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Opinião

O que o caso do tênis de R$ 17 mil diz sobre o Brasil e o brasileiro

Tênis Nike OFF-White infantil (com lacre): cálculo capitalista, inveja e cafonice. (Foto: Reprodução)

“Meu Deus, ela cortou o lacre!”, diz o cantor Saulo Pôncio num vídeo que circula nas redes sociais desde a sexta-feira (11). O ponto de exclamação em tom trágico, como se houvesse um tsunami no horizonte, tem explicação: o tênis teria custado R$ 17 mil (embora ele seja vendido na Internet por menos de US$375 (R$1.531,50). Vale notar ainda que o filho do casal, Davi, é um menino de apenas três meses de idade que, no colo da mãe, assistia tranquilamente à histeria controlada do pai.

O caso é “complexo”. Envolve a hiperexposição da intimidade nas redes sociais, um cantor para mim até então desconhecido, uma babá cuja etnia a expõe a todo tipo de vitimização e um tênis que vai ser vendido num brechó infantil ou jogado no lixo daqui a três meses e cuja graça (e valor) está não no design, nos amortecedores, no couro de panda ou no trabalho artesanal, e sim no preço e no lacre. E envolve ainda uma boa dose de desconhecimento de como capitalismo funciona, inveja e a cafonice como filosofia de vida.

Como pode existir um tênis de R$ 17 mil?

A resposta para essa pergunta é bastante simples: podendo. A precificação no capitalismo moderno leva em conta vários fatores que não se restringem ao que o senso comum entende pela trinca oferta, demanda e escassez de recursos. Isto é, há muitos fatores subjetivos que entram no cálculo do preço de um produto como um simples tênis de bebê, entre eles a “necessidade de ostentar”.

Embora possa ser moralmente reprovável, a ostentação não é necessariamente um cálculo estúpido — ao menos para quem ganha a vida expondo a própria imagem. Pode parecer estranho, mas a verdade é que a compra de um tênis infantil desse valor talvez seja um investimento rentável para alguém que viva num meio (raso, hedonista) onde a prosperidade é vista como a maior das virtudes.

Ao comprar o tênis e depois divulgar o vídeo, fazendo questão de expor o valor pago e depois rindo do lacre inocentemente violado pela babá ingênua, o cantor Saulo Pôncio passa a imagem (para seus milhões de fãs, suponho) de um homem extremamente bem-sucedido e ao mesmo tempo desapegado da própria bonança. Se você se associar de alguma forma a ele, portanto, você também pode se tornar uma pessoa bem-sucedida a ponto de praticar as mesmas extravagâncias.

Inveja disfarçada de consciência social

As reações ao vídeo variaram entre a indignação “socialmente consciente” e aquela inveja mal-disfarçada tão comum de se testemunhar quando alguém está diante de um objeto de desejo inalcançável. A inveja, neste caso, costuma vir disfarçada de superioridade moral. Mas não se engane: é só inveja mesmo.

“O que eu tô questionando é comprar um tênis de R$ 17 mil para um bebê que nem anda ainda, enquanto milhões dão sangue, suor e lágrimas para comprar leite para o filho”, escreveu um tuiteiro, com aquele estilo próprio das redes sociais, misturando lugar-comum e clichê para se chegar a uma conclusão demagógica. “Ao invés de comprar um tênis pra um BEBÊ eles poderiam doar esse dinheiro, ajudar uma ONG, fazer qualquer coisa que preste (...)”, sugeriu outro tuiteiro embriagado com a própria virtude.

Por trás dessas sugestões nobres e palavras muito belas, contudo, está o desejo de estar na pele de Sálvio Pôncio e poder fazer as escolhas por ele. É, vale a pena repetir, a inveja clássica disfarçada de superioridade moral. Por trás dessas admoestações está o mais invejoso dos ditos populares — “Deus dá asas a quem não pode voar” — com todas as suas consequências nocivas, entre elas o ressentimento social nascido da ideia de que “eu também tenho direito”.

A cafonice como valor moral

Excluída a hipótese de o tênis de R$ 17 mil com o lacre quebrado ter sido um investimento na própria imagem, o que resta é a cafonice. Usada equivocadamente como antônimo de elegância, a palavra sugere um valor estético absoluto quando, na verdade, ela expressa mesmo é um valor moral que vai muito além do desprezo aos famintos ou da opulência como fim em si.

A cafonice é um valor moral muito claro, uma forma de expressão que, neste caso, usa a moda para transmitir toda uma visão de mundo muito específica. Independentemente da condição financeira do cafona, o que essa estética marcada pelo exagero traz à tona é vazio espiritual e intelectual que tenta encontrar consolo e redenção no hedonismo.

O interessante deste caso específico é que ele envolve um bebê de apenas três meses que, alheio à cafonice (ou investimento) ao seu redor, não se dá conta de que está por crescer num ambiente que repele de todas as formas imagináveis a angústia que dá um sentido maior à vida. Neste mundo, um tênis de R$ 17 mil não é apenas um tênis de R$ 17 mil; trata-se da materialização de um ideário que vê o dinheiro, o conforto e a segurança (ou sensação de) como objetivos da existência. É a substituição do ideal clássico de beleza pela cafonice — a antiafrodite.

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