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FILOSOFIA

O que pensa o filósofo John Gray, que demoliu as bases do liberalismo progressista

O filósofo britânico John Gray, em evento em São Paulo, em 2015 | Fronteiras do PensamentoWikiMedia Commons
O filósofo britânico John Gray, em evento em São Paulo, em 2015 (Foto: Fronteiras do PensamentoWikiMedia Commons)

To find the real, 

To be stripped of every fiction except one, 

The fiction of an absolute — Angel, 

Be silent in your luminous cloud and hear 

The luminous melody of proper sound. 

(Achar o real, despido de qualquer 

 Ficção que não a de um absoluto – Anjo, 

Em tua nuvem luminosa, cala e ouve 

A luminosa música do som exato.) 

 

Wallace Stevens, “Notes to a Supreme Fiction” 

(“Apontamentos para uma ficção suprema”, trad. Paulo Henriques Britto)

1. 

A filosofia política de John Gray é a filosofia de alguém que, igual a Dante Alighieri logo ao entrar nos pórticos do Inferno, se encontra no meio do caminho da sua vida. É a tentativa sincera, honesta, algumas vezes perigosa, de compreender não só o que acontece no mundo como também o que ocorre consigo mesmo. Por isso precisamos entendê-la no seu aspecto de busca, de algo que ainda não está plenamente realizado, mas também que está prestes a encontrar uma conclusão – e reconhecer quais são suas bases para entendermos melhor quais são suas limitações. 

A importância capital de saber o pensamento político deste inglês nascido em 17 de abril de 1948, na cidade litorânea de South Shields, se deve, principalmente, para distinguir as ilusões típicas da ideologia liberal dominante no nosso discurso público, além de lidar com o princípio que guia tanto a sua obra como também os impasses que ocorrem neste início do século 21. No caso, o de que o progresso científico e tecnológico não acompanha necessariamente o progresso ético. 

Em primeiro lugar, vamos à demolição do liberalismo, território onde Gray também começou a sua carreira como escritor e filósofo. Em meados da década de 1970, ele se sobressaiu aos seus pares, seja na cátedra de teoria política na Universidade de Oxford, seja na de história das ideias na London School of Economics (onde permaneceu até sua aposentadoria em 2008), porque, ao estudar minuciosamente as obras de Michael Oakeshott, Isaiah Berlin, Friedrich Hayek, John Rawls, Karl Popper, George Santayana, John Stuart Mill, conseguiu uma compreensão cristalina do que é a união insólita entre o conservadorismo inglês (representado aqui isoladamente por Oakeshott) e o liberalismo que unificaria a “relação especial” que há entre a Inglaterra e os EUA, principalmente nos anos do auge da Guerra Fria até o fim da União Soviética, em 1990. 

Neste período, Gray escreveu dois livros essenciais. Um sobre Hayek – elogiado pelo próprio como um dos volumes fundamentais para entender o seu trabalho – e outro sobre Berlin, numa excelente introdução ao que seria chamado depois de “liberalismo agônico” [agonistic liberalism]. Ao mesmo tempo, mantinha uma posição partidária favorável ao Partido Trabalhista inglês; contudo, com o passar dos anos, Gray percebeu que o liberalismo progressista era uma teoria política que não elucidava mais com o que acontecia no mundo, não só em termos de realpolitik, mas sobretudo a respeito da natureza e da condição humanas em geral. 

Para ele, este tipo de liberalismo era incapaz de criar um modo de vida, um modus vivendi em comum que preservasse as diversas pluralidades e os seus respectivos indivíduos numa comunidade. O “liberalismo agônico”, inspirado em Berlin, constituiria em uma “luta”, um “conflito” (daí vem o agon da sua denominação) entre essas pluralidades na busca de um resultado em comum, respeitando as diferenças radicais, ao mesmo tempo em que o modus vivendi seria uma harmonia aproximada que faria enfim a comunidade encontrar a igualdade que seria a meta daquilo que Lionel Trilling chamou de “imaginação liberal”. 


