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Em fevereiro de 1943, a Alemanha vivia a ressaca da derrota acachapante sofrida pelo exército nazista contra os soviéticos, na Batalha de Stalingrado. Apesar de aparentemente tudo continuar como antes, podia se sentir algo no ar: uma inquietação, uma sensação de algo tinha mudado, e nada mais voltaria a ser como antes. Mas os trens ainda circulavam, e, como sempre na Alemanha, pontualmente. Neste dia, percorrendo o trecho que ia de Munique a Solln, estava num dos vagões Inge Scholl, filha mais velha de um político de Württenberg, Robert Scholl. Ao lado dela, dois oficiais nazistas discutiam os acontecimentos recentes ao redor do país. “Abaixo Hitler!”, alguém tinha pichado nas paredes da Universidade de Munique, e folhetos contra o regime estavam sendo distribuídos por toda a parte.
Entre os responsáveis por estes atos de rebeldia, qualificados pelos jornais da época como “aventureiros”, cujas ações os fizeram párias perante o povo alemão, o Volk, estavam ninguém menos que dois dos irmãos de Inge: Sophie e Hans.
O Flautista de Hamelin
Criados nas cidades de Ingersheim e Forchtenberg, no território de Württenberg, os Scholl viveram desde cedo num ambiente contaminado pela política. O patriarca da família, Robert Scholl, fora prefeito de ambas as cidades, e notabilizara-se por suas posturas progressistas e sua postura abertamente contrária ao Partido Nazista. Para seu desgosto, parte de seus seis filhos acabara por se filiar às organizações destinadas à doutrinação dos jovens pelo governo nazista. Hans se filiou à Juventude Hitlerista, enquanto as meninas Inge e Sophie à Liga das Moças Alemãs.
As autoridades do Partido Nazista se apropriaram de uma série de ideias que já vinham sido propagadas havia décadas por organizações germânicas que visavam desenvolver entre os jovens uma vida mais saudável, em sintonia com a natureza e os valores culturais e intelectuais germânicos, e um senso profundo de disciplina.
Para a juventude da época, havia um apelo crescente e uma identificação com a ideia de pertencimento a uma coletividade germânica; como escreveu Inge: “Nossa pátria — que não passava de uma extensão do lar de todos aqueles que partilhavam um idioma e pertenciam ao mesmo povo — a amávamos, embora não soubéssemos dizer por quê. Afinal, até então nunca tínhamos conversado sobre isso. Mas agora tudo isso estava escrito em letras flamejantes no céu. E Hitler — assim ouvíamos por toda a parte — Hitler ajudaria sua pátria a conquistar grandeza, fortuna e prosperidade. Ele faria com que todos tivessem pão e emprego. Ele não descansaria até que todo alemão fosse independente, livre e feliz em sua pátria. Para nós isto era algo bom, e estávamos dispostos a fazer tudo que pudéssemos para contribuir para o bem comum. Mas havia algo mais que nos atraía, com uma força misteriosa, e nos arrastava: as fileiras cerradas de jovens marchando, ostentando bandeiras, seus olhos fixos para a frente, ao ritmo dos tambores e ao som das canções. Essa sensação de camaradagem não era irresistível?”
O que nem Inge tampouco os irmãos entendiam à época era por que Herr Robert Scholl não via com o orgulho e alegria que esperavam esse engajamento político dos filhos, mas, pelo contrário, com absoluta contrariedade. Ao comentar sobre os nazistas, dizia a eles: “Não acredite neles — são lobos e enganadores, e estão manipulando despudoradamente o povo alemão”, comparando Hitler com o Flautista de Hamelin, personagem célebre de um conto dos Irmãos Grimm que, depois de se sentir enganado pelo povo local, que se recusara a pagar pelos seus serviços depois de ele ter livrado a cidade de uma infestação de ratos, usou os poderes hipnóticos de sua flauta para levar embora as crianças.
Mas já era tarde, e boa parte da família Scholl já estava totalmente imersa nos passeios e desfiles organizados pela Juventude Hitlerista, onde teve a chance de conhecer e interagir com inúmeros outros compatriotas de todos os cantos da "gloriosa nação germânica".
