Não sei se vocês têm a mesma percepção que eu tenho, mas de um tempo pra cá parece-me que cada dia fica mais difícil viver como seres humanos e não como máquinas. Explico-me: até pouco tempo atrás, eu achava que, como sempre se disse na tradição ocidental, “errar era humano”. Hoje já não é mais. Perdoar, então? Nem se cogita.
Tentando encontrar uma resposta à questão de como é que chegamos a este ponto, deparei-me, mais uma vez, com “O Senhor dos Anéis”, que me parece uma leitura das mais necessárias nestes tempos de tudo ou nada, de isto ou aquilo, de preto ou branco, de luz ou sombras.
Dá-me a impressão de que Tolkien quer nos falar que, entre uma e outra coisa, os limites não são nem claros nem precisos, que o que verdadeiramente existe, entre o tudo e o nada, entre o branco e o preto, é a vida como ela é: um longo e matizado espectro de cor, de luz e de sombra.
Magos como Gandalf ou Saruman são pessoas que encontramos com frequência nas empresas, nas escolas, nos escritórios. Gente prudente, sensata, com conselhos acertados e que, de vez em quando, falham, se tornam arrogantes, pensam que têm o rei na barriga e que acabam se tornando pérfidos, mas que poderiam perfeitamente retornar daquele lugar de sombras e ficar mais perto da luz.
Homens como Aragorn ou Faramir talvez haverá poucos, mas muitos haverá como Boromir: esforçados, destemidos, prepotentes, arrojados, cheios de certeza de que vão fazer o bem e que, no fim, com a melhor das boas intenções, praticamente estragam tudo e perdem a própria vida.
Por fim, hobbits como Frodo ou Sam ou Pippin encontramos quase todos os dias: gente normal, tranquila, com gostos caseiros e que, de repente, devido a uma mudança nas circunstâncias da vida, são chamados a realizar uma tarefa na qual nunca tinham pensado, que nunca teriam desejado, que está muito acima das suas forças e da qual, mesmo assim, acabam dando conta.
Vilões e heróis
Quem é o vilão e quem é o herói? É uma pergunta que se torna recorrente no filme “A Vida em Si”, protagonizado por Oscar Isaac, Olivia Wilde e Antonio Banderas, e dirigido por Dan Fogelman. Será mesmo que é assim tão simples separar as pessoas e colocá-las, de uma vez e definitivamente, na caixinha do Bem (do Herói) ou na caixinha do Mal (do Vilão)? Não será mais certo e mais humano pensar que somos aquilo que fazemos?
Umas vezes fazemos coisas certas e outras erradas, umas vezes somos pessoas melhores e outras vezes, somos piores. Somos pessoas, não blocos de concretos nem equações matemáticas. Lembro-me de um poema de Fernando Pessoa:
A vida é terra e o vivê-la lodo.
Tudo é maneira, diferença ou modo.
Em tudo quanto faças sê só tu,
Em tudo quanto faças sê tu todo.
Sempre achei que Pessoa descrevia a beleza da imperfeição. Que falava de mim, de vocês todos, de todos os seres humanos, pequenos, corriqueiros, imperfeitos como os hobbits. E sempre tive medo dos rígidos e dos cátaros.
Cátaros
Desde a sua origem, lá pelo século XII, os cátaros eram a personificação dos puros, dos perfeitos, dos que iriam consertar definitivamente os homens, as mulheres e o mundo todo. Se tivessem ficado naquela Idade Média, tudo bem. Mas não; essa vontade de impor a perfeição de qualquer jeito e a todo custo infelizmente reaparece aqui e ali na história.
E hoje os cátaros estão cada vez agindo com mais força, até porque as redes sociais facilitam muito a sua atividade “purificadora e perfeita”. Vai ter que ser perfeito quer você queira ou não. É como se não nos convencêssemos do conselho de Pessoa: “Viver é lodo. Tudo é maneira, diferença ou modo”.
Para os cátaros de todos os tempos não é nada disso. Só há um único modo de ser e de viver. Não há nem maneiras, nem diferenças, nem modos. Só se pode viver do jeito certo, da forma perfeita, do modo que os cátaros dogmatizam de cima do seu poder.
Trata-se de uma falácia. E trata-se também da soberba e do orgulho cínico dos “agentes e autores da Perfeição”, daqueles que já intitulei de membros da “Liga da Justiça e do Bem”.
A realidade mais profunda do ser humano não é a perfeição, mas a imperfeição. O que há de mais humano foi aquela realidade captada por Tolkien, e não pelos cátaros do momento. Toda ação humana está, simultaneamente, marcada pela grandeza e pela miséria, pela infinitude e pela finitude, pela virtude e pelo erro. Pela terra e pela lama, como advertia Fernando Pessoa.
Mãos sujas
Se nos decidirmos a realizar o bem, inevitavelmente nos mancharemos com o mal. Se estivermos dispostos aqui e agora a viver na terra, acabaremos lidando com o lodo e as mãos acabarão ficando sujas. E é por isso que todos precisamos de perdão e todos precisamos perdoar.
A grandeza de “O Senhor dos Anéis” não está em ter falado de um reino do bem e do mal. A sua grandeza está precisamente em insistir na ideia de que a única coisa que salvará este mundo, que poderá trazer uma réstia de luz no meio da negra noite que nos rodeia, que poderá fazer nascer uma nova aurora é precisamente a consciência de que, nesta Terra Média onde vivemos, não há ninguém absolutamente bom, nem absolutamente mau.
Nem Gollum, nem Saruman, nem os espectros do Anel, nem mesmo o Senhor de Mordor são pessoas “que não tem mais jeito”, seres perversos e cruéis “que precisam ser eliminados”. E nem Bilbo, Frodo, Boromir ou o anão Gimli são tão bons e tão puros e perfeitos que não tenham suas pequenas ou grandes imperfeições.
Tolkien nos fala de um mundo de seres criados e não de um mundo de deuses. Um mundo de seres com imperfeições, mesmo que sejam magos, hobbits, elfos ou árvores que falem e que andem. Seres, afinal, que não são nem o bem nem o mal, nem bons nem maus. São seres que fazem coisas boas e más, de acordo com o caráter de cada um, com a força de vencer a própria fraqueza, de resistir à atração do poder.
Tolkien nos fala de um mundo onde é necessário abrir a porta à misericórdia e o perdão, que são o outro nome para a esperança: a esperança de que quem estiver na nossa frente poderá, de fato, mudar e se converter em alguém melhor. E a esperança de que, para isso, eu preciso perdoá-lo. E ele precisa me perdoar.
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