Entretanto, Gray também percebeu que tal liberalismo era igualmente limitado, pois era cada vez mais nítido de que a natureza e a condição humanas seriam estipuladas não pelo que acontecia dentro do nosso controle técnico, mas sim pela contingência trágica da existência, algo que nenhum tipo de ideologia poderia captar em suas nuances. Dessa maneira, a pesquisa em torno das limitações do liberalismo progressista, feita por Gray, se encaminha até ao que ele supõe ser a raiz do problema – o fato de que a imaginação liberal está cada vez mais baseada em uma concepção equivocada do que seria a razão humana, historicamente elaborada pela escola filosófica do Iluminismo. 

Apesar de saber claramente que existem diversos tipos de Iluminismo – o francês, o inglês, o escocês e o americano, como já nos ensinou Gertrude Himmelfarb em “Os Caminhos Para A Modernidade” –, Gray parte do pressuposto de que todas elas têm uma experiência em comum: a de que o mundo só pode ser reduzido a uma razão que instrumentaliza e uniformiza a contingência trágica de quem é obrigado a lidar com a pluralidade social. No caso, nós, os humanos. 

A partir daí, especialmente na série de livros como “Beyond the New Right: Markets, Government and the Common Environment” (1993), “Postliberalism: Studies in Political Thought” (1993), “Enlightenment's Wake: Politics and Culture at the Close of the Modern Age” (1995), “After Social Democracy: Politics, Capitalism and the Common Life” (1996), “Endgames: Questions in Late Modern Political Thought” (1997) e “False Dawn: The Delusions of Global Capitalism” (1998/ 2008), ele demole cada uma das bases do liberalismo progressista de uma maneira tão minuciosa que, ao final de cada título, o leitor se pergunta de que modo a elite política pode levar tal ideologia a sério na hora de tomar decisões com impacto evidente no nosso cotidiano. 

Gray deixa poucas orientações liberais incólumes, a começar pelo conceito de razão como instrumento supremo para entender as mudanças globais, passando pela própria globalização como uma forma ilusória de manter o modus vivendi pretendido pelo “liberalismo agônico”, até chegar ao que ele acredita ser “o coração do problema” – a falsa crença, alimentada não só pelo Iluminismo como também pelo pensamento humanista oriundo desde o século 15, de que há uma natureza humana constante e que ela pode ser analisada por meio de uma noção de “progresso histórico”, rumo a um fim onde tudo seria resolvido graças ao nosso comando. 

As ilusões da existência de uma natureza humana específica e do “progresso histórico” levam Gray a afirmar categoricamente que nós somos nada mais, nada menos do que “cachorros de palha”, à mercê das forças da natureza – uma expressão inspirada nos ditos de Lao Tsé no “Tao-Te Ching”, o tradicional livro oracular de ensinamentos chineses. Em “Straw Dogs: Thoughts on Humans and Other Animals” (2002), Gray faz uma destruição assistemática a respeito de tudo o que o mundo ocidental julga conhecer ou acreditar. Por meio de capítulos curtos, às vezes com uma única frase ou um parágrafo só, ele pretende nos transmitir a impressão – mas jamais o raciocínio exato – de que a noção de livre-arbítrio não passa de um epifenômeno (i.e. um fenômeno secundário), uma criação do Iluminismo e do humanismo e, portanto, não temos nenhum domínio sobre nossas vidas, em particular sobre a nossa própria percepção da realidade. A maior dificuldade do homem, de acordo com Gray, não é pensar corretamente. Isso é feito até com considerável eficiência – e aí estaria o nosso principal problema. O difícil seria fazer o ser humano ver as coisas tal como elas são. 

“Straw Dogs” é um livro divisor de águas na obra de John Gray porque, a partir dele, sua preocupação não será mais com os fundamentos do liberalismo progressista, e sim com a estrutura objetiva do real – e seus efeitos sobre o comportamento humano. Contudo, ele não fará isso sem assumir alguns riscos no seu raciocínio – que podem ser vistos como ousados, por um lado, ou como equívocos, por outro. 

2. 

