“Vivemos sem sentir o chão nos pés,
A dez passos não se ouve a nossa voz.
Uma palavra a mais e o montanhês
Do Kremlin vem: chegou a nossa vez.
Seus dedos grossos são vermes obesos.
Suas palavras caem como pesos.
Baratas, seus bigodes dão risotas;
Brilham como um espelho as suas botas.
Cercado de um magote subserviente,
Brinca de gato com essa subgente.
Um mia, outro assobia, um outro geme.
Somente ele troveja e tudo treme.”
O poeta russo Osip Mandelstam escreveu esses versos em novembro de 1933. O “montanhês do Kremlin”, com dedos grossos como vermes obesos e palavras que caem como pesos, é Josef Stalin, que nasceu nas montanhas do Cáucaso.
Mandelstam leu o poema para poucos amigos e o guardou. Mas os versos seriam citados por ocasião de sua prisão, em 1934 — a polícia secreta conseguiu, de alguma forma, uma cópia do texto. O poeta passou três anos em exílio forçado com a esposa. Considerou um milagre não ter sido condenado à morte ou a um dos gulags, os campos de trabalho forçado. Acabou libertado em maio de 1937.
Mandelstam seria detido novamente em 5 de maio de 1938, acusado de exercer “atividades contrarrevolucionárias”. Morreria a 27 de dezembro, em um campo de trabalho perto de Vladivostok, de fome e de frio. Tinha 47 anos e anos antes havia escrito: “Só em nosso país se respeita a poesia. Matam pessoas por causa dela”.
Entre 1937 e 1940, morreriam executados ou em campos de trabalho o escritor Isaac Babel, o diretor de teatro Vsevolod Meyerhold, o botânico Nikolai Vavilov, a pianista Khadija Gayibova, o paleontólogo Dmitrii Mushketov, o diretor de cinema Les Kurbas e o filósofo Jan Sten, que dirigira o Instituto Marx-Engels e havia sido tutor de Stalin entre 1925 e 1928 (o comandante era um aluno limitado, que tinha dificuldade em entender os conceitos mais básicos).
As condenações eram antecedidas por meses de torturas, que levavam a declarações forjadas por escrito. Issac Babel, por exemplo, assinou uma confissão em que havia uma mancha de sangue. Não morreram apenas intelectuais e acadêmicos: de ladrões comuns a camponeses, passando por políticos e militares, foram vitimadas pelo menos 750 mil pessoas, principalmente no período entre 1937 e 1938.
O Grande Expurgo, como ficou conhecido o episódio de perseguição generalizada comandado por Stalin, atingiu 13 dos 15 generais de três estrelas, oito de nove almirantes e 154 dos 186 comandantes de divisão — às vésperas da Segunda Guerra, as forças armadas do país ficaram acéfalas.
Líderes históricos, que haviam participado ativamente da Revolução Russa de 1917 e da guerra civil que se seguiu, também seriam perseguidos. E tudo isso começou com a morte misteriosa de um político que ganhava espaço entre os principais formadores de opinião da União Soviética de meados dos anos 30.
Julgamentos em massa
Entre 1927 e 1935, Stalin vinha acumulado fracassos, especialmente na economia. A coletivização da agricultura havia provocado um colapso no abastecimento. A insatisfação ganhou números concretos quando o 17º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, de 1934, apontou a reeleição de Stalin. Seria apenas formalidade, não fosse o fato de que muitos delegados (acredita-se que mais de cem) não votaram no ditador. Por outro lado, crescia em popularidade o nome de Sergei Kirov, líder do Partido Comunista em Leningrado.
Revolucionário de primeira hora, participante da revolução de 1905, preso a mando do czar, comandante bolchevique durante a guerra civil que acabou em 1922, amigo pessoal de Stalin, Kirov era uma figura respeitada e admirada. Mas morreu baleado em seu próprio escritório, em dezembro de 1934. Suspeito de ser o mandante do crime, o ditador reagiu localizando e mandando prender e executar dezenas de supostos envolvidos.
Em 1936, o incidente foi utilizado como pretexto para dar início aos expurgos, com três julgamentos em massa. No primeiro, foram alvos líderes políticos antigos, como Sergei Mrachkovsky, considerado um herói por sua atuação na guerra civil russa. O segundo aconteceu em 1937 e mirou políticos de segundo escalão. Foi no terceiro que os generais foram perseguidos. Muitos confessaram, sob tortura, exercer atividades contrarrevolucionárias. Os julgamentos foram públicos, as execuções não — geralmente aconteciam dentro das prisões, à noite.
No restante do país, cada região tinha metas para localizar, julgar e matar supostos espiões. Dos 139 membros eleitos no 17º Congresso, 98 acabariam sendo executados. Ironicamente, na Rússia, a perseguição ficou conhecida como Yezhovshchina (“fenômeno Yezhov”), em referência ao chefe da polícia secreta soviética que coordenava a perseguição, Nikolai Yezhov. Mas o próprio Yezhov acabaria caindo em descrédito e sendo preso e executado em 1940.
Isso porque, em 1938, decretou a prisão de Lavrenty Beria, líder do partido na Geórgia. Antes de ser detido, Beria viajou a Moscou, onde encontrou Stalin pessoalmente e o convenceu de revogar a ordem. Ao longo dos meses seguintes, Beria conquistaria a confiança do ditador, ao ponto de superar Yezhov, assumir o papel de líder da polícia secreta — e ordenar a prisão e a morte de seu antigo algoz.
Edição de fotos
A execução de lideranças criou um problema de relações públicas para Stalin: com justificar as centenas de fotos em que o ditador aparecia ao lado de pessoas que agora eram publicamente condenadas? A solução foi editar as imagens. Desde os expurgos até o fim da vida, o ditador passaria a se cercar de especialistas em republicar fotos alteradas.
Foi assim que imagens em que Stalin aparecia ao lado de Yezhov, por exemplo, foram alteradas. Antigas lideranças desapareceram de quaisquer registros de imagem, incluindo Leon Trotsky, que acabaria sendo assassinado no México, em 1940 — as muitas fotos em que Trotsky aparecia ao lado de Vladimir Lênin foram alteradas.
Com a saúde severamente deteriorada desde 1945, Stalin morreria em 1953. Os organizadores de seu funeral eram os mesmos homens que haviam sobrevivido aos expurgos e alcançado uma posição relativamente estável ao lado do ditador: Georgy Malenkov, Vyacheslav Molotov, Lavrentiy Beria e Nikita Khrushchev.
Khrushchev, aliás, assumiria a liderança do país e denunciaria os crimes de Stalin em 1956. Mas, vinte anos antes, em 1936, ele se dizia favorável aos expurgos: “Todos que se alegram com os sucessos alcançados em nosso país, as vitórias do nosso partido liderado pelo grande Stalin, encontrarão apenas uma palavra adequada para os cães mercenários e fascistas do bando Trotskista-Zinovievite. Essa palavra é ‘execução’”.
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