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O documentário What is a woman? (“O que é uma mulher?”, em tradução livre), lançado nos Estados Unidos este mês pela empresa independente de mídia conservadora The Daily Wire e apresentado pelo comentarista político Matt Walsh, é um bom documentário para trazer equilíbrio ao debate público sobre gênero e transexualidade. Lembrando outras obras televisivas como The Enemies of Reason (“Os Inimigos da Razão”, série documental de 2007), em que o zoólogo Richard Dawkins teve as hélices de seu DNA aumentadas de duas para dez, ao menos segundo uma entrevistada que faz terapia alternativa, Walsh entrevista socraticamente, com a singela pergunta, adeptos de outra variedade alternativa de epistemologia.
Trata-se da crença associada à teoria queer, ao ativismo identitário e às obsessões subjetivistas dos nossos tempos de que a identidade de uma pessoa pode flutuar nas nuvens da cultura e dos hábitos sem âncora na realidade, ao ponto que toda pessoa que se disser homem, mulher ou nenhum dos dois, à revelia da biologia, deve não só ter a tolerância alheia (como prega o liberalismo), mas também a aceitação e a afirmação dos terapeutas. Qualquer outro caminho terapêutico que não seja este é tratado como intolerância, ignorância e até um empurrão em suicidas à beira de saltar do prédio da vida.
Também são entrevistadas pessoas que resistem a essa crença, como o próprio apresentador Matt Walsh, que expressa sua oposição em um podcast diário produzido pela mesma Daily Wire. A direção de Justin Folk é competente, fazendo a uma hora e meia de duração passar de forma fluida e bem conectada. O tom, na maior parte espirituoso, varia na direção do drama e do horror, e alguns espectadores podem sentir que algumas dessas variações são repentinas.
O bom
O título do documentário é uma pergunta que os progressistas e até o público sem afiliações ideológicas explícitas cada vez mais se sentem desconfortáveis para responder, por preocupação ou medo de cometer “transfobia” ao definir mulher como fêmea adulta humana, definição correta que (ainda) está nos dicionários. Quando sabatinada em abril passado por parlamentares, a atual juíza da Suprema Corte americana Ketanji Jackson se recusou a respondê-la, com a desculpa de que não é bióloga.
Quando alguém tenta uma resposta, como a pediatra entrevistada Michelle Forcier, especialista em “terapia afirmativa de gênero” para trangêneros, é circular: mulher é quem se identifica como mulher. Ao que Walsh rebate prontamente repetindo a pergunta.
Como mostra Matt Walsh entrevistando pessoas nas ruas, especialmente mulheres, não é só a juíza que tem receio de dar uma resposta. O documentário passa a impressão de que pessoas comuns andando pelas ruas, especialmente em estados “azuis” (em que o Partido Democrata costuma vencer eleições), estão sob o domínio do politicamente correto.
Nos ‘Dois Tratados sobre o Governo’, de 1689, o filósofo inglês John Locke (1632-1704) propôs que “todo homem tem posse de sua própria pessoa”. Sua ideia de que o corpo é uma propriedade do indivíduo era algo novo. Décadas após sua morte, no século XVIII, quando a sodomia era crime no Reino Unido, homens presos por sodomia citavam Locke de segunda mão: “não há crime em fazer o uso que eu quiser do meu próprio corpo”, disse um, “não posso fazer uso do meu próprio corpo?”, perguntou retoricamente outro preso em flagrante delito em Londres. A julgar pelo documentário de Matt Walsh, hoje não é o liberalismo que é repetido por cidadãos comuns, mas as ideias relativistas cozinhadas nas universidades desde os pensadores pós-modernos dos anos 1960.