A destruição assistemática aplicada em “Straw Dogs”, sobre nossas ilusões “humanistas”, será levada ao extremo, mas de uma maneira mais equilibrada, nas quatro obras-primas que Gray escreveria nos anos seguintes: “Missa Negra” (2008), “A Busca pela Imortalidade” (2011), “The Silence of the Animals” (2013) e “The Soul of the Marionette” (2015). São livros curtos e elegantes, em torno de assuntos que antes seriam complicadíssimos de lidar no debate público, mas que Gray consegue trazê-los com tamanha facilidade que se fica espantado com a união entre a clareza de exposição e a vontade de arriscar-se na hora de apresentar suas conclusões finais a respeito de cada tópico apresentado. 

Em “Missa Negra”, o filósofo inglês encontra as origens do reducionismo iluminista no Ocidente globalizado na análise do que ele chama de “política apocalíptica”. Inspirado nos estudos pioneiros de Norman Cohn (“The Pursuit of the Millennium”) e Eric Voegelin (“A Nova Ciência da Política”) – que, por sua vez, foram influenciados por Hans Urs Von Balthazar –, Gray argumenta que, ao contrário do judaísmo, dos hindus, dos budistas e dos platônicos, “foi o cristianismo que introduziu a crença humana de que a história é um processo teleológico. A palavra grega telos significa ‘fim’ [...] que significa tanto conclusão de um processo quanto a meta ou objetivo a que esse processo pode servir. Ao pensar a história em termos teleológicos, os cristãos acreditavam que ela tinha um fim em ambos os sentidos: a história tinha um objetivo predeterminado, e quando ele fosse alcançado, ela chegaria ao fim. Pensadores seculares como Marx e [Francis] Fukuyama herdaram essa teleologia, subjacente em suas teses sobre ‘o fim da história’. Na medida em que encaram a história como um movimento, não necessariamente inevitável, mas na direção de uma meta universal, as teorias do processo também se escoram numa visão teleológica. Por trás de todas essas concepções está a crença de que a história não deve ser entendida em termos de causas, mas em termos de sua finalidade, que vem a salvação da humanidade. Esta ideia só passou a fazer parte do pensamento ocidental com o cristianismo, e desde então o vem influenciando”. 

A “política apocalíptica” seria o desejo escatológico de que a sociedade resolva seus problemas de convivência comunitária por meio de “um acontecimento catastrófico, mas em termos bíblicos a expressão deriva da palavra grega que designa desvendamento – um apocalipse é uma revelação na qual mistérios escritos no céu são revelados no fim dos tempos, e para os Eleitos [que reconhecem a finalidade deste acontecimento] isto não significa catástrofe, mas salvação. A escatologia é a doutrina das coisas derradeiras e do fim do mundo (em grego, eschatos significa ‘último’, ‘mais remoto’)”. 

A obsessão pelo apocalipse, junto com a busca pela precisão técnica, afetou boa parte das sociedades ocidentais, o que indica que o milenarismo – o advento e o desvendamento do reino sagrado no curso da história humana após mil anos de tribulações – seria uma herança cristã. Segundo Gray, essa maneira de praticar a “política apocalíptica” teve “uma influência formadora na vida do Ocidente. [...] Religiões políticas modernas como o jacobinismo, o bolchevismo e o nazismo reproduziam crenças milenaristas em termos científicos” – e esses “movimentos milenaristas só se desenvolvem em circunstâncias históricas específicas. Elas podem configurar-se em condições de desequilíbrio social em larga escala, como na Rússia czarista e na Alemanha de Weimar depois da Primeira Guerra Mundial; ou, então, num único acontecimento traumático, como aconteceu nos Estados Unidos no 11 de setembro. Movimentos dessa natureza frequentemente estão associados a catástrofes. As crenças milenaristas são sintomas de um tipo de dissonância cognitiva no qual ruíram os elos normais entre a percepção e a realidade. Na Rússia e na Alemanha, a guerra e o colapso econômico geraram regimes milenaristas, com todo o seu aparato, ao passo que na América um atentado terrorista de caráter inédito levou a um surto milenarista do que fizeram parte uma guerra desnecessária e uma mudança constitucional. O momento e a maneira de transformação de crenças milenaristas em forças decisórias no terreno da política dependem dos acidentes da história”. 

