A rejeição da elite intelectual ao criacionismo encontra respaldo na ciência, mas também ecoa um preconceito de classe contra evangélicos “obscurantistas”.| Foto: Pixabay
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Hoje em dia predomina a ideia de que ciência e religião não têm nada a ver uma com a outra. E, entre os mais esclarecidos, não é difícil encontrar quem tome o ateísmo como sinal de superioridade intelectual. Com o ativismo do cientista Richard Dawkins, somos levados a tomar a crença em Deus por mera demência ou puro delírio, decerto um demérito.

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Essa mentalidade que separa teístas atrasados de ateus científicos é recente e só prosperou no século XIX. Seu primeiro expoente foi Auguste Comte, para quem a crença em Deus era uma fase da Humanidade a ser superada pela ciência. Tendo o amor como base, a ordem como meio e o progresso como fim, a Humanidade deixaria a crença em Deus para trás e adotaria a religião laica que cultua a Humanidade.

No mesmo século apareceu Marx, que também enxergava um futuro tecnológico e ateu para o homem. Para ele, a religião é ópio e a chave da história é a posse dos meios de produção, que são inventados e aprimorados por técnicos.

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Delírio ideológico

Essa visão, porém, encontra tão pouco amparo na realidade humana e na história da ciência que merece ela própria ser chamada de delírio ideológico. Um ateu científico que desdenhe da visão religiosa do mundo rechaçará, com razão, o criacionismo. Mas que explicação para a origem do Universo colocará em seu lugar? O Big Bang, a teoria criada pelo Padre Georges Lemaitre, que deu uma contribuição à ciência maior do que a de qualquer ateu militante. Ser ateu não implica ter uma mente científica. Ser um religioso não implica ser uma mente anticientífica.

É verdade que o exemplo do padre que propôs o Big Bang serve para mostrar como é importante diferenciar o literalismo bíblico adotado por protestantes da leitura católica da Bíblia como uma metáfora. Por certo, o princípio da sola scriptura levado a ferro e fogo inviabilizaria a invenção do Big Bang. Já o católico, seguro de que o Gênesis não é a história real do Universo e desobrigado de adotar a ortodoxia aristotélica (coisa que aconteceu só na modernidade), fica livre para fazer especulações cosmológicas.

Será o caso, então, de supormos que os católicos são toleráveis na ciência e que o problema são mesmo os protestantes ou evangélicos?

Preconceito de classe

Essa conclusão casa perfeitamente com preconceitos de classe brasileiros. Os evangélicos estão concentrados nas classes mais baixas e são eles, não os católicos, que propõem o criacionismo. Assim, para toda uma elite universitária e corporativista, é como se o fato de ser defendido por evangélicos fosse condição necessária e suficiente para tornar o criacionismo anticientífico.

Tudo se passa como se cientistas fossem pessoas de uma qualidade social elevada, com o condão de determinar o que é ciência. E foi mais ou menos assim que o Ocidente viu a ciência durante a Idade Média: ela estava toda escrita em livros, baseada no Aristóteles cristianizado por Tomás de Aquino. Ser um homem de ciência era galgar uma posição de prestígio, universitária, que permitia o acesso não só à escrita, como aos manuais e compêndios onde a Verdade estava há muito escrita.

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Assim, de nada valia aos católicos o fato de encararem a Bíblia como metáfora, pois tudo o que desviava da Ciência oficial era heresia. No Brasil, o preconceito do século XIX somou-se a esse outro, medieval. E a ciência é compreendida como uma escolástica ateia monopolizada por um grupo social de prestígio, localizado sobretudo na universidade pública. E, como os evangélicos são pobres ou nouveaux riches, a Ciência é monopólio de um grupo que necessariamente os exclui.

Perante um professor das universidades públicas, o brasileiro “esclarecido” terá deferência, pois nele vê o representante da ciência. Mas, se o professor universitário defender o criacionismo, serão irrelevantes todas as suas credenciais acadêmicas e até as da instituição. Isso revelará que ele é um crente, logo, uma pessoa sem nível, logo, um falso cientista.