Ponto de mudança
Hans, em especial, parecia especialmente empolgado com a experiência, e aos poucos começou a se destacar, especialmente ao entreter as “tropas” com sua bela voz, a ponto de ser escolhido para carregar a bandeira do Partido Nazista no comício anual em Nuremberg. Ao retornar, no entanto, seus irmãos ficaram surpresos ao ver que, longe de uma expressão de felicidade ou orgulho, Hans trazia no olhar triste toda uma desilusão que já vinha sendo fermentada há algum tempo. Ele contou uma série de episódios, entre eles as ocasiões em que foi repreendido pelos seus superiores por cantar músicas russas ou norueguesas durante os encontros com outros jovens, e, ameaçado de punição, ao questionar a proibição.
Desde então, segundo ele, o sentido de aquilo tudo havia desaparecido; por que ele não podia cantar canções tão belas, somente porque tinham sido criadas por outras raças? Os irmãos recordaram-se também de ocasiões em que a questão dos judeus foi levantada em discussões entre os jovens nos encontros, especialmente a que uma garota de 15 anos teria dito que “esta coisa com os judeus é algo que não consigo engolir”, ao que foi repreendida pelo líder de sua “tropa”, que lhe assegurou que Hitler sabia o que fazia, e que para o bem comum por vezes era necessário aceitar coisas difíceis e até mesmo incompreensíveis.
A semente da desconfiança e da insatisfação já estava implantada entre os Scholl. Mas, para Hans, a gota d’água veio quando um de seus superiores retirou sem qualquer cerimônia de suas mãos um livro de seu autor favorito, Stefan Zweig, dizendo que ele tinha sido banido. O motivo? O censor não soube responder.
"Espírito livre"
Algum tempo depois, os irmãos ouviram a história de um professor que tinha desaparecido sem deixar qualquer rastro. Segundo as histórias, pouco antes de sumir ele teria sido obrigado a ficar diante de um pelotão da SA, os temíveis paramilitares responsáveis por, entre tantas atrocidades, a Noite dos Cristais, e receber uma cusparada na cara de cada um dos milicianos. Ao procurarem pela mãe dele para entender o que acontecera, receberam a resposta da mulher, inconsolável e desesperada: ele se recusara a se filiar ao Partido Nazista, e por isso tinha sido mandado para um campo de concentração.
Logo Robert se viu obrigado a explicar aos filhos o que era um campo de concentração, e dar a sua versão do que estava acontecendo com o seu país — desta vez para ouvidos mais receptivos ao que ele dizia. Perguntando sobre se Hitler sabia da existência desses campos, respondeu: “Como ele poderia não saber, se eles existem há anos, e foram montados por alguns de seus amigos mais próximos? E por que ele não usou o seu poder para acabar com eles? E por que todos que conseguem ser libertados destes campos são proibidos, sob pena de morte, de contar tudo o que passaram neles?”
Robert então explicou, pacientemente, como tudo o que Hitler tinha feito pelo país, e que o tornara tão popular, sob o pretexto de “arrumar a economia”, não passara de um artifício demagógico para utilizar a mão-de-obra desempregada do país para fortalecer a indústria armamentista e militar, ao mesmo tempo em que fortalecia seu próprio poder e aniquilava seus oponentes políticos.
Inge descreveu a sensação que lhe invadiu neste momento como a de descobrir que a casa bela e limpa onde você mora tem um porão repleto de coisas terríveis e assustadoras acontecendo. “O que mais quero de vocês é que vivam de maneira íntegra e tenham o espírito livre, não importa o quão difícil isto possa ser”.
Aproximação com o catolicismo
Em 1937, Hans, que já vinha expressando discordâncias vocais contra o que discordava do regime, foi preso acusado de participar de outras organizações juvenis tidas como “incompatíveis” com a Juventude Hitlerista, e de “comportamento imoral” — o eufemismo nazista para homossexualismo. O fato causou um profundo impacto nos irmãos, especialmente em Sophie, que abandonou de vez sua militância nas organizações juvenis e passou a se dedicar à arte. Mas, como praticamente todos os jovens entre 18 e 25 anos da época, foram obrigados a servir no Reichsarbeitsdienst, o Serviço de Trabalho do Reich, uma organização destinada a mitigar os efeitos do desemprego no país e um pré-requisito para todos aqueles que desejavam cursar uma universidade na Alemanha.