A deficiência do liberalismo progressista para entender, por exemplo, o ressurgimento do terrorismo islâmico após os atentados do 11 de setembro se deve justamente ao seu desprezo por qualquer manifestação religiosa ou metafísica no âmbito da política. As variações quase infinitas em torno da ideia de progresso – ético, científico, técnico e social – são transformadas em pó quando Gray percebe que esses escombros de uma antiga utopia racional não têm mais a capacidade de criar um modus vivendi no qual todos possam respeitar seus respectivos pluralismos. O apocalipse na política transforma-se na “política apocalíptica” porque o Ocidente assumiu o racionalismo iluminista como a única religião possível, uma religião intramundana, sem nenhuma abertura para o transcendente, em que os fiéis e os eleitos são os intelectuais e os especialistas que pretendem, a qualquer custo, manipular a natureza humana sem se importarem com as consequências imprevisíveis disso. 

Esses atos, independentes de serem da direita ou da esquerda, podem ser revoluções (a Russa), golpes de estado (o Nazismo), intervenções econômicas (o socialismo), o capitalismo corporativo (a idolatria do mercado que fundamenta o liberalismo em geral), guerras intervencionistas (o Iraque após os ataques no World Trade Center) ou então, last but not least, a busca quase desesperada por uma maneira de controlar o mistério último de ser um homem neste planeta – no caso, a tensão que há entre a nossa contingência trágica e a nossa imortalidade. 

Este é o tema de “A Busca Pela Imortalidade”, cujo subtítulo nacional certeiro é: “a obsessão humana em ludibriar a morte”. Aqui, Gray expande os conceitos de “política apocalíptica” explorados em “Missa Negra” para meditar sobre a demanda dos eleitos que, por meio da racionalidade iluminista, desejam encontrar um “padrão” no curso da história e no comportamento humano. A partir dos relatos das vidas de celebridades do intelecto no final do século XIX e no início do século XX, como H.G. Wells, Máximo Górki e o primeiro-ministro inglês Arthur Balfour, além de políticos totalitários como Lênin e Stálin, o escritor inglês costura uma meditação refinada sobre a conexão oculta entre o materialismo científico – o fundamento para a religião política que deu origem ao terror da Revolução Russa – e o ocultismo com pretensões espirituais. Esses eleitos se viam como “construtores de deuses”, revoltados contra morte, mas incapazes de perceber que não passavam de espiões que queriam ter um vislumbre de um mundo que jamais estaria ao dispor deles. 

Não à toa que Gray encontra um terreno em comum entre “o mundo subterrâneo do ocultismo e as fronteiras da espionagem” que davam sustentação à política apocalíptica do terror stalinista que, entre outras coisas desagradáveis, arrancavam os dentes dos seus opositores ou, na melhor das hipóteses, os forçavam a participar de julgamentos encenados no qual o resultado, claro, já era conhecido de antemão – e que geralmente envolvia uma hospedagem derradeira em algum gulag na Sibéria. Esse terreno seria a atração que acontecia entre “aqueles que procuram por um padrão oculto nos fatos. Para o ocultista, o mundo é uma espécie de código, uma linguagem secreta que o iniciado pode decifrar. Para o espião, qualquer ação humana pode ter um significado secreto. É fácil partir da crença em uma ordem invisível das coisas para chegar à ideia de que essa ordem pode ser conformada pela vontade, que é a essência da magia. Como os magos, os espiões – especialmente se são agentes de influência – têm como propósito modelar a forma pela qual o mundo é percebido”. 