O brasileiro, porém, não admitirá nunca o preconceito de classe. E, em vez de xingar os crentes de pobres e cafonas, preferirá xingá-los de obscurantistas e ignorantes, enquanto os pinta como homens brancos cis hétero para mascarar o classismo. No final das contas, o brasileiro “esclarecido” ouve bovinamente os cientistas dizerem que pesticida agrícola é machista, que ser homem ou mulher não tem nada a ver com biologia, que tribunais raciais são eficazes e morais, que o comunismo ainda não foi testado o suficiente, que a pobreza só existe por causa da maldade dos ricos e uma centena de outras bobagens – porque são bobagens autenticadas por pessoas de condição social prestigiosa.

Mas o criacionismo não, porque é coisa de pobre.

As origens nobres do criacionismo

Para mostrar como é descabido o preconceito brasileiro, nada melhor do que apontar Isaac Newton, um evangélico fervoroso que pretendia enaltecer a obra do Criador com seus estudos. E que foi, inclusive, uma espécie de patrono intelectual do criacionismo.

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Numa época em que teologia, filosofia (ou metafísica) e física (ou filosofia natural) eram todas vistas como conexas, a criação de uma nova física implicava um desacordo com teologias e metafísicas estabelecidas. A universidade católica e o mundo ibérico (Brasil incluso) se mantiveram os mais fechados possíveis na escolástica. Na França, porém, o cartesianismo conquistou físicos, matemáticos e teólogos. Assim, o surgimento da física newtoniana causou uma guerra de papel entre a Inglaterra e a França (à qual se aliou um bravo alemão, Leibniz, recrutado para as suas hostes).

Se os cartesianos derivavam o mundo de Deus a partir da lógica, Newton reivindicava a façanha oposta: a partir da experiência, derivar do mundo o seu Criador. Newton apresentava as maravilhas da ótica por ele descobertas e perguntava: “Terá sido o olho engendrado sem perícia em ótica? E o ouvido, sem o conhecimento dos sons?” Dando por certo que não, Newton concluía ser “manifesto que um Ser incorpóreo, vivente, inteligente, onipresente, que, no espaço infinito (…) vê intimamente as coisas em si mesmas”.

Morto Newton, os teólogos ingleses insistiram na ideia de uma “teologia experimental” que usava as maravilhas da natureza para provar a existência de um grande Artífice. Nomes chave para esse movimento são as Boyle Lectures e o Bispo Joseph Butler.

Vem daí o criacionismo cristão que é bradado por pastores das nossas periferias: do newtonianismo. O criacionismo hoje anda pelas favelas brasileiras, mas o seu berço é a Royal Society. E, se recuarmos mais no tempo, encontramos outra origem ainda mais nobre: a Grécia antiga.

A Renascença trouxe aos europeus uma torrente de filosofias antigas, das quais duas foram extremamente populares na Antiguidade tardia: o estoicismo, de Zenão de Cítio, e o epicurismo, de Epicuro. Os estoicos enxergavam uma Natureza perfeitamente ordenada e tomavam a própria perfeição da ordem natural como prova do seu engendro racional por uma divindade muito sábia. Os epicuristas eram seus opositores.

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Para eles, o mundo é caótico, os deuses são parte da natureza e vivem em eterno estado de gozo, indiferentes à Humanidade. No mundo, só há átomos em movimento e vazio, e tudo o que existe é fruto do movimento dos átomos. As formas mais resistentes que surgem duram mais, enquanto que as outras perecem logo.

Era uma filosofia pré-darwinista e praticamente ateia, mas nada impediu que cristãos – até Newton – pensassem em átomos e acreditassem neles. Do mesmo jeito que ateus militantes acreditam na física newtoniana e no Big Bang.

Talvez Newton não tivesse sido capaz de pensar a sua física sem imaginar o mundo como um relógio criado por um Relojoeiro. Talvez Dawkins não tivesse sido capaz de pensar no seu gene egoísta sem uma cosmovisão ateia. Ao cabo, a ciência é um tesouro da humanidade em que cooperam evangélicos fervorosos, ateus militantes, católicos e gente das mais variadas cosmovisões. Que aprendamos, então, a não substituir o exame de ideias por um mal disfarçado preconceito de classe.

O criacionismo é muito mais bem-nascido do que as muitas teorias que são moda na universidade – e ainda assim é falso. Será que somos tão bem embasados na aceitação de teorias chiques quanto na recusa da teoria dos crentes?

*Bruna Frascolla é ensaísta e doutora em Filosofia.

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