afirma Lucas Freire, professor do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica.
“O liberalismo clássico é uma doutrina política que toca vários aspectos da liberdade humana na tentativa de reduzir ao mínimo necessário o uso da coerção e da violência na sociedade, notadamente pelo Estado”, ele complementa.
Os liberais acreditam que os seres humanos, por serem naturalmente dotados de razão, têm capacidade de fazer escolhas sem serem tutelados. Para eles, a liberdade não é uma concessão do Estado, mas uma característica inerente ao ser humano. As implicações desse princípio são muitas. Por exemplo: a priori, boa parte das leis trabalhistas são desnecessárias, já que um empregado aceita livremente as condições de trabalho propostas pelo patrão. Desde que o empregador não descumpra o contrato, não há porque interferir.
“O liberalismo, no seu sentido clássico, é a única abordagem verdadeiramente humanística para a análise social, econômica e política, já que ele tem foco no indivíduo, não em conceitos imaginários como ‘sociedade’, ‘comunidade’ ou mesmo ‘nação’”, afirma o doutor em economia Christopher Lingle, professor da Universidade Francisco Marroquín, na Guatemala - uma das instituições de ensino mais importantes na propagação das ideias liberais na América Latina.
Mais do que apenas economia
Na opinião popular, o liberalismo por vezes é tratado como sinônimo de liberdade econômica. Mas, na verdade, os liberais formam uma corrente de pensamento mais abrangente que tem início antes de Adam Smith, o pensador escocês célebre por sua defesa do livre comércio entre as nações e responsável pela ideia de que o mercado é gerido por uma “mão invisível”.
Há referências a ideias similares em autores antigos e medievais. No século 17, pensadores como o inglês John Locke trataram mais claramente da necessidade de um Estado limitado, que reconhecesse os direitos individuais e respeitasse a esfera privada. Era um liberalismo também político, que reconhecia a autoridade do Estado desde que houvesse consentimento dos governados.
“É incoerente tentar separar o liberalismo político do liberalismo econômico. Permitir que os governos ou outros indivíduos usem de força, dentro ou não da lei, para retirar a propriedade das pessoas torna impossível para os seres humanos atingir seus propósitos de vida (pacíficos e escolhidos voluntariamente)”, afirma Lingle.
Ainda assim, há casos complexos. O chile do ditador Augusto Pinochet, por exemplo, implementou um bem-sucedido programa de liberalização da economia ao mesmo tempo em que perseguia e assassinava milhares de opositores. “Duvido que qualquer liberal apoiasse, para além da política econômica de Pinochet, perseguição política associada a assassinatos e torturas. A ‘cartilha’ liberal é clara neste sentido. Sempre que pudermos fazer algo para avançar com reformas descentralizadoras, de livre mercado, o faremos. No mundo real, infelizmente, isso por vezes significa optar pelo ‘menos pior’”, afirma Dennys Xavier, professor de Filosofia na Universidade Federal de Uberlândia e organizador de uma coletânea de livros sobre autores liberais.
Autores como Locke escreviam em uma Europa ainda repleta de regimes absolutistas e de conflitos religiosos. Por isso, muitos deles enfatizavam a necessidade de tolerância: em vez de um estado católico ou protestante, por exemplo, era necessário um que concedesse plena liberdade de culto a seus cidadãos. Em seu Segundo Tratado sobre o Governo, publicado em 1689, John Locke explicou desta forma a sua defesa da liberdade como princípio inegociável: “A liberdade natural do homem deve estar livre de qualquer poder superior na Terra e não depender da vontade ou da autoridade legislativa do homem, desconhecendo outra regra além da lei da natureza. A liberdade do homem na sociedade não deve estar edificada sob qualquer poder legislativo exceto aquele estabelecido por consentimento na comunidade civil; nem sob o domínio de qualquer vontade ou constrangimento por qualquer lei, salvo o que o legislativo decretar, de acordo com a confiança nele depositada.” Para Locke, a liberdade é concedida ao homem por Deus, e portanto não pode ser retirada arbitrariamente pelo Estado.
As ideias ecoariam em autores como Frederic Bastiat, que publicou o seu livro A Lei mais de 150 anos depois: “A vida, a liberdade e a propriedade não existem pelo simples fato de os homens terem feito leis. Ao contrário, foi pelo fato de a vida, a liberdade e a propriedade existirem antes que os homens fossem levados a fazer as leis”.