A morte seria um desafio a esta procura por “padrões”. Ela é “uma provocação” para o nosso modo de vida moderno, que confunde a ciência e a magia, “porque marca uma fronteira além da qual não podemos avançar” – a imortalidade. Na crença de serem os “construtores de deuses”, os tais eleitos queriam “liberar-se de um mundo caótico”. Mas o caos é um dado inegável da realidade e do qual não podemos fugir. Contudo, com a ajuda da tecnologia de ponta, suspendemos toda essa confusão em que estamos apostando em técnicas arriscadíssimas como a criogenia, a “singularidade” defendida por Ray Kurzweil, ou a idolatria por um conservadorismo ecológico (do qual Gray é também um ardoroso defensor, como veremos em breve), em que o mundo se tornou um palco onde os crentes na imortalidade tecnológica querem ser Deus. 

Notamos nas páginas finais de “A Busca” que “o tecnoimortalismo apresenta muitas variedades. Nem todas envolvem a suspensão criogênica, processo que implica danos ao corpo e ao cérebro. Dietas com restrição de calorias também foram defendidas, sob a base de que podem capacitar as pessoas a viverem e permanecerem sadias até que a tecnologia se desenvolva ao ponto em que o envelhecimento possa ser revertido e a morte adiada indefinidamente. Esse ponto pode ser alcançado algum dia. Porém, todas as soluções técnicas para mortalidade sofrem uma limitação comum. Elas assumem que as sociedades em que se desenvolvem sobreviverão intactas, juntamente com o ambiente planetário. Defensores da suspensão criogênica, que acreditam que serão ressuscitados depois de séculos de progresso técnico, imaginam que a sociedade na qual serão ressuscitados será parecida à que era quando foram congelados. Mas nenhuma sociedade moderna desfrutou jamais de tal grau de estabilidade. Todas suportaram conflitos armados, depressões econômicas e mudanças de regime, muitas delas sofrendo mais de um desses contratempos várias vezes em um único século”. 

O caos inerente à condição humana – e, em especial, à condição humana em um século como o 20, obcecado pelo horror à morte – nos faz esconder de nós mesmos “o problema com a ideia de que a ciência pode proporcionar imortalidade” – no caso, o de que “as instituições humanas são inalteravelmente mortais. Aqueles que esperam uma solução humana para a morte assumem que o progresso científico prosseguirá com algo presente ao presente padrão de vida”. 

Neste ponto, Gray volta a articular o princípio pelo qual ele articulou toda a sua obra: o progresso ético não necessariamente acompanha o progresso científico ou tecnológico. A prova disso é que “no início do século 21 as tecnologias de assassinato em massa tornaram-se mais poderosas e mais amplamente dispersas. Não apenas as armas nucleares, mas também as químicas e biológicas estão cada vez ficando mais baratas e mais facilmente utilizáveis, ao passo que a engenharia genética certamente será usada para desenvolver métodos de genocídio que destruirão a vida humana, seletivamente, em grande escala. Em um tempo em que a disseminação do conhecimento torna essas tecnologias ainda mais acessíveis, as taxas de mortalidade podem ser muito altas, mesmo entre aqueles cuja longevidade tenha sido aumentada artificialmente”. 

Este descompasso entre os dois tipos de progresso nos leva a aceitar como inevitável uma única consequência: em breve, não existiremos mais. Sem dúvida, há uma ironia na fidelidade canina do ser humano ao progresso científico, pois, “ao solucionar problemas humanos, cria problemas que não são humanamente solúveis. A ciência deu aos seres humanos um tipo de poder sobre o mundo natural que nenhum outro animal jamais alcançou. Porém não deu aos seres humanos a capacidade de remodelar o planeta de acordo com seus desejos. A Terra não é um relógio, ao qual se possa dar corda e parar à vontade. Como sistema vivo, o planeta certamente se equilibrará novamente. No entanto, fará isso sem nenhuma contemplação pelos seres humanos”. 

