Cena do filme italiano Ladrões de Bicicleta, de Vittorio de Sica| Foto: Reprodução

Ao se digitar as palavras “ladrão” e “bicicleta”, juntas, em qualquer ferramenta de buscas na web nos últimos dias, dois conteúdos distintos aparecem logo na primeira página. O primeiro é o caso de um adolescente, de 17 anos, que tentou furtar uma bicicleta, e teve a testa tatuada com a frase "eu sou ladrão e vacilão" como punição. O outro é o de um pai de família que na década de 1940, após ter sua bicicleta roubada, único meio de sustento e de trabalho, sai para procurá-la pela cidade ao lado de seu filho.

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“Nossa, vai ser muito bom isso! E vai doer!”, é o que dizem Maycon Wesley Carvalho dos Reis e Ronildo Moreira de Araujo no momento em que tatuam e filmam o adolescente, dependente químico e com distúrbios comportamentais, na região central de São Bernardo do Campo (SP), na última sexta-feira (9). “Canalha! Não tem vergonha?”, ouve o italiano Antonio Ricci aos tapas e pontapés, após tentar furtar uma nova bicicleta para substituir a antiga. 

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Em comum, nos dois casos, os donos originais dos veículos colocam-se no meio da turba da acusação e da absolvição, optando por esta última: Ademilson de Oliveira, de 31 anos, deficiente físico, condenou a atitude do tatuador e do comparsa ao dizer que "não consegui dormir pensando nisso. Fui dormir com medo, meu coração apertado". “Solte-o! Deixe para lá”, por outro lado, é o que diz o italiano sobre o ato de Ricci. 

O movimento neorrealista italiano da década de 1940 caracteriza-se pelo uso de elementos da realidade em uma peça de ficção. Atingindo sua maior expressão no cinema, assumiu características que beiram o documental. Pessoas anônimas, não atores, eram escaladas para filmes que se firmaram como grandes clássicos do cinema mundial. Um deles, precursor do movimento, é o que tem como trama a vida de Antonio Ricci e de sua bicicleta roubada. “Ladrões de Bicicleta” (no original, “Ladri di Biciclette”) é dirigido por Vittorio De Sica, um dos expoentes do cinema italiano. 

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Na crueza do pós-guerra, em 1948, Ricci (Lamberto Maggiorani), pai de família, consegue uma vaga de emprego como colador de cartazes. Para atingir as exigências, no entanto, ele precisa de uma bicicleta. Penhorada para comprar comida, sua esposa Maria (Lianella Carell) resolve fazer a troca para retirar o veículo. Um dia, enquanto trabalhava, ela é levada. 

Desesperado com a possibilidade da perda do sustento de sua família, Ricci e o filho Bruno (Enzo Staiola), sem apoio de amigos e da polícia, saem em busca da bicicleta. Um dos maiores méritos da narrativa singela de De Sica está em atingir a capacidade de julgamento moral dos espectadores. 

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Passa-se grande parte do filme não só torcendo para que a justiça seja feita, para que o pai consiga sua bicicleta de volta, mas também nutrindo certo sentimento de repulsa – para não dizer ódio – pelo responsável por tanto sofrimento à família Ricci. Afinal, Antonio precisa daquele meio de transporte. Contudo, em uma das cenas mais belas e emocionantes do cinema italiano, quando o pai tenta realizar a mesma ação do ladrão, passa-se a almejar o êxito de Antonio. Ali, torna-se importante – e moralmente compreensível, é preciso confessar – que ele consiga roubar uma nova bicicleta. O título, provocativo, fala de ladrões de bicicleta. No plural. 

O jogo reflexivo proposto por Vittorio De Sica acerca da moralidade presente nos mesmos feitos, com circunstâncias e desígnios distintos, segue atual e emblemático para a psique humana. A partir do momento em que o adolescente tem a testa tatuada, falando dos dias de hoje, a sociedade arma e percorre por si mesma uma espiral de violência que antecipa o processo legal e judicial. Nossos impulsos mais primitivos, e a sede por se fazer justiça, reeditam e modernizam a lei de talião: o castigo deve ser dado na mesma proporção do dano causado. As mídias sociais, como uma grande ciranda, auxiliam e insuflam os ânimos, a cada linchamento. Sabe-se agora, por exemplo, que um dos dois homens presos no episódio da tortura ao jovem de 17 anos já cumpriu pena por roubo. A discussão parece mesmo escapar de seu ponto mais elementar: o absurdo da tortura, não tolerada sob qualquer circunstância. 

Se no abismo social dos pós-guerra, o diretor italiano reflete a respeito da flexibilização da moralidade diante da necessidade, De Sica também incorre justamente nos dias de hoje: será que Ricci seria considerado vítima da sociedade? Aliás, qual Ricci? O que tem a bicicleta furtada ou o que resolve obter uma que não é sua?