O mais explicitamente relativista dos entrevistados é Patrick Grzanka, professor de psicologia nas universidades de Maryland e do Tennessee. O documentário brinca com a prolixidade de Patrick na edição, sobrepondo trechos de sua resposta longuíssima que no fim não respondia nada. Quando Matt insistiu na pergunta, o professor reagiu perguntando por que ele tinha tanto interesse na resposta. Porque gostaria de “chegar à verdade”, respondeu Matt. Isso, segundo Patrick, é “profundamente transfóbico, condescendente e mal-educado”, rebateu o especialista, pedindo “diga-me qual é a sua verdade”. Para seguidores do pós-modernismo, a verdade se desmembra e é algo que é posse de alguém, como o corpo para Locke.
Matt Walsh também desafiou o dr. Patrick Grzanka a definir o que é mulher sem usar a palavra “mulher”. Declarando o exercício interessante, o último falha em dar uma resposta. A pediatra Michelle Forcier, que além de fazer terapia “afirmativa de gênero” também realiza abortos, não se sai muito melhor. Ela alega que “bebês e crianças pequenas entendem o gênero”, o que parece uma interpretação torta de estudos que mostram que bebês fixam os olhos por mais tempo em faces que se parecem com a de sua mãe. Pressionada a respeito da capacidade de crianças pequenas de decidir algo tão consequente quanto seu próprio gênero, quando Walsh lembra que elas acreditam em Papai Noel, a dra. Forcier responde que “para aquela criança, Papai Noel é real”.
Walsh brilha especialmente na cena do popular programa de televisão Dr. Phil, apresentando por um discípulo de Oprah Winfrey. Ele pressiona outros convidados do programa a responder o que é uma mulher, e uma pessoa que se apresenta com aparência feminina na maquiagem e no cabelo, mas com barba, também apela para o relativismo e definição circular. Ele aponta uma contradição na ideologia: se sexo é diferente de gênero, e pessoas trans mudam gênero e não sexo, por que se afirma que mulher trans é um sinônimo de mulher? O que está havendo é que os adeptos dessas ideias estão removendo qualquer conotação da característica sexo dos termos “mulher”, “homem”, “menina” e “menino”. É uma ressignificação unilateral. Outra contradição está em pedir tratamentos de natureza sexual biológica, como os hormônios, para quem se diz “transgênero” em vez de “transexual”.
Duas especialistas de opiniões opostas parecem ser as mais sensatas entrevistadas no documentário, embora o tratamento das duas na edição seja bem diferente. Marci Bowers, uma cirurgiã que faz cirurgias de mudança de genital e cuja resposta à pergunta foi um pouco melhor que as outras, e é ela própria transexual, diz com franqueza que a cirurgia não é perfeita e que é uma “barganha faustiana”. Ela reconhece que há também um novo fenômeno de contágio social de identidades LGBT, mas alega que é “pequeníssimo”. Sua paciente mais jovem que fez essa cirurgia tinha à época 16 anos.
A outra especialista é a psiquiatra Miriam Grossman, que representa uma visão mais cautelosa e conservadora, mas sem negar que a transição pode ser o tratamento para uma parte das pessoas que manifestam disforia de gênero (que é um transtorno psiquiátrico reconhecido e consiste em uma persistente e profunda rejeição das próprias características sexuais). Grossman dá a incidência “clássica” da disforia na população (uma em 30 mil ou 100 mil pessoas), informa que a maioria das crianças que manifestam a disforia tem resolução sem necessidade de transicionar — geralmente, crescem gays ou lésbicas. Quando informada que suas opiniões que há poucos anos eram o consenso na psiquiatria foram chamadas de coisa de “dinossauro” por Bowers, a dra. Grossman ri. Ela acerta ao indicar que o conceito “gênero” é subjetivo. Como se observa hoje, uma parte crescente dos jovens que se dizem trans nos Estados Unidos é de “transgêneros” que jamais experimentaram disforia na vida. A disforia é uma condição necessária para a definição de uma pessoa como transexual.