Para esclarecer essa conclusão, Gray retorna a uma outra ideia sua, cultivada em livros anteriores – a de que a Terra é uma espécie de Mãe Gaia, um sistema orgânico autônomo que despreza a população humana, inspirada nos escritos do cientista James Lovelock. Há uma inteligência no mundo material, mas ela não necessariamente é consciente dessa faculdade, assim como “seres conscientes podem ser tão ininteligentes que destruam a si mesmos. A ideia de Gaia, de acordo com a qual a Terra funciona, de alguma maneira, como organismo único, tem sido atacada com base em que ela atribui propósitos inteligentes no planeta. Na verdade, a teoria de Gaia não requer a ideia de propósito e pode ser formulada em termos estritamente darwinianos. Porém, mesmo quando entendida de forma reducionista, a Terra tem maior capacidade para a ação inteligente do que o animal humano. Considerando que a Terra é um sistema que funciona, a ‘humanidade’ é um fantasma. Faz mais sentido atribuir inteligência ao planeta que não pensa do que atribuí-la à humanidade insensata”. 

A inteligência e a consciência humanas não estão intimamente relacionadas com suas respectivas evoluções, como imaginam os darwinistas seculares que tentam substituir o cristianismo com este novo tipo de “política apocalíptica”. E a conquista da imortalidade ao alcance de uma “consciência cósmica” é algo extremamente confuso, senão improvável. Na perspectiva de Gray, o desejo de ser imortal, segundo os preceitos técnicos da modernidade iluminista, é também “um programa de extinção humana, um ato de desaparecer mais completo do que qualquer outro que pareça provável no curso natural dos eventos. Os seres humanos certamente vão desaparecer; mas a extinção não significa nada além de regressar ao caos imortal de onde vieram. No cenário imortalista, os seres humanos engendram sua própria extinção: ao intervir no processo evolutivo para criar uma nova espécie, o animal que ansiava viver para sempre colocou fim à sua própria existência”. 

Se, por um lado, este tipo de conclusão parece ser aterrorizante (e é), por outro, é esta capacidade de ver as coisas como elas se apresentam aos nossos olhos, desprovidos da vontade de encontrar um “padrão,” que nos dá uma liberdade inusitada. Mas o ato de ver, aqui, não significa encontrar algum fundamento que possa nos ajudar a enfrentar tal situação com alguma dignidade. Pelo contrário: somente se “pudéssemos ver, de forma mais clara, que o ser que queremos salvar da morte já está morto”, aí sim seríamos plenamente livres. Mas, enquanto isso não acontece, temos de descobrir outras formas de mantermos essa liberdade, especialmente em um mundo dominado pela “política apocalíptica”. 

São estas soluções provisórias, por assim dizer, que estimulam Gray a ir além na sua meditação sobre a falha que se tornou o ser humano, tanto em “The Silence of the Animals” como em “The Soul of the Marionette”. No primeiro livro, a insistência em uma liberdade baseada nos princípios do humanismo cria na nossa percepção uma dissonância cognitiva que, quando menos se espera, se transforma na única constante da condição humana. Os movimentos messiânicos e apocalípticos, como explicou Gray em “Missa Negra”, são apenas um dos exemplos levados ao extremo desse tipo de comportamento. Contudo, não se deve confundir experiência religiosa com a sombra do apocalipse – na verdade, esta última pode ser reconhecida em sua forma secular nos vários mitos revolucionários modernos, como a humanidade proletária da União Soviética, o Super-Homem da Alemanha nazista e o mercado global endeusado pelas elites no Fórum Econômico Mundial em Davos, no qual todos eles esperam por um evento derradeiro que justificará suas crenças e libertará o mundo daquilo que acreditam ser a servidão voluntária. 

Essa dissonância cognitiva se inicia em algo único e típico do ser humano: a habilidade de aperfeiçoar o seu conhecimento em um ritmo acelerado enquanto, ao mesmo tempo, ser cronicamente incapaz de aprender com a própria experiência. Gray afirma que a ciência e a tecnologia são acumulativas; já a ética e a política sempre lidaram com dilemas recorrentes. Todos concordam que a tortura ou a escravidão são males universais; mas eles jamais são vistos no passado com a ajuda de teorias científicas atuais. Voltam com novos nomes: tortura como técnica de interrogação diferenciada; escravidão como tráfico humano. A dissonância cognitiva parte do princípio de que reduzimos os males universais para fazer a civilização avançar – esquecendo-se de que esta última pode ser natural para todos nós, sem dúvida, mas o mesmo acontece com o barbarismo sofisticado. 