Sophie ainda tentou um emprego como professora de jardim de infância para tentar escapar do serviço, mas sem sucesso; o excessivo militarismo com que ela se deparou serviu para que aumentasse ainda mais sua ojeriza ao regime e começasse a pensar em práticas que envolvessem algum tipo de resistência pacífica a ele. Ela passava o tempo lendo uma cópia que trouxera escondida das obras de Santo Agostinho, já que todos estavam proibidos de portar livros, e com escapadas para uma capela vizinha ao quartel onde estava instalada, passava tardes ouvindo o órgão do local e apreciando a natureza ao redor.
Hans se voluntariou para o serviço, conseguindo ser dispensado em 1939 para cursar medicina na Universidade de Munique. Apesar da criação luterana que sua família tinha lhe dado, Hans começou a se aproximar cada vez mais do catolicismo, religião dominante na região da Baviera, e na universidade entrou em contato com diversos professores, muitos deles membros do clero, que não escondiam suas críticas ao nazismo.
Ambiente de revolta
Naquele mesmo ano, no entanto, foi convocado, juntamente com outros de seus colegas de universidade, como Hans Scholl, Christoph Probst, Willi Graf, Alexander Schmorell e Jürgen Wittenstein, para atuar como sargento-médico na linha de frente na França. A experiência traumática serviu como uma prévia do que viria, e despertou nele um senso de revolta. Wittenstein se lembra de quando Schmorell lhe disse, um dia, diante da porta de seu dormitório: “quem sabe daqui a dez anos haverá uma placa dizendo que foi aqui que a revolução começou”.
Mesmo de volta à Alemanha, os estudantes continuaram a ter uma vida dividida entre os estudos e o serviço militar compulsório. Havia um ambiente de revolta no ar. Até o início da Guerra, os estudantes eram obrigados a seguir uma disciplina prussiana ao entrar e sair das salas em filas de dez alunos por vez, vestindo uniformes impecáveis, e dormir em alojamentos miliares. Com o tempo, a impraticabilidade de se fazer isso com estudantes universitários se provou total, e muitos passaram a usar suas roupas do dia a dia nas aulas, viver em alojamentos privados e até mesmo responder nas chamadas pelos alunos que faltavam nas aulas.
Mas em 1941 Hans e seus colegas foram novamente convocados, desta vez como parte do corpo médico da Wehrmacht destacado para atuar no tão temido front oriental. Lá, tiveram contato com uma realidade ainda mais cruel e terrível dos efeitos que Hitler e o nazismo estavam tendo sobre o mundo. Schmorell, que tinha sido criado em Orenburg, na fronteira da Rússia com o Cazaquistão, por freiras russas, dominava o idioma e pôde ter um contato ainda maior com o efeito que a invasão alemã estava tendo sobre as populações locais. As atrocidades cometidas pelo exército e pela SS contra essas populações, especialmente contra os judeus, tiveram um impacto enorme sobre os jovens estudantes. Numa carta enviada por Willi Graf para sua irmã, ele escreveu: “gostaria de ter sido poupado de ter visto tudo isso que fui obrigado a testemunhar”.
Em 1942, já de volta a Munique, Hans recebeu a companhia de Sophie na universidade, que se matriculou nos cursos de filosofia e biologia. Na mesma época, os dois irmãos começaram a receber em sua residência cópias dos sermões do Conde Galen, Bispo de Münster, denunciando a perseguição sofrida pelos mosteiros da Companhia de Jesus por parte de agentes da Gestapo por toda a Vestfália e Renânia, com a expulsão dos clérigos e todas as suas posses, bem como propriedades da Igreja, sendo transferidas para o governador local.
"Todo alemão honesto tem vergonha de seu governo"
Hospitais e asilos para doentes mentais, muitas vezes sob os cuidados de religiosos, estavam sendo desativados e seus pacientes levados embora, apenas para que, alguns dias depois, seus parentes recebessem um telegrama informando que eles tinham “morrido”. O mesmo, segundo o bispo, vinha ocorrendo por diversas outras partes do Reich, sem que qualquer jornal tenha tido a coragem de denunciar. Depois de ler estas cartas, Hans tomou a decisão de comprar um mimeógrafo e começar a fazer essas denúncias na forma de panfletos.
