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Quando um país quer questionar o outro judicialmente, procura pelo Tribunal Internacional de Justiça, popularmente conhecido como Tribunal de Haia. Essa corte foi criada em 1946 para dar continuidade aos trabalhos do Tribunal Permanente de Justiça Internacional, fundado em 1921 e cujas ações haviam sido interrompidas por ocasião da Segunda Guerra Mundial.
Entre os casos julgados pela corte estão a denúncia, apresentada pelos Estados Unidos em 1980, de que o Irã estava retendo alguns de seus diplomatas sediados em Teerã. A Índia já se apresentou, questionando a condenação de um cidadão do país, Kulbhushan Jadhav, que foi detido pela justiça do Paquistão sob alegação de prática de espionagem.
Mas existe uma outra corte internacional, também sediada em Haia, de criação muito mais recente. Trata-se do Tribunal Penal Internacional (TPI), fundado em 2002, com base no Estatuto de Roma, de 1998, para julgar ações individuais de chefes de estado. O TPI conta com o apoio de 123 países, incluindo o Brasil.
Também fica instalado em Haia, na Holanda, e atua na investigação de denúncias contra indivíduos que utilizaram de cargos de poder para praticar genocídio, crimes de guerra ou atos de agressão.
“O Tribunal Penal Internacional foi criado para suprir a demanda internacional por um regramento em relação aos crimes maiores em relação à pessoa humana”, explica Clarisse Laupman, professora de direito internacional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
“O tribunal não desrespeita as soberanias dos países”, prossegue a professora. “Ele atua sob o princípio da complementaridade, ou seja, ele só pode ser acionado quando ficar provado que o crime cometido não recebeu a devida atenção do país onde foi cometido. A grande preocupação do tribunal é garantir que criminosos sejam julgados pelos seus crimes contra a humanidade, independente da posição política que ocupem”.
O TPI já recebeu três denúncias contra o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro. Essas solicitações pedem que ele seja investigado pela acusação de negligência no combate à pandemia. Alegam que ações do presidente, desmerecendo a crise de saúde provocada pela Covid-19, configuram a intenção de matar.
Investigação lenta
Ao receber uma denúncia, o Tribunal Penal Internacional destaca promotores para apurar os fatos. Esse processo, que costuma demorar vários anos, pode levar ao arquivamento da acusação, ou ao pedido de prisão do acusado. “Se por hipótese o presidente Bolsonaro fosse considerado réu, ele precisaria ser julgado em Haia”, explica o advogado Valerio Mazzuoli, professor de direito internacional na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O especialista explica que, caso a denúncia fosse transformada em um processo, a corte emitiria um mandado de prisão, que chegaria ao Supremo Tribunal Federal, que por sua vez solicitaria à Polícia Federal que prendesse Bolsonaro.
“Ele seria enviado para a Holanda, como réu. Caso condenado por crime de genocídio, cumpriria penas previstas na legislação brasileira”. No caso de países em que a legislação não prevê punições para os crimes julgados em Haia, o próprio tribunal apresenta suas sentenças, que podem chegar até mesmo à prisão perpétua.
Mas existe o risco de Bolsonaro ser julgado e condenado? “Não é comum o TPI julgar acusações desse gênero”, responde Mazzuoli. “O tribunal é mais focado em casos evidentes de agressão, como assassinatos em massa e uso de medidas de esterilização de etnias inteiras”.
De toda forma, diz o professor, como a pandemia é uma situação excepcional, uma decisão do tribunal a respeito da legalidade de acusar um governante por má gestão da crise de saúde poderia criar jurisprudência. “Para caracterizar o crime, seria necessário comprovar intenção clara de provocar dano à população. E então outros governantes poderiam ser julgados também, pelo mesmo motivo”.
Casos na África
Em geral, o TPI julga casos evidentes de agressões contra cidadãos. Pediu, por exemplo, a prisão de Muammar al-Gaddafi, ditador líbio. O tribunal nunca puniu nenhum brasileiro. “O TPI é especialista em acusar presidentes africanos”, diz o professor Valerio Mazzuoli. “Não há registro de que acusações contra governantes de países desenvolvidos tenham sido levadas adiante”.
O TPI já investigou acusações contra os líderes da Costa do Marfim, de Darfur, do Sudão, da República Democrática do Congo, do Quênia, da Líbia, de Uganda e, fora da África, da Geórgia e de Miamar. Até hoje, o tribunal indiciou 44 pessoas e emitiu 36 mandados de prisão, sendo que seis pessoas estão detidas e outras 15 são consideradas fugitivas.
Entre as centenas de pedidos de abertura de processos que ainda estão sendo avaliados, há denúncias contra os presidentes da Venezuela, Nicolás Maduro, e Rodrigo Duterte, das Filipinas. Aberto em 2005 e encerrado um ano depois, um processo contra lideranças militares do Reino Unido, acusadas de cometer abusos durante a ocupação do Iraque em 2003, foi reaberto em 2014.