O positivismo é uma das ideologias mais difundidas, e talvez menos discutidas no debate público, na sociedade brasileira. Desde que aportou em praias brasileiras na segunda metade do século XIX, influenciou gerações de políticos e intelectuais e se refletiu em golpes de Estado e um certo estilo de governo e de linguagem pública que podem ser observados até os dias de hoje.
Quando o presidente Jair Bolsonaro se vangloria de ter escolhido todo o seu primeiro escalão de ministros com “critérios técnicos”, ele se revela ao menos um pouco “positivista”. É claro que o loteamento de cargos do Executivo para legendas políticas em busca de apoio do Congresso não é uma atitude louvável, mas a mera sugestão de que uma escolha possa seguir critérios “políticos” gera certa ojeriza na população.
A política entendida como meio de preservação e proposição de determinados valores reconhecidos pela sociedade é muito diferente do toma-lá-da-cá pelo qual se costuma designar o termo. Contudo, a menção a “critérios técnicos” guarda algum prestígio, como se esses critérios fossem de alguma forma supraideológicos. Mas a crença de que há uma maneira científica de resolver os problemas políticos é também uma ideologia: o positivismo. Que também poderia ser chamado de tecnocracia ou, mais recentemente, cientocracia.
Vejamos então o que é o positivismo e como ela influenciou em alguns episódios marcantes da história brasileira.
O positivismo corrente filosófica que nasceu no início de século XIX. Era o auge da Revolução Industrial, uma época de mudanças profundas na sociedade, que via um crescimento sem igual da ciência e da técnica. Foi neste ambiente de profunda crença no aspecto técnico de quase tudo que o filósofo francês Auguste Comte elaborou o positivismo. De acordo com a filosofia positivista, a História se divide em três etapas. A primeira seria a teológica, na qual os homens se agarram a “superstições” religiosas. Depois vem a metafísica, na qual a religião seria substituída por outros sistemas de razão que buscam “ainda” uma causa primeira e um fim último. A terceira, e final, seria a positiva, em que os homens desistiriam de se perguntar “por quê?” e passariam a buscar apenas “como” as coisas acontecem, de forma científica.
Em resumo, os positivistas interpretam a história como uma evolução constante rumo a uma sociedade industrial racional, regulada segundo critérios científicos.
Auguste Comte (1798 - 1857) publicou sua principal obra Cours de philosophie positive [Curso de filosofia positiva] entre 1830 e 1842 e desejava substituir a educação européia, à época teológica, metafísica e literária, por uma “educação positiva”, conforme o espírito da época e adaptada às necessidades de civilização moderna.
Essa reconstrução científica da sociedade pressupõe uma ciência da sociedade: essa ciência foi chamada por Comte de sociologia, sendo ele um dos precursores desse ramo do conhecimento.
O professor e colunista da Gazeta do Povo Carlos Ramalhete afirma que o “positivismo é uma criação delirante.” Ramalhete ainda lembra que, a despeito dos desprezo do positivismo pelas religiões estabelecidas, “curiosamente Comte tentou criar uma ‘Religião da Humanidade’, ou ‘Igreja Positivista’, que aparentemente imita uma igreja católica, mas adora a Humanidade e tem por ‘santos’ Newton, Descartes, etc. No Rio de Janeiro ainda há uma igreja positivista, cujo teto caiu há pouco tempo.”
Segundo o trabalho de Sergio Luiz Augusto de Andrade na UFRJ, “o positivismo no Brasil inspirou a Velha República e o Golpe Militar de 1964 [...]. Segundo essa ideologia da ordem, o país não seria mais governa pelas ‘paixões políticas’, mas pela racionalidade dos cientistas desinteressados e eficientes”.
Proclamação da República
Na segunda metade do século XIX, o positivismo esteve muito em voga no Brasil principalmente pela sua divulgação entre alunos e professores das Escolas Politécnica e Militar, a princípio por meio dos professores de matemática, que travaram conhecimento com o volume I do Cours de philosophie positive, no qual Comte desenvolve teorias matemáticas interessantes para o seu tempo. A partir daí, a curiosidade de alunos e professores impulsionou-os a ir além.
Entre eles estava Benjamim Constant, professor das escolas Politécnica e Militar do Império. Constant foi um ferrenho propagador da doutrina positivista e era muito influente entre seus alunos. Mais tarde Constant foi uma das principais figuras na Proclamação da República.
Segundo a obra Positivismo no Brasil, de João Camilo de Oliveira Torres, nossa escola militar estava transformada “em escola de engenharia para soldados, mesmo os que não fossem comtistas, eram “positivistas”, isto é, estariam imbuídos de um estado d’alma cientifista”.
Esse espírito serviu mais tarde para criar o espírito de rebelião no seio dos militares que permitiu o “corte das tradições e arremetia contra o próprio passado de glórias do Exército”, conforme registro do general Leitão de Carvalho, na Hora do Brasil de 15 de novembro de 1938.