Na mesma época, Robert Scholl, que já havia largado a vida política e tinha uma empresa de contabilidade em Ulm, desabafou com um colega de trabalho: “A guerra já está perdida! Este Hitler é um flagelo de Deus sobre a humanidade, e se a guerra não terminar, logo os russos estarão sentados em Berlim.” Acabou sendo condenado a quatro meses de cadeia. Ao ouvir sobre a prisão em massa de comunistas, Hans teria dito: “em nome da coragem cívica e cristã, algo precisa ser feito”.
Juntamente com seus colegas de serviço militar, Hans escreveu o primeiro do que seria uma série de quatro panfletos icônicos; o primeiro deles terminava com o apelo desesperado: “Não se esqueçam de que toda nação merece o governo que ela tolera”. E perguntava: “Não é verdade que todo alemão honesto tem vergonha de seu governo hoje em dia? Quem entre nós consegue conceber a dimensão da vergonha que cairá sobre nós e nossos filhos quando este véu for retirado de diante de nossos olhos, e os crimes mais horríveis — crimes que estão além de quaisquer medidas humanas — forem expostos à luz do dia?”
Datilografados um a um, a princípio, na casa dos pais de Alexander Schmorell, os panfletos baseavam-se fortemente no conhecimento dos autores da literatura alemã, de autores como Schiller e Goethe, bem como na Bíblia, autores da Antiguidade como Aristóteles, e até mesmo Lao-Tsé, para fazer um apelo à intelectualidade alemã e advogar uma resistência passiva aos nazistas.
Folhas da Rosa Branca
Utilizando-se de uma lista telefônica, os panfletos começaram a ser enviados para indivíduos específicos ao redor de Munique. Algumas cópias eram deixadas em cabines telefônicas, enquanto outras eram distribuídas em sigilo em universidades. Todos os panfletos eram enviados para outros membros da organização, para que eles pudessem saber se estavam sendo interceptados pelas autoridades.
Traziam o título “Folhas (“folhetos”) da Rosa Branca”, e vinham basicamente com a mesma mensagem: mencionavam o extermínio em massa sendo cometido pelos nazistas contra judeus e poloneses, e pediam por uma “autocrítica” que “libertasse a ciência alemã”, “libertasse o espírito do Mal” e trouxesse “um renascimento da vida estudantil alemã, para que a universidade voltasse a ser novamente uma comunidade viva, devotada à verdade”, além de comentários sobre como a Alemanha deveria ser reconstruída depois da Guerra e reintegrada à Europa. “Desde a conquista da Polônia, 300 mil judeus foram assassinados neste país da maneira mais bestial. (...) O povo alemão cochila num sono estúpido, e encoraja os criminosos fascistas. Cada um deles quer se livrar de sua culpa, e cada um deles continua seguindo em frente com sua consciência plácida e calma. Mas ele não será exonerado: ele é culpado, culpado, culpado!”
O quarto panfleto teve um propósito específico, para afastar qualquer suspeita de que o movimento estivesse sendo financiado pelos Aliados: “Declaramos enfaticamente que a Rosa Branca não está a soldo de qualquer potência estrangeira. Embora saibamos que o poder Nacional Socialista precise ser destruído por meios militares, estamos em busca do renascimento do espírito germânico, profundamente ferido. Pelo bem das futuras gerações, um exemplo precisa ser dado depois da guerra, para que ninguém jamais tenha o menor desejo de tentar novamente algo como isto. Não se esqueça dos pequenos canalhas deste sistema; guarde seus nomes, para que ninguém consiga escapar. Não ficaremos em silêncio — somos sua má consciência. A Rosa Branca nunca lhes deixará em paz.”
No verão de 1942, muitos dos envolvidos foram obrigados a servir novamente no front soviético, forçando uma pausa na produção dos panfletos, que por si só já vinha trazendo uma dificuldade operacional terrível: o papel estava em escassez na Alemanha, durante a guerra, e qualquer um visto comprando uma quantidade excessiva de papel ou envelopes podia ser denunciado por comportamento suspeito.
