O que acontece com um corpo humano que não recebe alimentos suficientes por muito tempo? Em termos biológicos, bastam três dias para ter início a autofagia (o organismo começa a consumir a si mesmo, primeiro em busca de gordura e depois de proteína) e dez dias para o corpo entrar num modo semelhante ao da hibernação. A temperatura do corpo, a pressão arterial e os batimentos cardíacos despencam.
Se a situação se mantém, depois de algumas semanas, os órgãos estarão reduzidos pela metade de seu tamanho original. A pele perde elasticidade e a imunidade cai. A massa muscular (inclusive a cardíaca) desaparece, porque as proteínas que fazem parte de sua formação são quebradas para sustentar outras áreas, em especial o cérebro. A causa mais comum para a morte é colapso cardíaco.
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Esse processo prejudica seriamente a saúde de gestantes e seus filhos. Por isso mesmo é tão difícil estimar o tamanho da tragédia que arrasou a Ucrânia entre 1932 e 1933: alguns especialistas apontam que morreram 2 milhões de pessoas, mas há os historiadores que consideram que foram 12 milhões, quando se leva em conta as crianças que já nasceram desnutridas e com baixa imunidade e morreram depois. As estimativas mais altas levam em consideração, por exemplo, os casos de tifo, cuja incidência aumentou em mais de 20 vezes entre 1929 e 1933.
Para o governo ucraniano, morreram 3,9 milhões de pessoas de fome durante a crise e outras 6,1 milhões de crianças nos anos seguintes. À parte as dificuldades em estimar a quantidade de vítimas, o impacto demográfico foi tão grande que a população do país ficou estacionada em 30 milhões ao longo da década de 1930, antes mesmo de o país começar a fornecer homens para a Segunda Guerra Mundial.
A crise no fornecimento de alimentos marcou a história do país e ganhou um nome, Holodomor, uma expressão bem literal: em ucraniano, significa “matar de fome”. Não foi um episódio acidental: a falta de comida era resultado de uma política agrícola desastrosa conduzida por Josef Stalin. Até quando estava claro que o plano tinha dado errado, o ditador soviético se recusou a recuar. Tampouco aceitou ajuda humanitária dos países vizinhos, que observavam a situação com desespero. Até hoje se debate se Holodomor foi genocídio ou crime contra a humanidade. Mas não há nenhuma dúvida de que esse massacre poderia ter sido evitado.
Dos 60 milhões de hectares de território ucraniano, 42 milhões são adequados para o plantio. Como foi possível que um lugar assim passasse fome?
Fome nas fazendas
A Ucrânia é um território precioso, disputado ao longo de toda sua história. Foi um dos primeiros países anexados pela União Soviética, ainda em 1919. E isso acontece porque, entre outros motivos, seu solo é extremamente fértil. Um terço de toda a terra negra do planeta está no país. Dos 60 milhões de hectares de território ucraniano, 42 milhões são adequados para o plantio. Atualmente, o país é referência mundial na produção de grãos e um dos três maiores exportadores de milho do planeta. Como foi possível que um lugar assim passasse fome?
A culpa é da coletivização da agricultura e de uma reorganização da distribuição de alimentos em toda a União Soviética. A partir de 1930, o governo de Stalin (que havia chegado ao poder dois anos antes) iniciou um amplo programa econômico, que previa a coletivização da agricultura, incluindo a alteração dos produtos plantados por outros, e a rápida industrialização e urbanização de uma série de regiões do bloco. “O governo soviético decidiu implantar as unidades agrícolas coletivas e obrigava os proprietários de terra ucranianos a abdicar de suas propriedades. Foi um experimento horrível”, relata o embaixador da Ucrânia no Brasil, Rostyslav Tronenko. “Os fazendeiros se rebelaram. Não entendiam por que deveriam abdicar de suas terras a favor desses empreendimentos ineficazes e pouco realistas”.
Para sustentar esse plano, milhares de pessoas foram forçadas a sair do campo. E grandes fazendeiros acabaram destituídos de seus bens. Precisamente por se rebelarem, eles eram retratados pela propaganda política soviética como inimigos da revolução, pessoas mesquinhas que escondiam comida enquanto os trabalhadores das indústrias se sacrificavam para construir um novo mundo socialista.
“No começo dos anos 1930 o regime impôs cotas de grãos exorbitantes, muitas vezes confiscando os estoques até as últimas sementes”, informa Irene Mycak, porta-voz do Holodomor Awareness Committee, de Toronto. “O território da Ucrânia foi isolado por unidades armadas para evitar que as pessoas pudessem procurar por comida em regiões vizinhas. O plano de Stalin, em 1932, era exterminar os fazendeiros ucranianos por meio da fome e, assim, quebrar o movimento nacionalista que havia iniciado nos anos 1920 e buscava devolver à Ucrânia o status de estado independente”.