A questão mais sensível tocada pelo documentário é o uso de bloqueadores de puberdade em crianças na terapia “afirmativa”. Claramente, a posição mais irresponsável é a dos terapeutas afirmativos que alegam que a puberdade é como uma música que pode ser pausada e continuar depois sem problemas. Grossman relata que conhece pacientes cuja puberdade foi bloqueada e têm doenças atípicas para sua idade. Há relatos também de incapacidade de ter orgasmos e até mesmo um prejuízo à própria transição, pois há menos desenvolvimento de tecido genital necessário para a cirurgia mais tarde.
O medicamento Lupron (nome genérico leuprorelina ou leuprolida), usado como bloqueador de puberdade, foi proposto inicialmente para câncer de próstata e infertilidade. Uma fabricante da droga, a TAP Pharmaceutical Products, foi multada em 875 milhões de dólares pelo governo americano em 2001 por práticas fraudulentas em sua venda, como prêmios para médicos que a prescrevessem. O processo não teve relação com o mecanismo de ação da droga. A leuprolida também já foi usada para castração química de pedófilos reincidentes. Um oficial do governo francês disse à Deutsche Welle que o termo correto não é castração química, mas “camisa de força química”, pois os efeitos sobre a libido são transitórios.
O mau
Matt Walsh está bem amparado pela boa filosofia ao rejeitar termos relativistas de seus entrevistados como “sua verdade”. Porém, enquanto tem sucesso em apontar contradições neles, ele também cai em contradição nas redes sociais, às vezes em questão de poucas horas.
Nas conversas que se seguiram à estreia do documentário no início do mês, em resposta a um internauta que disse a ele que “adultos devem poder tomar as próprias decisões”, Walsh publicou no Twitter: “Não estou falando do que adultos têm permissão para fazer com os seus corpos. Estou falando do que médicos e farmacêuticas devem ter permissão para fazer com os corpos de outras pessoas visando o lucro.”
Uma hora antes, respondendo a um comentarista que disse “Deve ser ilegal para qualquer um em qualquer idade transicionar. Ponto final”, o apresentador acrescentou “Sim. Posto de outra forma: deve ser ilegal que médicos façam isso [tratamento de transição] em qualquer pessoa de qualquer idade.” Essa opinião dele não é de hoje. Em março de 2021, comentando o caso de Elliot Page, artista de Hollywood que tomou hormônios masculinos e removeu os seios, Walsh disse que “deve ser ilegal médicos amputarem as partes do corpo de uma pessoa fisicamente saudável”.
Não se sabe qual é o caso de Page, mas o problema geral, que antecede esta década em que emergiram evidências de contágio social de identidades LGBT, é que transexuais não são, de início, pessoas saudáveis. Como dito, sofrem de disforia, um transtorno psiquiátrico. É papel dos psiquiatras e terapeutas oferecer tratamento para esse transtorno. E é direito e liberdade dos pacientes com idade para assim decidir optar pela transição como terapia para si próprios.
Por uma mera questão de lógica, um possível tratamento não pode ser uma patologia. O xarope não pode ser a tosse. E é um fato mencionado pacificamente na literatura especializada que, para uma parte ainda incerta, mas provavelmente menor que a metade dos jovens que manifestam disforia, a transição é o tratamento — que envolve mudar o conteúdo do guarda-roupas, tomar hormônios e (o que é mais dramático e não é escolhido por todos) fazer cirurgias na genitália e nas mamas. Essa é a parte correta de se dizer que a transexualidade não é uma doença: a doença é a disforia. Um erro na atualidade é o relaxamento do crivo médico que precisa estar presente para avaliar se aquela pessoa realmente é transexual. Essa avaliação precisa ter no diagnóstico de disforia uma condição necessária. E é essa necessidade que está sob ataque do ativismo e sob dúvida irrazoável da ideologia identitária.
