Hospício Colônia: acusações pontuais de irregularidades levaram ao fim de todo o sistema manicomial do Brasil.| Foto: Luiz Alfredo/ Divulgação/ Wikipedia
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Nas últimas décadas, a saúde mental no Brasil tem sido pautada por ativistas do Movimento Antimanicomial. Eles argumentam que doenças mentais não existem e são uma espécie de "doença social". Portanto, pessoas portadoras de distúrbios não devem ser internadas. Graças às conquistas desses movimentos, houve uma redução drástica no número de leitos psiquiátricos disponíveis desde a década de 1990. Por isso, pessoas com distúrbios mentais graves, como esquizofrênicos paranoides, acabam não tendo para onde ir em caso de crise.

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De acordo com dados da Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, o Brasil tem hoje 0,07 leito psiquiátrico para cada mil habitantes. O número é 90% menor do que a média dos países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e cerca de 73% menor do que a quantidade de leitos disponíveis no Brasil há dez anos. Nesse mesmo período a população brasileira cresceu 20%, o que fez com que essa relação leito/população ficasse ainda mais crítica.

Embora a maioria dos doentes mentais não seja violenta, a falta de tratamento adequado, associada ao uso de álcool ou drogas, pode provocar crises intensas que descambam para a violência. Casos assim se tornaram comuns, já que doentes mentais, presos após agressão nos chamados Manicômios Judiciários, acabam muitas vezes soltos graças a laudos que atestam que eles são capazes de conviver em sociedade.

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No último dia 18 de maio, comemorou-se o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, que pretende celebrar as conquistas do movimento no Brasil. Comemorações à parte, o movimento é criticado por especialistas e instituições que acusam os militantes de serem negacionistas e anticientíficos. O Movimento Antimanicomial prejudica principalmente os próprios doentes mentais, que sofrem por não ter acesso a tratamentos adequados.

Ataque inesperado 

Sentada dentro de um vagão da Linha Azul do metrô de São Paulo, a auxiliar de limpeza Roseli Dias Bispo, de 46 anos, ia para o trabalho na madrugada da segunda-feira, dia 26 de março. De repente, Roseli foi atacada por um desconhecido que lhe desferiu golpes de marreta. Tudo foi tão rápido que ela só percebeu o que acontecia ao receber um golpe na cabeça. Os outros passageiros mal tiveram tempo de sair em defesa de Roseli, que, mesmo tendo sido levada ao hospital, não resistiu e morreu. Dois dias mais tarde, a auxiliar de limpeza foi enterrada por seus quatro filhos, que ainda tentavam assimilar o que havia acontecido.

O ataque foi realizado pelo aposentado Luciano Gomes da Silva, de 55 anos. Ele disse ter ouvido “vozes” e que Roseli o chamou de “mulher ou gay”, segundo relato dos seguranças que o detiveram. Alguns dias depois do ocorrido, descobriu-se que Luciano já havia sido diagnosticado como esquizofrênico paranoide e tem um longo histórico de agressões semelhantes. Ele ouvia vozes e supostas ofensas homofóbicas para, em seguida, reagir com violência, utilizando facas ou marretas.

Em 1993, Luciano matou a noiva, suspeitando de que ela o traía. Preso em 1996 e logo depois diagnosticado como doente mental, ele foi enviado para o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Franco da Rocha, em São Paulo, onde permaneceu quase oito anos. Posto em liberdade em 2004, Luciano não demorou a cometer novas agressões.

Cerca de um ano mais tarde, Luciano esfaqueou duas pessoas no metrô. E com a mesma justificativa que usou para explicar o assassinato de Roseli. Internado novamente no manicômio judiciário, ele foi libertado dez anos depois, graças a uma decisão judicial e a laudos que atestavam que Luciano não representava um risco à sociedade.