Essas alterações drásticas e mal planejadas colocaram não só a Ucrânia em crise, mas também outras áreas produtoras de cereais, em especial o Cazaquistão, que perdeu pelo menos 600 mil pessoas; a etnia local precisou de 60 anos para voltar a ser maioria em seu próprio país. Algumas partes da Rússia também foram atingidas, como a vila de Stavropol, no sudoeste da Rússia, onde morreram de fome, entre muitas outras pessoas, duas tias e um tio, além de dezenas de vizinhos, de um menino de dois anos chamado Mikhail Gorbachev.
“As destilarias gerenciadas pelo estado dentro da Ucrânia continuaram produzindo bebidas alcóolicas para exportação, enquanto as pessoas morriam de fome”
A fome começou no próprio campo. Ali, a desorganização do plantio e da colheita fez com que muita comida se perdesse, estragada no campo, antes de ser colhida, ou ao longo da cadeia de distribuição. Ou seja: perdeu-se alimento, num momento em que a desordem provocada pela coletivização havia reduzido a produção, de 7,2 milhões de toneladas, em 1931, para 4,3 milhões de toneladas no ano seguinte.
Para piorar o cenário, o programa soviético previa a exportação de grãos para sustentar financeiramente a construção das novas indústrias. Em resultado, enquanto trens carregados de cereais seguiam para longe da Ucrânia, ao longo do inverno de 1932 para 1933 e da primavera de 1933, pessoas caíam na rua e não levantavam mais. Crianças faleciam nos colos dos pais. Mães se prostituíam em troca de comida para os filhos. Pelo menos 2500 pessoas foram fichadas na polícia, acusadas de cometer canibalismo. Era proibido deixar as áreas onde não havia comida. Também não se podia enterrar seus próprios mortos.
“Essa tragédia poderia ter sido evitada”, afirma Michael Ellman, professor da Universidade de Amsterdã há quatro décadas e especialista na economia da União Soviética. “Mesmo com a coletivização da agricultura, o número de mortes poderia ser menor, não fosse a aposta insistente no programa de industrialização”.
Ou seja: Moscou desmontou a base agrícola dos países satélite mais produtivos, retirando poder dos fazendeiros experientes, na mesma medida em que forçava uma concentração de população nas cidades, onde rapidamente a falta de alimentos foi sentida. O governo soviético parecia não se importar. “As destilarias gerenciadas pelo estado dentro da Ucrânia continuaram produzindo bebidas alcóolicas para exportação, enquanto as pessoas morriam de fome”, afirma Irene Mycak.
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Genocídio?
A crise só foi superada quando o programa de reorganização passou por ajustes. Stalin também mandou toneladas de alimentos, para reduzir a crise. O incidente, e o próprio termo Holodomor, só começaram a surgir a partir dos anos 1970, pelo esforço de imigrantes ucranianos vivendo no Canadá e nos Estados Unidos. Até bem perto do fim da União Soviética, em 1991, a população dos países membros do bloco comunista não sabia o que havia acontecido.
Foi só em 1987, com Mikhail Gorbachev à frente do governo soviético, que a crise foi mencionada publicamente por um político ucraniano – no caso, Volodymyr Shcherbytskyi, primeiro-secretário do Comitê Central do Partido Comunista da Ucrânia. Desde os anos 1990, o governo do país vem buscando o reconhecimento internacional para o que aconteceu.
Todos os anos, no quarto sábado de novembro, celebrações públicas, silenciosas, com velas e feixes de trigo, são realizadas em todo o país.
Atualmente, 16 países caracterizam Holodomor como genocídio – afinal, matou tantas pessoas, ou mais, quantos judeus foram massacrados pela Alemanha de Adolf Hitler. Entre os países favoráveis à tese do genocídio estão Canadá, Austrália, Equador, México, Polônia, Portugal e Vaticano. “Foi genocídio. O regime comunista atacou os ucranianos, como nação”, diz Irene Mycak.
Outro grupo de países concorda com o argumento usado atualmente pelo governo da Rússia: não foi genocídio porque não visou o extermínio étnico. Cidadãos de outros países, vivendo na Ucrânia na época, também foram vitimados. Para quem concorda com essa linha de raciocínio, como os governos de Chile, Espanha e Estados Unidos, foi um ato criminoso, mas não genocídio deliberado. “Não havia a intenção de matar milhões de pessoas”, alega Michael Ellman. “Como Stalin estava em disputa contra os camponeses que se recusavam a entregar a quantidade de comida que o Estado exigia, acredito que ele até queria que essas pessoas fossem mortas, mas isso é muito diferente de organizar uma crise de fornecimento com o objetivo de matar milhões”. O Brasil nunca se manifestou formalmente sobre o assunto.
Enquanto busca reconhecimento internacional, a Ucrânia relembra as vítimas do Holodomor. Todos os anos, no quarto sábado de novembro, celebrações públicas, silenciosas, com velas e feixes de trigo, são realizadas em todo o país. Um minuto de silêncio é respeitado às 16h e não se realizam shows ou apresentações de rua neste dia. É uma data de luto pelos milhões de vidas perdidas para a fome provocada por uma política de estado desastrosa.
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