Resumo da reportagem
- Lula expressou solidariedade a Nicolás Maduro, questionando as sanções impostas à Venezuela.
- Apesar de Maduro alegar os verdadeiros crimes contra a humanidade não são os cometidos por seu regime, mas as sanções, análises internacionais e evidências contradizem essa afirmação.
- Organizações de direitos humanos continuam denunciando graves violações na Venezuela, e a Missão de Determinação de Fatos da ONU foi prorrogada até 2024 para continuar avaliando a situação.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, em Brasília nesta segunda (29) e expressou solidariedade ao autocrata em coletiva de imprensa conjunta: “Eu acho, companheiro Maduro... você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela, da antidemocracia, do autoritarismo... é preciso que você construa a sua narrativa”. Lula também disse que é “efetivamente inexplicável um país ter 900 sanções porque o outro país não gosta dele”.
“Não gostar” não é, exatamente, o motivo das sanções, que não são 900. E não é um único país a impô-las: as sanções, que se aplicam a indivíduos e organizações do país, já foram aplicadas não só pelos Estados Unidos (alvo implícito da crítica de Lula), mas também pela União Europeia, Reino Unido, Canadá e pela própria Organização das Nações Unidas. Muitas das sanções são por não colaboração no combate ao tráfico internacional de drogas, eleições ilegítimas, corrupção, e por violações aos direitos humanos.
O título de um relatório de junho de 2018 do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos resume a questão: “Violações de direitos humanos na República Bolivariana da Venezuela: uma espiral descendente sem data para acabar”.
Denúncia de crimes contra a humanidade
Os Estados Unidos não são líderes de todas as denúncias. Em setembro de 2018, Argentina, Canadá, Colômbia, Chile, Paraguai e Peru denunciaram a ditadura venezuelana (e Maduro) ao Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes contra a humanidade. Essas repúblicas democráticas, preocupadas com a repressão a protestos no ano anterior, mas incluindo crimes que remontam até a fevereiro de 2014, listam entre os crimes “assassinato; encarceramento ou outra privação severa da liberdade física; tortura; estupro; perseguição a um grupo ou coletividade identificável por motivos políticos; e desaparecimento forçoso de pessoas”. Os signatários pedem especial atenção do TPI a “ataques generalizados e sistemáticos contra a população civil” com o conhecimento do regime. O TPI abriu a investigação em 2021.
O regime bolivariano respondeu, em 2020, com uma contra-denúncia ao TPI alegando que são as sanções, na verdade, que constituem crimes contra a humanidade. Alena Douhan, relatora especial da ONU sobre o impacto negativo das sanções, informou em 2021 que a receita venezuelana havia encolhido 99% e que “impedimentos às importações de alimentos... resultaram no crescimento da desnutrição”. Ela também pediu o fim das sanções unilaterais.
A atribuição por parte de Douhan do problema às sanções, contudo, foi criticada. O embaixador americano na Venezuela, James Story, respondeu na época que a crise do país se deve “à corrupção do regime”, e que as sanções americanas abriam exceções para itens de primeira necessidade. O enviado do líder venezuelano de oposição Juan Guaidó à ONU, Miguel Pizarro, disse que “lamentamos as imprecisões da relatora e a falta de menção a assuntos como corrupção, ineficiência, violência política e o uso da fome como uma ferramenta de controle social e político” e acrescentou que “isso é se permitir ser usado para a propaganda do regime”.
A política monetária da ditadura, típica de regimes socialistas, também explica o problema: a inflação torna os alimentos inacessíveis para a população em geral, enquanto as autoridades desfrutam de privilégios com “uma rede vasta de corrupção” que permitiu que o regime Maduro “ganhasse lucro significativo com importação e distribuição de comida”, como colocou o Departamento de Tesouro americano em 2019.
A contra-denúncia bolivariana foi analisada pelo jurista britânico-nigeriano Dapo Akande, professor de Direito internacional na Universidade de Oxford, junto a dois colegas, em um artigo publicado no American Journal of International Law em 2021. Para os acadêmicos, embora as leis internacionais vetem sanções econômicas unilaterais quando elas têm o risco de provocar fome em um povo, “isso só será o caso em circunstâncias extremas”.
