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“Preste atenção”.
É uma exortação comum, talvez de um pai em pânico para uma criança arteira ou de um professor tolerante para um aluno sonolento ou ainda de um mestre zen para seu discípulo distraído. Assim como nosso tempo, nossa atenção também é limitada e, assim, aquilo a que dedicamos nossa atenção é muito importante.
Passamos algumas horas de nossas vidas prestando atenção a um livro sobre a privacidade no mundo digital e escrito pela filósofa e psicóloga Shoshana Zuboff. O livro de Zuboff descreve a evolução e o impacto da publicidade em serviços como o Google e o Facebook. Por isso, ela, talvez pudesse ter chamado seu livro de “Prestando Atenção” [aqui o autor faz um trocadilho que poderia ser traduzido literalmente como “pagando a atenção”]. Mas essas duas palavras são neutras e isentas demais para falar sobre transações virtuais que envolvem a sua atenção.
O livro de Zuboff é bastante opinativo e todas as opiniões apoiam a tese de que muitas inovações no setor de tecnologia, sobretudo as criadas pelo Google, prejudicam tanto os consumidores quanto a sociedade. Assim, é bem mais adequado o título que ela de fato escolheu: The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power [A era do capitalismo vigilante: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder].
Título carregado
Assim como no livro todo, ninguém deve considerar neutras as palavras “vigilante” e “capitalismo” no título. Cada uma dessas palavras expressa um aspecto fundamental da visão de Zuboff quanto às dinâmicas de poder em ação na coleta comercial e no uso pessoal da informação.
A palavra “vigilância” expressa alguém ou algo que está observando outra coisa de uma posição superior. A palavra entrou para o léxico inglês a partir dos "comités de surveillance" (comitês de observação) criados durante o Reino do Terror na França. Nesse contexto, a vigilância levou a execuções.
O mesmo serve para “capitalismo”. Ainda que a palavra às vezes seja usada de forma benigna hoje em dia por aqueles que defendem o livre mercado e o comércio, a palavra “capitalismo” teve um começo maligno. O historiador Fernand Braudel conta como os primeiros a usarem a palavra descreviam uma espécie de patologia social que situa a busca pela riqueza como algo central na vida social.
A combinação que Zuboff faz entre “vigilância” e “capitalismo”, pois, representa as inovações que ela ataca como uma dinâmica de poder injusta e cheia de ganância, humilhando-as desde o começo da discussão. A semântica do “capitalismo vigilante” se transforma num argumento convincente antes mesmo que o leitor leia a primeira página. O título, pois, revela que a professora Zuboff é partidária de um dos lados nesse antigo debate.
E o título é só o começo. Na primeira página do livro, Zuboff define o capitalismo vigilante como “uma lógica econômica parasitária (...) uma mutação absurda” e “um golpe da elite”. Zuboff raramente tem algo de bom para falar sobre um conjunto de empresas que geraram um enorme valor econômico para o mundo e criaram serviços benéficos aos consumidores. Apesar dessa visão partidária sob a qual surge exuberante sua retórica bombástica – que certamente intrigará e irritará os que não fazem parte de seu coro — Zuboff identifica três temas presentes na economia da informação e que valem a pena ser explorados.
Temas que valem a análise
Antes de mais nada, Zuboff está preocupada com a comercialização excessiva da vida virtual. Essa crítica não se restringe ao mundo virtual – trata-se de uma preocupação comum das pessoas relativamente ricas que preferem lojinhas no centro, enquanto seus semelhantes menos afortunados aproveitam os preços baixos do Walmart. Ainda assim, é provável que todos concordem que deveria haver espaços virtuais e reais não dominados por marqueteiros anunciando suas mercadorias. Mas levando em conta que, como no exemplo do varejo, as pessoas estabelecem diferentes limites para diferentes lugares, não seria melhor permitir a existência de múltiplas opções?
Em segundo lugar, Zuboff diz que boa parte da aquisição de informações pessoas por parte das empresas é moral ou juridicamente errada. Ela diz que empresas de tecnologia estão “expropriando” as pessoas de informações sobre si mesmas, sugerindo que as empresas estão, em essência, roubando informações pessoais. Mas isso não reflete a nossa experiência online.
A maior parte dos dados que o Google coleta a meu respeito é obtida por meio da minha interação com os computadores de outras pessoas. Por que observar essa interação seria um “roubo”? Quanto ao fato de os consumidores cederem ativamente as informações, eles geralmente estão fazendo isso ao se submeterem a um contrato. Zuboff diz que não há benefício nessa troca de informações, exceto para as empresas. Isso talvez surpreenda os que já usaram serviços comercialmente importantes disponíveis graças a essas informações e que as empresas usam para satisfazer os interesses tanto dos consumidores quanto os da própria companhia,
Por fim, Zuboff diz que os consumidores são relativamente incapazes de entender como as informações pessoais são coletadas, armazenadas, compartilhadas e usadas. Concordamos. Os usuários não entendem os riscos disso. As empresas estão numa relação de relativo poder ao reunirem mais informações do que precisam, usando-a às vezes de uma forma que o consumidor não gostaria. Mas a tolerância ao risco nesse espaço é bem diferente (exceto pelo roubo de identidade) e é improvável que os céticos consigam calcular com precisão esse risco. Levando em conta o problema de discernir os interesses reais dos consumidores e as várias compensações possíveis, é até arrogante querer decidir pelos consumidores com quais termos eles podem ou não concordar.
Embora o livro de Zuboff enfatize o desequilíbrio de poder relativamente novo e fraco entre usuários e as empresas de internet como o Google, ela não fala muito sobre um desequilíbrio mais persistente e forte: aquele entre o governo e o cidadão.
Ao contrário do Google, o governo pode prendê-lo. Há um bom motivo – inexplorado por Zuboff – para querermos observar e restringir como o governo acessa nossas informações pessoais a partir dos dados coletados por essas empresas. Para tanto, temos de reconsiderar os padrões legais que garantem o acesso do governo a informações pessoais e que não passam no teste da causa provável garantida pela Quarta Emenda. O livro ficaria melhor se ela reconhecesse que o mesmo governo que, de acordo com a autora, deveria nos proteger do capitalismo vigilante é o governo que ameaça os seres humanos – sobretudo os desprovidos – por meio da velha vigilância de sempre.
Surveillance Capitalism foi escrito para estimular os já convencidos, e não para convencer os céticos. A começar pelo título semanticamente poderoso, Zuboff provoca o leitor. Mas, quando se trata de levar em conta políticas capazes de resolver os problemas que ela levanta, o melhor a fazer é prestar atenção ao que ela omite.
Neil Chilson é pesquisador no Stand Together and the Charles Koch Institute. Sua área de atuação é a tecnologia e a inovação.