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Opinião

O que os tiros em Cid Gomes dizem sobre a política da força e do medo

O confronto entre o senador e os policiais nada mais é do que uma tentativa, dos dois lados, de se impor pelo medo, e não pelo respeito, diálogo e consenso.
O confronto entre o senador e os policiais nada mais é do que uma tentativa, dos dois lados, de se impor pelo medo, e não pelo respeito, diálogo e consenso. (Foto: Reprodução/ Twitter)

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Cid Gomes tem 56 anos. Desde 2018, ele é senador da República pelo PDT. Formado em engenharia civil, ele foi ministro da Educação no governo de Dilma Rousseff e governou o Ceará por dois mandatos. Ah, e ele é também irmão do eterno presidenciável Ciro Gomes. Esse homem, cria de um Brasil patrimonialista, de um Estado personalista e de uma dinastia política indissociável da palavra “coronelismo”, quase provocou uma tragédia em seu reduto eleitoral, a cidade de Sobral.

Em meio a um motim de policiais militares que assola a cidade de 200 mil habitantes, o senador da República, que teoricamente (teoricamente!) deveria resolver conflitos na tribuna do Senado, munido de palavras, raciocínio lógico e poder de convencimento, subiu numa retroescavadeira, uma máquina com até 10 toneladas, e a lançou contra os amotinados. A retroescavadeira avançou por poucos metros e arrancou um portão de ferro. Cid Gomes estava prestes a causar uma tragédia quando alguém resolveu tomar uma atitude extrema.

Um dos policiais militares amotinados e mascarados sacou sua arma e disparou contra o senador Cid Gomes. Os dois tiros o atingiram no peito, mas milagrosamente desviaram dos órgãos vitais. Depois de uma noite na UTI tratando dos ferimentos, Cid Gomes já está na enfermaria, de onde gravou um vídeo assustadoramente eleitoreiro, levando em conta que ele quase perdeu a vida por uma sandice que poderia ter custado também a vida de outras pessoas.

Violência física e retórica

O confronto físico de Cid Gomes é muito simbólico dessa elite política brasileira que enche a boca para falar em democracia, Estado Democrático de Direito, paz social e outras abstrações virtuosas quando na tribuna do Parlamento, mas que não hesita em bancar uma espécie de sinhozinho com poderes divinos e absolutos na boleia de uma retroescavadeira. Vale repetir para que o ato tresloucado do nobre senador não seja banalizado: sem os tiros que, por sorte, não o mataram, Cid Gomes poderia ter provocado a morte de um, dois, dez policiais militares.

Cid Gomes, juntamente com seu irmão, Ciro, foram, nos últimos anos, protagonistas de vários episódios que mostram esse estranho pendor familiar para o confronto verbal e, às vezes, físico. Quando ministro da Educação, por exemplo, Cid Gomes ocupou a tribuna da Câmara dos Deputados para, fiel ao estilo belicoso que lhe é característico, derrubar todos os protocolos e eventuais decoros, xingando os colegas deputados de “achacadores”.

A retórica virulenta parece correr no sangue da família. O irmão mais famoso de Cid, Ciro Gomes, se notabilizou por “não ter papas na língua”, o que é visto, pasmem!, como virtude por alguns setores da sociedade. Enquanto a aventura justiceira de Cid quase lhe custou a vida, a língua solta e violenta de Ciro lhe custou uma eleição presidencial quando ele humilhou uma eleitora que havia perguntado por que a Copa do Mundo, e não a saúde pública, era uma prioridade do governo. Recentemente, essa valentia toda custou a Ciro Gomes um carro, empenhado para que ele pagasse uma indenização ao vereador Fernando Holiday, depois de tê-lo agredido verbalmente.

Mais do que um caso destinado ao extenso anedotário político brasileiro, a investida de Cid Gomes contra os policiais e os tiros que o atingiram são simbólicos de uma sociedade que cada vez menos busca o consenso como forma de convivência. A moda é usar a força em todas as manifestações. Às vezes é uma piada de extremo mau gosto, às vezes é um palavrão no perfil de uma rede social. Às vezes é uma promessa de receber um juiz à bala, às vezes é usar uma retroescavadeira para acabar com uma greve minutos depois em se dizer desarmado e em busca de paz.

Bordão gasto, mas necessário

Para um louco, a loucura faz todo o sentido do mundo. A loucura é produto de um conjunto de valores, emoções e até fatos concretos que, uma vez distorcidos, criam um cenário alucinado que, para o louco, parece tão óbvio quanto uma pintura de Dalí. Para o espectador, o ato de Cid Gomes parece ilógico, mas não é. Shakespeare dizia que havia método na loucura – e é uma pena que isso tenha se transformado tão-somente num bordão de analista político. Porque é à luz dessa loucura com método e consequência que o ato de Cid Gomes deve ser analisado.

Na impossibilidade de perguntar ao acamado Gomes, vale a pena se perguntar aqui, retoricamente, com que objetivo uma pessoa sobe numa retroescavadeira para debelar uma greve de policiais militares encapuzados e armados. Ela está mesmo interessada em acabar com o motim? Ela realmente acredita que a força da máquina servirá de argumento para fazer com que aqueles homens desistam do motim e de suas reivindicações? Essa pessoa tem noção do que significa uma vida potencialmente perdida nesse confronto? Essa pessoa dá valor à própria existência?

Ou será que para os Gomes, bem como para todos os políticos dessa estirpe, tudo isso não passa de um grande teatro que tem como horizonte a manutenção de um poder político ancestral?

Aqui e ali já aparecem tentativas de transformar Cid Gomes no mártir que ele definitivamente não é. Afinal, o senador não defendia nenhuma causa exatamente nobre (muito menos cristã). E, aqui, já me adianto ao paralelo mais óbvio que alguém certamente traçará entre os tiros que Cid Gomes levou em sua luta contra os policiais e a facada que o então candidato Jair Bolsonaro levou durante a campanha de 2018. Nenhum dos dois é mártir, mas o que diferencia Bolsonaro de Cid Gomes é que o primeiro foi uma vítima passiva de um ato tresloucado, embora muitos ainda acreditem que Adélio Bispo faça parte de uma grande conspiração comunista. Já Cid Gomes foi agente da própria semitragédia.

Imposição pelo medo

No final das contas, toda essa balbúrdia parece uma manifestação sanguinolenta do espírito do tempo – outro conceito que, de tanto ser usado por analistas políticos, acabou se perdendo e virou apenas um atalho verbal.

De um lado, um senador que abdica do seu poder, no sentido mais civilizado do termo, para lançar uma retroescavadeira contra os policiais. De outro, esses mesmos policiais, encapuzados e armados como os bandidos que juram combater, ignorando o valor hierárquico da profissão, pondo seus interesses pecuniários muito palpáveis acima dos conceitos abstratos que um dia juraram proteger, como a paz e a ordem pública.

O confronto entre a dupla senador & retroescavadeira contra os policiais militares amotinados nada mais é do que uma tentativa primitiva (e desesperada, como todas essas coisas primitivas), dos dois lados, de se impor pelo medo, sempre pelo medo, e não, nunca pelo respeito, pela dignidade, pelo diálogo, pelo consenso.

O que é bem compreensível. Medo é algo que se impõe rapidamente – basta um tacape, uma pedra, uma retroescavadeira. Já respeito é algo que se leva muito tempo para construir e cuja manutenção exige que se beba continuamente na fonte semiárida da sabedoria.

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