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História do movimento 

O Movimento Antimanicomial surgiu na Itália dos anos 1970, por iniciativa do psiquiatra Franco Basaglia. Também chamado de Movimento Antipsiquiátrico, em sua origem ele lutava contra os manicômios, na época locais degradantes. Até então, os doentes mentais eram vistos como um problema para o qual a solução estava nos hospícios.

A vida dos doentes mentais é contada no livro “Holocausto Brasileiro”, da jornalista Daniela Arbex. Ela narra o que aconteceu no hospício Colônia, em Barbacena, onde cerca de 60 mil pessoas morreram ao longo de cinco décadas. Estima-se que 70% das pessoas internadas no hospício, a maioria à força, não eram doentes mentais. Eram epiléticos, homossexuais e prostitutas que muitas vezes acabam desenvolvendo distúrbios mentais diante das experiências traumáticas no manicômio.

O filósofo francês Michel Foucault foi um dos que contribuiu para o Movimento Antimanicomial. No livro “História da Loucura”, ele diz que transtornos mentais são construções sociais e que os conceitos elaborados por psiquiatras não passam de rótulos.

No Brasil, o movimento foi tomando forma na década de 1980, impulsionado por militantes de esquerda que acreditavam que o que acontecia nos manicômios era semelhante à tortura da Ditadura Militar.

Graças a esses militantes, em 2001 o Congresso aprovou a Lei 10216, conhecida como Lei Reforma Psiquiátrica. A lei reformulou o modelo de atenção à saúde mental, alterando o foco, antes concentrado na instituição hospitalar, para uma rede de atenção estruturada em unidades comunitárias. Responsável pela criação dos Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde (SUS), essa lei buscou substituir manicômios por formas de assistência em liberdade, com os doentes integrados à sociedade.

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Mas a drástica redução de leitos psiquiátricos decorrentes da lei fez com que muitos pacientes não tivessem para onde ir em caso de crises graves. Ao longo do tempo, as críticas ao movimento aumentaram. Um dos críticos mais aguerridos foi o falecido poeta Ferreira Gullar, que tinha dois filhos esquizofrênicos.

Em 2009, Gullar escreveu um artigo publicado na Folha de São Paulo, em que acusava o movimento de ser demagógico e estar baseado em dados falsos. Na ocasião, Gullar também denunciou a redução de leitos de psiquiatria e pediu a revogação da lei que, para ele, causou um desastre na saúde mental brasileira.

Negacionismo

O psiquiatra forense Guido Palomba é crítico contundente do Movimento Antimanicomial. Em 2006, ele questionou laudos que afirmavam que Roberto Aparecido Cardoso, o famigerado Champinha (que, com apenas 16 anos, estuprou e assassinou a estudante Liana Friedenbach), poderia voltar a viver em sociedade se fosse acolhido por alguma família. Palomba argumentou que Champinha era irrecuperável e não poderia retornar ao convívio social. Champinha está até hoje confinado em Unidade Experimental de Saúde (UES). Na ocasião, o médico concluiu que a psiquiatria forense havia chegado no fundo do poço por culpa do Movimento Antimanicomial.

Para o psiquiatra, o Movimento Antimanicomial se baseia na premissa falsa de que doenças mentais não existem. Ou seja, trata-se de um movimento negacionista e anticientífico. Palomba explica que a doença mental é uma doença como outra qualquer e que os médicos sabem que as internações devem ser prescritas com cuidado, mas em alguns casos são inevitáveis.

“Como não internar uma pessoa que acabou de ter um infarto?  A psiquiatria é uma especialidade médica como outra qualquer. Como não internar determinados casos de doenças mentais que põe em risco o próprio paciente?”, pergunta. Para Palomba, a desativação e fechamento dos núcleos de psiquiatria forense criaram gerações de profissionais despreparados para a função.

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“A internação é para o bem do paciente portador de distúrbios psiquiátricos. Porque eles precisam do nosso carinho, da nossa compreensão e do tratamento dos médicos. Médicos bem formados, não esses que dizem que o paciente não tem nada. Coitado, fica aí sofrendo, alucinando, delirando e nada se faz. Minha posição é a de proteção a esses indivíduos que são vulneráveis”, diz.