Foi mais ou menos nessa altura que Sophie descobriu a empreitada que o irmão vinha liderando, até então desconhecida por ela. Seu namorado, Fritz Hartnagel, tinha presenciado diversas atrocidades contra prisioneiros de guerra soviéticos durante seu período no serviço militar, e emprestou mil marcos para que conseguissem comprar o equipamento necessário para publicar os panfletos seguintes.
Entre junho de 1942 e fevereiro de 1943, o grupo se reuniu na casa dos irmãos Scholl, no número 13 da Franz-Josef-Strasse, em Munique, onde produziu e de onde distribuiu milhares de folhetos conclamando os alemães a tomarem alguma atitude contra Hitler, e detalhando os crimes cometidos pelo exército nazista. “Por que vocês deixam estes homens que estão no poder roubarem, gradualmente, às claras e em segredo, seus direitos, um após o outro, até que um dia não reste nada além de um sistema estatal mecanizado, presidido por criminosos e bêbados? Por acaso seu espírito já foi esmagado a tal ponto que se esqueceram de que é seu direito — ou, melhor, sua obrigação moral — eliminar este sistema?”
Karl Huber, professor e provocador
Em novembro de 1942 o movimento teve um novo, e talvez seu mais prestigioso membro: o professor de filosofia, psicologia e musicologia Karl Huber. Huber sempre desafiava as autoridades da maneira que podia, fazendo comentários sarcásticos durante suas aulas sobre o governo, fazendo questão de comentar sobre obras notoriamente censuradas e banidas, ou até mesmo fazendo questão de dar uma aula inteira de uma hora sobre um autor judeu como Spinoza. Ao ler o quinto panfleto do grupo, Huber fez questão de proibir sua publicação, por julgá-lo “excessivamente comunista”, e insistiu com Hans para que não o publicasse naquele momento, e o reescrevesse.
Em janeiro do ano seguinte, o Gauleiter — uma espécie de governador-biônico, apontado pelo Partido Nazista — da Baviera, fez um discurso para os alunos da Universidade de Munique durante uma visita ao Museu Alemão, na qual recriminou todas as mulheres ali presentes por estarem desperdiçando tempo e dinheiro sendo estudantes, algo que, segundo ele, “elas não tinham o direito de fazer”. Para ele, elas estariam cumprindo muito melhor suas funções dando um filho ao seu amado Führer, e ofereceu a elas o serviço de “belos rapazes”, se elas não fossem capazes de obtê-las por conta própria. Quando as estudantes tentaram deixar o recinto, sob aplausos dos outros estudantes, o Gauleiter ordenou que fossem presas, o que rapidamente se transformou num tumulto generalizado. Foi então que o quinto panfleto foi finalmente reescrito, e 6 mil cópias distribuídas pelo país: “Panfletos do Movimento de Resistência na Alemanha”.
Aí veio a derrota em Stalingrado, e com ela o ensejo para um novo panfleto. Desta vez o autor foi o professor Huber, e o tom se tornou ainda mais ousado e provocativo. O título era “Camaradas estudantes!” (“Kommilitonen!”), e anunciava que o dia do julgamento final tinha chegado para “o mais desprezível dos tiranos que nosso povo jamais teve de suportar. Os mortos de Stalingrado nos suplicam!” Simultaneamente, Hans, Schmorell e Willi Graf aproveitaram-se do clima de tumulto generalizado para pichar slogans por diversos prédios em Munique, principalmente na universidade. A cidade foi pega de surpresa com frases como “Abaixo Hitler”, “Hitler Assassino” e “Liberdade” estampadas em suas paredes.
Prisão e execução
Algumas semanas depois, Hans e Sophie entraram na Universidade de Munique carregando uma mala repleta de cópias de panfletos. Aproveitando-se que a maioria dos estudantes estava em horário de aula e os corredores estavam vazios, começaram a deixar pilhas de panfletos diante de cada uma das portas.
Ambos estavam prestes a ir embora, quando Sophie, ao ver que alguns panfletos ainda tinham ficado dentro da mala, cometeu o maior erro de sua vida: resolveu arremessá-los do mezanino para o átrio do prédio, e foi vista por um funcionário da universidade que era membro do Partido Nazista. Ambos foram presos pela Gestapo dias depois; na hora de sua prisão, Hans ainda estava em posse do rascunho de um sétimo panfleto, que estava em seu bolso; mesmo depois de tentar engoli-lo, sem sucesso, a caligrafia de Christoph Probst foi identificada neste panfleto, e ele também foi preso em seguida.