Outro que faz parte do rol dos liberais é o inglês John Stuart Mill, que era contemporâneo de Bastiat e escreveu o célebre livro Ensaio sobre a Liberdade. Na obra, ele reconhece a necessidade do Estado, mas afirma que não deve haver interferência quando um indivíduo não atinge a liberdade de terceiros. “A liberdade do indivíduo deve ser, (…) em grande parte, limitada: ele não deve tornar-se prejudicial aos outros. Mas, se ele se abstém de importunar os outros no que lhes concerne, e meramente age segundo a própria inclinação e julgamento em assuntos que dizem respeito a ele próprio, as mesmas razões que demonstram dever a opinião ser livre provam também que se lhe deve permitir, sem o importunar, que leve à prática as suas opiniões à própria custa."
Ao longo dos anos, parte das ideias do liberalismo político acabou sendo incorporada pelas nações ocidentais, e de forma tão arraigada que mesmo parte da esquerda adotou essas bandeiras. A defesa dos chamados direitos LGBT, por exemplo, usa argumentos similares ao dos liberais clássicos para argumentar que o estado deve tomar uma posição neutra quanto ao casamento, não importando se os noivos são um casal de homem ou mulher ou um par de pessoas do mesmo sexo.
É, talvez, por causa dessa assimilação das ideias liberais na organização da vida civil que o termo liberalismo hoje se tornou mais usado para se referir a temas econômicos. Certamente ajuda o fato de autores liberais de grande influência terem surgido no século 20 – entre eles Ludwig von Mises e Friedrich Hayek.
Além disso, mais ou menos ao mesmo tempo, o liberalismo econômico se aproximou do conservadorismo político (a presença de Paulo Guedes no governo de Jair Bolsonaro é apenas o mais recente exemplo dessa aliança). A política econômica do conservadorismo contemporâneo é, em larga escala, liberal.
Aliás, muitos conservadores de hoje afirmam que em nada diferem dos liberais clássicos, e que só adotaram uma nova nomenclatura para se diferenciar das concepções distorcidas de liberalismo. Mas Hayek, por exemplo, via diferenças essenciais entre as duas correntes. Ele chegou a assinar um artigo cujo título é “Por que não sou conservador”. No texto, ele afirma: “A luta pela supremacia entre conservadores e progressistas só afeta o ritmo, não o rumo dos acontecimentos contemporâneos. E, embora seja necessário frear o ritmo da evolução de determinadas políticas, pessoalmente não posso limitar-me a ajudar a puxar o freio. Acima de tudo, os liberais devem perguntar não a que velocidade estamos avançando, nem até onde iremos, mas para onde iremos”, escreveu ele. Mais além, Hayek diz que “uma das principais características da atitude conservadora é o medo da mudança, uma desconfiança tímida em relação ao novo enquanto tal, ao passo que a posição liberal se baseia na coragem e na confiança, na disposição de permitir que as transformações sigam seu curso, mesmo quando não podemos prever aonde nos levarão.”
Outra diferença dos liberais para os conservadores é o fato de os primeiros, de forma geral, abrigarem opiniões mais diversas em temas como a legalização das drogas e o aborto. O célebre economista liberal Milton Friedman, por exemplo, era favorável à legalização da maconha.
Por não acreditar em um modelo fechado de sociedade, o liberalismo passou a abrigar ideias cada vez mais plurais com o passar do tempo: de uma forma ou de outra, os herdeiros intelectuais de Locke, Bastiat e Mill podem hoje ser encontrados entre libertários, anarco-capitalistas e liberais mais moderados, alguns dos quais defensores de programas como o Bolsa-Família.
Esse debate constante também significa que episódios excepcionais, como a pandemia de coronavírus, podem trazer novos desafios aos pensadores liberais. “O liberalismo se tornou ainda mais relevante, porque nós temos visto violações grotescas das liberdades civis das pessoas, inclusive o direito à liberdade religiosa. E logicamente o resultado disso vai ser deletério”, afirma o professor Lucas Freire.
Para Dennys Xavier, a maior intervenção estatal na economia durante a crise do coronavírus ( que inclui a distribuição de auxílios financeiros a cidadãos e empresas) não refuta as ideias liberais porque elas não constituem um manual inalterável. “Qualquer liberal sabe que o Estado avança e retrai em função de situações concretas”, afirma ele. Além disso, o professor diz que as economias mais liberalizadas são as que conseguem acumular riquezas para agir de forma eficaz em casos de emergência. “Quais serão os países que ajudarão os seus cidadão de modo mais efetivo, os historicamente mais estatizados ou os menos estatizados?”, indaga.