Ao comentar o caso da mulher assassinada a marretadas no metrô, Palomba diz que, para ele, os profissionais que assinaram o laudo de Luciano Gomes da Silva deveriam perder o registro no Conselho Regional de Medicina. “Uma inocente morreu por culpa deles. Se um cirurgião faz uma cirurgia no abdômen da pessoa e esquece uma pinça dentro e a pessoa morre, ele perde o registro no CRM. Mas não vai acontecer nada”, lamenta.

Apesar das críticas, Palomba ressalva que o Movimento Antimanicomial teve o lado positivo de chamar a atenção para o problema da saúde mental em uma época em que os pacientes psiquiátricos estavam sendo maltratados. Mesmo assim, ele acredita que os pontos negativos se sobressaem. Para o psiquiatra, a melhor solução seria reformar o sistema que já existia e não simplesmente fechar os hospitais psiquiátricos.

A força do movimento

A história do movimento Antimanicomial é marcada por conflitos. Recentemente, os militantes promoveram manifestações por todo o país contra a nomeação do médico psiquiatra Valencius Wurch Filho para o cargo de Coordenador de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas. Ele havia sido nomeado pelo então Ministro da Saúde Marcelo Castro, na gestão de Dilma Rousseff.

Em carta publicada em dezembro de 2015, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) pedia para que o Ministro da Saúde anulasse a nomeação de Valencius, argumentando que ele representava um retrocesso à política nacional de saúde mental e à reforma psiquiátrica.

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Com a negativa do ministro em cancelar a nomeação, os protestos se intensificaram. Prédios públicos foram invadidos. Os militantes acusavam Valencius de ter dirigido um hospital psiquiátrico denunciado por maus tratos e violações dos direitos humanos.

O movimento conseguiu o que almejava e o psiquiatra foi exonerado em 6 de maio daquele ano. À Gazeta do Povo, Valencius explicou que o movimento antimanicomial trabalhou numa campanha organizada de difamação contra ele, espalhando boatos de que era contrário ao tratamento extra hospitalar e de que os manicômios seriam reativados.

Hoje aposentado, Valencius diz não se arrepender, mas conta que o que o entristeceu foi a participação de amigos no movimento “Fora Valencius”

"Hospitalocêntrico"

Uma das entidades a criticar o Movimento Antimanicomial é a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). O médico psiquiatra Antônio Geraldo da Silva, presidente da ABP, explica que a entidade publicou um documento defendendo um modelo integral de assistência à saúde mental e que diversas outras entidades o assinam, como Associação Médica Brasileira (AMB), o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Federação Nacional dos Médicos (FENAM), a Associação Brasileira de Impulsividade e Patologia Dual (ABIPD) e a Sociedade Brasileira de Neuropsicologia (SBNp).

“Nós tínhamos um modelo antigo, ‘hospitalocêntrico’, que não era bom. Mudaram esse sistema para criar um novo, ‘capscêntrico’, que também não é bom. Um durou anos e fez absurdos. Vários lugares eram verdadeiros depósitos de gente. Depois, foi feito o CAPS, que é um serviço específico, para o qual não posso indicar todos os que padecem de doenças mentais”, afirma.

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O médico explica que o CAPS foi criado para atender quadros graves, como psicoses, e não doenças mais comuns, como ansiedade, depressão, transtorno bipolar e TDAH. Assim, o CAPS seria apenas um assessório no tratamento de doentes mentais. Além disso, ele explica que a função dos CAPS é reabilitar doentes graves crônicos e não pode funcionar como emergência ou ambulatório geral, embora seja justamente isso o que acontece hoje.

Eletrochoque

A Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde hoje é comandada pelo médico psiquiatra Rafael Bernardon, de 42 anos. À Gazeta do Povo, ele contou que também foi alvo de hostilidades do Movimento Antimanicomial por ser especialista em estimulação cerebral e trabalhar com a eletroconvulsoterapia, vulgarmente conhecida como “eletrochoque”. Bernardon explica que a técnica é reconhecida internacionalmente, regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e utilizada há mais de 80 anos.