A reação das autoridades do Reich foi imediata. Um tribunal foi convocado quatro dias depois, e o célebre Roland Freisler, principal juiz da Tribunal Popular do Grande Reich Alemão, criado por Adolf Hitler depois do incêndio no Reichstag, com a intenção de aniquilar qualquer tipo de resistência e liberdade individual no país, foi convocado rapidamente. Num julgamento que durou cerca de quatro horas, os três foram condenados à morte na guilhotina.
Sophie tinha submetida a um “interrogatório” tão brutal pela Gestapo que teve de ser levada para a corte com uma perna quebrada. Ainda assim, ergueu-se diante do juiz Freisler e disse: “você sabe tão bem quanto nós que a guerra está perdida. Por que é tão covarde que não consegue admitir isso?” Seu irmão ainda tentou assumir a culpa pela irmã, numa tentativa vã de inocentá-la, dizendo que ele é que tinha jogado os panfletos, sem qualquer sucesso. Mas Sophie, diante do juiz, declarou sem qualquer medo sua participação na trama: “Alguém, afinal, tinha que começar. Muitos outros acreditam naquilo que escrevemos e dissemos. Eles só não têm a coragem de se expressar como nós.” Em meio ao julgamento, Robert Scholl e sua esposa, Magdalene, tentaram entrar no tribunal, mas foram barrados pelos guardas; ao ouvir de Magdalene que ela era mãe de dois dos acusados, teve de ouvir: “você deveria tê-los criado melhor”.
Ambos só puderam ver os filhos por alguns breves momentos, antes da execução. Nenhum parente de Christoph Probst conseguiu vê-lo. Magdalene ofereceu doces para os filhos, que Hans recusou; Sophie aceitou, dizendo “afinal, eu nem almocei!”. Depois de alguns minutos, foram levados para o pátio onde seriam decapitados. As últimas palavras de Probst foram “nos vemos logo mais, daqui a alguns minutos”. Sophie, estoicamente, disse: “Um dia tão belo e ensolarado, e eu tenho que ir. (...) Mas de que importa minha morte se, através de nós, milhares de pessoas forem despertadas e tomarem alguma atitude?” Já Hans gritou, e heroicamente: “Viva a liberdade!”
Ao longo dos dias seguintes, uma verdadeira caçada foi feita ao restante do grupo. Os nazistas estavam desesperados para acabar com o que viam como uma ameaça maior ao regime do que muitos de seus inimigos externos. Meses depois outro julgamento foi feito, no qual Schmorell, Graf e Huber foram condenados também à guilhotina. Depois de algum tempo apelando à decisão, foram executados. O professor Huber, antes de morrer, ainda pediu pelo retorno à liberdade do povo alemão, e citou o filósofo Johann Gottlieb Fichte: “E deves agir como se de ti e de teus feitos dependesse o destino da Alemanha, e somente tu devesses responder por ele”. Sua esposa recebeu uma conta de 600 marcos pelo desgaste que sua execução tinha causado à lâmina da guilhotina; ao responder que não podia pagar pela quantia, que era quase o dobro do salário mensal de seu marido, o funcionário responsável respondeu que poderia fazer um desconto, tendo em vista a grande quantidade de executados nos últimos dias.
Com o tempo todos os envolvidos com o movimento acabaram sendo presos, embora nem todos executados. Muitos foram mandados para campos de concentração, e outros resolveram delatar seus ex-companheiros para se salvar. Uma cópia do sexto panfleto, escrito por Huber, foi levada para fora da Alemanha e caiu nas mãos dos Aliados, que imprimiram e jogaram milhões de cópias sobre todo o território alemão.