A ideia de um imperador, segundo o espírito positivista, pertencia as eras primevas da humanidade e não mereceria ter continuidade na sociedade científica.
Além disso, segundo Torres: “A obra do Partido Conservador, apesar de valiosíssima na prática, não construíra nada de útil na teoria. Havia um vácuo, uma sensação de vazio, porque o Império não satisfazia à razão. A indisciplina era geral.”
Não fosse o espírito positivista reinante é muito provável que os pontos de conflito entre a monarquia brasileira e o exército não passassem apenas de uma troca de governo.
“Numa época em que o abolicionismo, o republicanismo e o antimonarquismo eram moda entre os jovens, os militares alunos de Constant não fugiam à regra. Eram, pois, receptáculo perfeito das doutrinas positivistas, que pregavam o amor à humanidade. Foi o advento de uma república científica e o fim do império.”, resume Sergio de Andrade.
Foi dessa forma que tivemos os dizeres positivistas “Ordem e Progresso” estampados em nossa bandeira. Que foi desenhada por Décio Vilares, pintor positivista, segundo o plano de Teixeira Mendes, apresentada e aprovada por Constant que a levou para ao governo provisório, que a adotou em 19 de novembro de 1889.
Ditadura Militar de 1964
Os primeiros presidentes da República foram, portanto, militares, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. O primeiro presidente civil do Brasil foi Prudente de Morais, que também foi o primeiro a ser eleito diretamente.
Desde então em cem anos ocorreram diversas convulsões políticas e sociais. Resumidamente: 1) a Segunda República que, com a queda de Júlio Prestes, durou de 24 de outubro de 1930 a 10 de novembro de 1937; 2) a Terceira República, ou Estado Novo, que na prática foi a ditadura de Getúlio Vargas, que durou até 31 de janeiro de 1946; 3) a Quarta República, ou Populista, que foi até 2 de abril de 1964, quando João Goulart foi deposto pelo Exército e deu início à 4) Quinta República, ou Ditadura Militar, que durou até 15 de março de 1985 (período em que começou a transição para o regime político em que nos encontramos atualmente). Neste período a visão positivista retornou ao Estado brasileiro por meio dos sucessivos presidentes militares.
O Exército tomou o poder para combater a esquerda radical que, em sua visão, implantaria ou teria já implantado, um governo de verve comunista no Brasil. Naquele período, a ideologia de esquerda não poderia ter uma expressão política no Brasil. Contudo, os militares não pararam por aí, sufocaram até mesmo outras correntes ideológicas em nome de um Estado tecnocrático.
Ramalhete descreve da seguinte forma o período: “Os governos militares tentaram impedir que a política atrapalhasse o que viam como uma administração ‘técnica’. Para isso, cortaram as pernas de todos os políticos de direita, percebidos por eles como arrivistas meio malucos que se fossem soltos seriam como macacos numa loja de louças.”
Dessa forma o Congresso Nacional ficou reduzido a carimbadores de decretos, políticos fisiológicos, onde as ideologias não eram mais discutidas, reduzindo a discussão política a questões meramente econômicas.
Segundo o filósofo Olavo de Carvalho, no artigo A falsa memória da direita, os militares “acreditavam piamente que podiam governar sem sustentação cultural e ideológica na sociedade civil, substituindo-a com vantagem pela pura propaganda oficial. Esta, por sua vez, era esvaziada de toda substância ideológica, reduzida ao triunfalismo econômico e à luta contra o ‘crime’”.
A visão positivista também pôde ser acompanhada na forma dirigista com a qual os militares encaravam a economia. No período da ditadura militar ouve um aumento da estatização da economia e o governo foi transformado em “Estado-empresário” determinando o dinamismo da economia. No entanto isso causou uma grande distorção, com o aumento da dívida externa e contribuindo para a aceleração da inflação descontrolada que ocorreu na década de 1980.
A tecnocracia dos militares de inspiração positivista acabou por suprimir a discussão política apenas em aparência, pois longes dos holofotes a discussão política, sobretudo da esquerda, continuou a crescer. Segundo Olavo de Carvalho, em outro artigo, Positivismo inconsciente,foi esse o motivo do final do governo militar: “A crença no poder mágico do crescimento econômico e a completa ignorância do fator cultural (que àquela altura os próprios comunistas já haviam compreendido ser o mais decisivo) selaram o destino do regime.”
É difícil subscrever que o fim do governo militar poderia ser considerado “o canto de cisne” do positivismo no Brasil. Por mais que as circunstâncias sejam bem diferentes, no governo Bolsonaro, são frequentes as menções a “critérios técnicos” e até o recente programa para retomada econômica pós-pandemia chamado Pró-Brasil contempla dois grandes eixos de trabalho “Ordem” e “Progresso”. Sinal de que o positivismo continua encontrando adeptos no Brasil, mesmo que eles possam não ter plena consciência disso.
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