O argumento do regime Maduro de crime contra a humanidade “não pode ter base nenhuma”, comentam. Akande e colaboradores concluem que “mesmo se as sanções não fossem permitidas sob a lei internacional, deve haver prova de que constituem um ataque direcionado primariamente contra uma população civil”, prova não apresentada pela Venezuela. Por fim, os juristas dão uma bronca na ditadura bolivariana por “tentar utilizar acusações de crimes contra a humanidade como arma” e aconselham o TPI a resistir a esse tipo de manobra, apesar de simpatizarem com o sofrimento de longa data dos venezuelanos comuns.
Organizações de direitos humanos detalham denúncias
Como detalhou a Gazeta do Povo este mês, o TPI coleciona milhares de depoimentos chocantes de vítimas da ditadura bolivariana. Um denunciante relatou que autoridades do regime obrigaram seus filhos a verem a mãe e a avó serem despidas à força. Isso está em um relatório do TPI de abril. Maduro se incomodou o suficiente para pedir o fim da investigação, declarar que o Estado venezuelano pode fazer suas próprias investigações, e para pedir acesso aos depoentes para o TPI, que negou o pedido dizendo que o acesso do ditador à identidade das vítimas poderia resultar em mais perseguição.
Este mês, o Programa Venezuelano de Educação-Ação em Direitos Humanos (Provea), também publicou um novo relatório com casos de tortura, repressão e censura. Foram 91 torturados durante o ano de 2022, além de duas mortes, e 1599 torturados desde 2013. Por causa do controle da informação, é grande a chance de os números serem subnotificações. Expandindo para outras fontes entre organizações humanitárias e mídia independente, são 40 mil vítimas de violência estatal em dez anos. Os alvos são sindicalistas, trabalhadores, jornalistas, ativistas, camponeses e lideranças políticas. Trabalhadores são os mais afetados.
O Provea aponta como principais perpetradores os membros do Corpo de Investigação Científica, Penal e Criminalística (CICPC), com mais de 70% dos casos. O CICPC foi estabelecido em 2001 por Hugo Chávez, antecessor de Maduro, dois anos depois de sua ascensão ao poder. Maduro é mandatário há dez anos, desde a morte de Chávez em 2013. Em 2019, se reestabeleceu no poder após eleições fraudulentas.
A Anistia Internacional, em seu relatório internacional 2022/23, em que avalia o estado dos direitos humanos em 156 países, denuncia a autocracia venezuelana por “uso excessivo de força e outras medidas de repressão contra protestos”, além de falta de acesso a direitos econômicos e sociais e até à água potável. “A impunidade das forças de segurança por contínuas execuções extrajudiciais persistiu”, diz a ONG. “Serviços de inteligência e outras forças de segurança, com a concordância do sistema judicial, continuaram a deter, torturar e maltratar arbitrariamente aquelas pessoas percebidas como oponentes do governo de Nicolás Maduro”. O número de presos políticos no período é estimado entre 240 e 310 e “mais de 7,1 milhões de venezuelanos deixaram o país”. Para comparação, a Agência de Refugiados da ONU estima em oito milhões o número de refugiados ucranianos nos países vizinhos desde a invasão Russa do ano passado.
A Human Rights Watch, outra organização respeitada de direitos humanos, fez em março uma intervenção oral em uma reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, ao qual a Venezuela não conseguiu se reeleger no ano passado, para lembrar que a aparência de “normalização” do país “deve-se em parte à dolarização da economia” e alertar que “as condições internas estão longe de ‘normais’ de uma perspectiva de direitos humanos”.
As duas ONGs internacionais aplaudem a ONU por suas missões à Venezuela que ajudam a revelar o estado atual do país. O Conselho estabeleceu em 2019 uma Missão de Determinação de Fatos que produziu um primeiro relatório em 2020. O documento já alertava que havia fundamentos suficientes para acusar crimes contra a humanidade perpetrados pela ditadura. Na época, a missão foi estendida por dois anos. Seguiram-se um segundo relatório em 2021 e um terceiro em setembro de 2022, que desmascararam uma ausência de independência do judiciário, que trabalha a favor do regime, e pediram mais prazo. A missão foi estendida até setembro de 2024.
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