O feio
Uma escolha estranha do documentário foi a falta de convite à YouTuber conservadora transexual Blaire White, que já teve conversas públicas com Ben Shapiro, fundador e editor emérito da Daily Wire. Blaire fez a transição hormonal, fez cirurgias para ajustar aspectos do rosto, mas não quis fazer a cirurgia genital. É contra o bloqueio da puberdade e a classificação de crianças como “trans”. Com a única exceção de Marci Bowers, não parece ter havido por parte dos produtores interesse em trazer o outro lado da moeda: transexuais que fizeram a transição, seja ela hormonal, genital, ou ambas, e estão satisfeitos com isso.
A parte mais dramática do documentário é o depoimento de Scott (Nellie) Newgent, apresentado assim, com o nome feminino antigo e o nome masculino novo, sem clareza do documentário sobre qual é o preferido. Newgent chora se dizendo preocupado com as crianças sendo submetidas à transição em cinco hospitais pediátricos americanos. Segundo ele o custo da transição para cada criança é de US$70 mil, havendo assim incentivo financeiro para a terapia afirmativa. Newgent fez sete cirurgias, inclusive a faloplastia, uma tentativa de construir um pênis com um enxerto de pele removida de alguma parte do corpo — ele mostra a cicatriz no braço e menciona complicações como pelos crescendo na parte interna de sua uretra. Não fica claro se Newgent sofria de disforia desde cedo, viveu grande parte da vida como mulher lésbica.
É muito improvável que a opinião de um único transexual seja suficiente para tirar grandes conclusões sobre todos. Newgent tem uma história trágica de arrependimento e problemas de saúde, parte dela se explica pela época em que fez a transição, parte se explica pela falta de escrutínio médico sobre a sabedoria de sua decisão à época em que começou (o que inclui avaliar se havia mesmo disforia), e parte se explica por negligência médica. É importante que sua opinião seja trazida, pois é justamente a opinião que ativistas identitários que seguem a teoria queer e preferem falar em “transgêneros” em vez de transexuais querem silenciar. Outras pessoas como Newgent existem, especialmente nesta nova geração que alega que é possível ser algo que não é nem homem nem mulher.
Newgent cita estatísticas alarmantes de que o número de suicídios de pessoas trans após o tratamento de transição permaneceria alto até uma década após o seu início. A sugestão é de que o índice de suicídios não é melhorado pela mudança de aparência, hormônios e cirurgias. Newgent está desatualizado. O maior estudo a respeito é de holandeses e envolveu mais de oito mil transexuais acompanhados por um longo período, de 1972 a 2017. O estudo foi publicado em 2020 na revista Acta Psychiatrica Scandinavica e tem primeira autoria de C. M. Wiepjes, do Departamento de Endocrinologia da Universidade Livre de Amsterdã.
Wiepjes e colegas concluem que “não houve aumento no risco de morte por suicídio ao longo do tempo”, mas houve “até uma queda no risco de morte por suicídio nas mulheres trans”, que transicionaram do sexo masculino para o feminino onde possível. O risco de suicídio de pessoas trans nos Países Baixos, com notória cultura de tolerância, continua alto antes e depois da transição comparado à população geral, mas não é muito diferente do índice para homens gays. As razões para isso continuam sendo investigadas. Mas está claro que está errada a mensagem do documentário, que também se vê no podcast de Matt Walsh, de que a transição não ajuda essas pessoas.
O fim
Embora pudesse ser mais equilibrado, What is a woman? é uma grande contribuição ao debate público das questões de gênero e sexo, além da transexualidade e a saúde mental dos jovens. Traz a esse debate uma refrescante diversidade de ideias que há anos têm sido ativamente suprimidas pelas ideologias dominantes na academia, em setores governamentais, em Hollywood e até nos setores de recursos humanos de grandes empresas. A Daily Wire tem sido a alternativa à mensagem única e monótona de progressismo identitário que se vê na produção cultural de amplo alcance. Além deste documentário, a empresa de mídia também está produzindo filmes com a atriz Gina Carano, demitida injustamente da série The Mandalorian, da Disney+, por comentários e piadas contra o autoritarismo sanitário na pandemia e as insanidades queer dos nossos tempos.