Para Bernardon, essa é uma das formas que o Movimento Antimanicomial encontrou para atrapalhar quem se propõe a tratar da saúde mental no Brasil, porque eles estigmatizam uma técnica que pode ser a última porta de saída para os doentes.

O psiquiatra acrescenta que, embora acredite que o movimento seja válido, ele não readequou o discurso ao atual cenário. Além disso, Bernardon vê no movimento muitos negando a existência de doença mental, num viés antimédico e antipsiquiátrico.

"Você ficar apenas olhando no retrovisor, resgatando uma dívida histórica, sem prestar atenção aos níveis de incidências de novos casos e às necessidades de abrigo de pessoas com transtornos mentais crônicos, parece uma forma anacrônica de lidar com o problema”, diz.

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Outro lado

Integrantes do Movimento Antimanicomial rebatem as acusações. Miriam Abou-Yd, psiquiatra Integrante do Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila) e do Fórum Mineiro de Saúde Mental, explica que, na década de 1980, o Brasil tinha 100 mil leitos psiquiátricos, a maioria em hospitais privados conveniados. A média de permanência nesses hospitais superava os 100 dias.

“O objetivo foi construir uma rede de serviços que substituísse o hospital psiquiátrico, sem repetir o modelo desse hospital, que se baseada no médico centralizador, cerceador de liberdades, anulador de subjetividades e com práticas extremamente violentas. Questionar o hospital psiquiátrico, uma instituição que até recentemente era tida como insubstituível, exige coragem, ousadia, criatividade e determinação. E foi o que não nos faltou quando constatamos, 40 anos atrás, as péssimas condições dos hospitais psiquiátricos”, diz.

Insatisfeita, Abou-Yd diz que, desde 2016, o governo federal tem promovido um “retrocesso medonho” por meio da paralisação do processo de fechamento dos leitos dos hospitais psiquiátricos. Desse modo, os recursos voltariam a ser direcionados a hospitais e comunidades terapêuticas. “Essas comunidades são aquelas fazendas, de cunho religioso, que fazem, por meio da expiação da culpa e da punição, uma forma de tratamento. Esse direcionamento financeiro tem um evidente interesse eleitoreiro”, afirma.

Integrantes do Movimento Psiquiatria Democracia e Cuidado em Liberdade, também parte do Movimento Antimanicomial, acrescentam que não concordam com os rótulos de anticientíficos ou negacionistas. É o que explica a psiquiatra Ana Marta Lobosque. Para ela, a ciência tem sido utilizada como pretexto para que pessoas sejam encarceradas. Ela cita o exemplo do hospital Barbacena, onde a ciência teria sido utilizada como álibi. Ela explica que o movimento prefere utilizar os recursos da ciência para ajudar as pessoas a viverem em convívio social.

“O movimento não é anticientífico porque é um movimento social e de cultura. Temos um grande apreço pela ciência. Também não somos negacionistas. Por que negaríamos a existência do sofrimento mental?”, pergunta.

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A psiquiatra Lídia Dias Costa, médica da Estratégia de Saúde da Família em Fortaleza, no Ceará, explica que a redução do número de leitos de hospitais psiquiátricos não foi realizada apenas no Brasil, e sim em vários outros países ao longo dos últimos 30 anos, e que esse não foi um processo drástico e sem planejamento.

“Foi realizada a substituição de leitos de hospitais psiquiátricos por serviços comunitários e abertos; que acolhem as pessoas em seu sofrimento mental”, diz. Ela acrescenta que muitos leitos de hospitais foram descredenciados com avanço da reforma psiquiátrica e pela criação de serviços substitutivos vinculados à rede ambulatorial. Muitas pessoas que moravam em hospitais psiquiátricos teriam passado a residir nos serviços comunitários, com uma qualidade de vida muito maior.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]