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Leitura da Carta às Brasileiras e Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito, na Faculdade de Direito da USP.
Leitura da Carta às Brasileiras e Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito, na Faculdade de Direito da USP.| Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Certa vez, num debate universitário sobre o futuro do Brasil que mediei em uma universidade de São Paulo, entediado por um debate longo e desnecessário conduzido por acadêmicos que pareciam viver numa utopia literária inacessível à minha mente de classe média, um dos debatedores questionou se havia algo que tinha feito eu quase desistir do Brasil. Disse à plateia e aos nobres debatedores: os motoqueiros que retiram os silenciadores dos escapamentos na crença bizarra de que assim suas motos ficariam mais potentes. Eu ri, eles todos riram, achando que eu estava caçoando.

Apesar do fundo de verdade que cortava meu comentário — realmente é desalentador ter que suportar os estouros do escapamento de uma moto só para que o condutor tenha o deleite ilusório de potência —, obviamente havia uma troça subliminar em meu comentário direcionado aos mundinhos socialmente perfeitos e cosmicamente justos que aspiravam as ideias dos debatedores. Se existe algo que realmente não suporto trata-se da ficção sendo pregada como verdade, cobrando seriedades sociais, respostas científicas e atenções magnânimas. Não tenho tempo para o faz de conta de Karl Marx e de Judith Butler.

Ao ler a “Carta pela Democracia”, redigido por antigos e já muito conhecidos defensores de autoritarismos, além de atuais endossadores de ditaduras, me encontro sob o mesmo dilema de anos atrás naquele debate, isto é, estou escutando doutores, influentes pensadores e magnanimidades artísticas debatendo sobre um mundinho cosmeticamente imaginado. Nessa realidade paralela há um levante fascista de Bolsonaro em curso, uma iminente e assombrosa ameaça à democracia representada pelo presidente. Eu, que me mantenho alheio aos diretórios psolistas, jantares de bancários e churrascos de supermachos apoiadores de Bolsonaro, acompanho toda essa sandice com uma mistura de riso e escárnio.

Chegamos ao limiar da indecência racional. Estamos caçoando da realidade política do Brasil pura e simplesmente, adotando uma narrativa claramente mentirosa, indiscutivelmente tola. O Brasil não corre risco de um arranque fascista, Bolsonaro não é nazista, não estamos sob um iminente golpe do executivo. Parem que 'tá' feio! Isso é discurso ideológico dos mais mequetrefes. E para aqueles que gostam de fundamentações, notas de rodapés frondosas e ciências para esfregar nas faces alheias, não há literatura séria e desideologizada sobre isso, não há evidências, sequer vislumbres de que estamos perto de um golpe que solapará a democracia nacional. Pelo menos não advindo de Bolsonaro...

Tudo isso me enraivece pelo simples fato que, após dizer tais verdades óbvias, tal como um homem comum na beira do rio que tenta provar a um bêbado que a água de fato é molhada, inevitavelmente serei chamado de bolsonarista. Estamos atropelando a realidade mais elementar a fim de sustentar narrativas, estamos rasgando as vestes sem nenhum motivo. Se os fatos importam, então são neles que devemos balizar as nossas escolhas racionais, o principal problema de sustentar, alimentar e aplaudir uma carta urgente que defende uma ilusão, é aprovar soluções autoritárias para remediar uma mentira.

Miopia moral

O dito socialismo científico, tradicional, em seu advento mais longínquo no século XIX, sustentou um apego à realidade como base sociológica, ainda que no curso de sua teorização dispensasse as evidências da realidade que contrapunham a suas conclusões. Marx via uma desigualdade real, e sob ela erigiu sua teoria: a desigualdade pós-industrialização era fato, ele estava sob fundamentos reais quando protestou intelectualmente. Os erros de Marx vieram de seus meios e conclusões, não da problemática que denunciava.

O esquerdismo abobalhado, corporativo e universitário que agora assistimos assinar a famigerada carta já parte de pressupostos ilusórios. O que deve ficar claro — e é para isso que serve meu texto — é que esse bilhete da esquerda brasileira não se trata de um erro de método ou conclusões, mas sim, desde o início, pura e simplesmente, de esquizofrenia ideológica e miopia moral.

Tudo isso se torna ainda mais insano quando nos damos conta de que muitos dos signatários, incluindo o ex-presidente Lula, são confessos admiradores de ditaduras e ditadores. Poucas vezes, apesar das bizarrices constantes que não deixam nossa política marinar no tédio, assistimos tanta desfaçatez teatral e vergonha alheia. É preciso de um pedigree elevado de tolice para chegar a tal nível de comiseração e autoengano.

No final, o motoqueiro que suprime o silenciador do escapamento de sua moto, bem como o signatário da Carta pela Democracia, se enganam no mesmo nível, tentam se convencer freneticamente de uma realidade que não existe, buscam calar no barulho delirante a verdade que se autoimpõe a todos que têm o mínimo de sanidade e racionalidade. Pedem o sacrifício dos olhos e inteligências da nação em troca de ideias e promessas patéticas.

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