Depois da execução de Hans e Sophie, Inge disse: “vivíamos numa sociedade em que o despotismo, o ódio, e as mentiras tinham se tornado o estado normal das coisas. Cada dia sem ser preso era uma espécie de presente. Ninguém estava livre de ser preso por qualquer comentário descuidado, e muitos desapareciam para sempre sem qualquer motivo... Ouvidos escondidos pareciam escutar tudo que era dito na Alemanha. O terror estava no seu encalço, onde quer que você fosse.” Cinco dias depois da execução de Hans e Sophie, Robert Scholl foi condenado a 18 meses na prisão, por “ouvir transmissões de rádio do inimigo”.
A íntegra do Sexto Panfleto, sem dúvida o mais contundente deles:
“Camaradas Estudantes,
Profundamente abalado, nosso povo observa a perda dos homens de Stalingrado. 330 mil alemães foram levados de maneira irresponsável e sem sentido para suas mortes e destruição pela engenhosa estratégia do soldadinho da Primeira Guerra. Führer, nós agradecemos você! (“Führer, wir danker Dir” era o slogan usado nos comícios nazistas).
O povo alemão está em ebulição. Vocês querem continuar confiando o destino de nossos exércitos a esse amador? Precisamos mesmo sacrificar o resto de nossa juventude alemã às ambições rasteiras de uma camarilha partidária? Não, nunca! O dia do acerto de contas chegou, o acerto de contas de nossa juventude alemã com a tirania mais abominável que nosso povo já suportou. Em nome de todo o povo alemão, exigimos do Estado de Adolf Hitler a devolução de nossas liberdades pessoais, o tesouro mais precioso dos alemães, que ele nos surrupiou de maneira sub-reptícia.
Crescemos sob um governo que nos privou implacavelmente da liberdade de expressão. A Juventude Hitlerista, a SA, a SS, fizeram o máximo para nos forçar em seres uniformizados, para nos revolucionar e anestesiar durante os anos mais promissores de nossas vidas, que normalmente seriam dedicados à aquisição de uma educação. “Treinamento ideológico”, era o termo que usavam para descrever este método desprezível de confundir, através de uma névoa de frases vazias, nossa capacidade promissora de pensar e agir por nós mesmos. Ao mesmo tempo demoníacos e tacanhos, eles treinavam futuros figurões do partido em “castelos das ordens de cavalaria” para se tornarem assassinos e exploradores ímpios, insolentes e inescrupulosos, que seguem de maneira cega e estúpida seu Führer. Acham que nós, intelectuais, somos patetas que eles podem transformar em porretes para que eles continuem a reinar.
Soldados experientes são disciplinados como alunos escolares por aspirantes a políticos, Gauleiters insultam de maneira obscena a honra de estudantes do sexo feminino. As estudantes da Universidade de Munique deram uma resposta digna à ofensa contra sua honra, e os estudantes defenderam e se mantiveram firmes em defensa destas mulheres. Este é o início de nossa luta pela autodeterminação, sem a qual nenhum valor intelectual ou espiritual pode ser criado. Devemos nossos agradecimentos aos bravos camaradas, homens e mulheres, que nos deram este brilhante exemplo.
Combata o Partido, abandone o Partido. Boicotemos palestras ministradas por patetas políticos. Estamos em busca da verdadeira ciência, e da legítima liberdade intelectual. Nenhuma de suas ameaças pode nos amedrontar, nem mesmo o fechamento de nossas universidades. Cada um de nós precisa lutar por nosso futuro, liberdade, e por um regime que tenha consciência de sua responsabilidade moral.
“Liberdade e Honra!” Por dez anos Hitler e seu cúmplices abusaram, distorceram e degradaram estas nobres palavras alemãs ad nauseam, tal como diletantes que jogam coisas mais preciosas de uma nação para os porcos. Durante esses dez anos a destruição de todos os valores materiais e espirituais mostraram ao povo alemão o que liberdade e honra significam para eles. Este horrível banho de sangue que eles causaram por toda a Europa abriu os olhos até do alemão mais ingênuo e simplório. (...) O nome da alemão ficará para sempre desonrado, a menos que a juventude da Alemanha finalmente se erga para, simultaneamente, vingar e limpar seu nome, esmagar aqueles que lhes atormentaram e invocar uma Europa nova, intelectual e espiritual.
Os mortos de Stalingrado estão implorando – “erga-se, meu povo, os faróis estão em chamas!” (repetindo o chamado que gerações anteriores de alemães tinham feito para salvar sua nação de Napoleão)
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