Isso leva Gray a concluir que é necessária ter uma visão estritamente naturalista da realidade – na qual o mundo é observado em seus próprios termos, sem ter uma hierarquia de valores com os seres humanos no topo como referência, muito menos o apoio de um criador ou o de um reino espiritual. O que existe são diversos animais, cada um com suas necessidades, e o elemento peculiar de ser um homem é nada mais, nada menos do que um mito herdado da religião, que, nos dias atuais, os humanistas reciclaram sob o nome de ciência ou de progresso. 

Sob esta perspectiva, abre-se um conceito inusitado do que significa o “ateísmo”. Gray defende que ser um “ateu” ou usar o termo “Deus” não passam justamente disso: de palavras sem um sentido concreto, de meros conceitos mentais que usamos para justificar nossos “padrões” de realidade. Portanto, o tal do “ateísmo” que deveria ser praticado nos nossos dias não tem nada a ver com o ateísmo defendido por cientistas evolucionistas e anti-evangélicos, como são os casos de Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris e, mais recentemente, Yuval Noah Harari. Este tipo de ateísmo não é sobre a descrença, assim como ter fé seria sobre a crença em relação a alguma força suprema que controla ou organiza o mundo. Gray entende que o verdadeiro ateísmo deve ser propriamente entendido como uma posição extremamente negativa a respeito de como o mundo funciona – para ser exato, uma espécie de metafísica negativa na qual há a recusa completa do uso de qualquer conceito ou de doutrina que faça o homem compreender as coisas como são. 

Por meio desta definição rigorosa – e por que não dizer, ascética? –, Gray aproxima a sua definição de ateísmo com a teologia negativa de místicos como Mestre Eckhart, que seria depois deturpada por filósofos modernos como Martin Heidegger. Eckhart era um dominicano do século 14, um teólogo que morreu em condições misteriosas depois de ter sido submetido a um julgamento ainda mais misterioso pela Inquisição da época, pois tinha sido acusado de herético ao afirmar, entre outras coisas e a grosso modo, que nada poderia ser dito a respeito de Deus – até mesmo o fato de que Ele existia. 

Segundo o inglês, o que o ateísmo defendido em seus livros e a teologia negativa têm em comum é o fato de que ambos usam a linguagem humana apenas para apontar algo que jamais conseguirá ser articulado por meras palavras. Se existisse realmente uma linguagem universal, Deus não só jamais poderia exprimido: ele deixaria de ser real. Portanto, o ateísmo articulado em “The Silence of the Animals” não é o que rejeita a “crença em Deus”. É o que rejeita a crença na linguagem como algo que pode ser prático e útil para nomear coisas reais que não têm como ser nomeadas. É a descoberta de que o mundo não é a criação feita a partir da linguagem, mas de algo que a escapa completamente. Semelhante a Deus. 

Assim, parafraseando Wittgenstein, aquilo que não pode ser exprimido em palavras é muito mais importante do que qualquer coisa que possa ser articulada em qualquer tipo de linguagem. A única forma de conhecimento autêntico – e, logo, de ver o mundo tal como ele é – passa a ser somente por meio do silêncio. E o silêncio dos animais – do falcão que plana nos céus, da raposa que busca sua caça na floresta, do cão que encontra seu alimento no chão imundo das ruas urbanas – nos faz aprender que ver alguma coisa é a lição mais difícil de ser ensinada durante o breve percurso da nossa precária existência. Se imitarmos os animais neste tipo de sabedoria instintiva e intuitiva, Gray crê que veremos não só um único mundo, mas diversos mundos, como se fossem variados prismas de luz. Procuramos pelo silêncio para escapar do ruído que invade a nossa vida, mas voltamos a nos esquecer de um tipo de silêncio que, por sua vez, é um outro tipo de ruído. 

Gray defende, sobretudo, um silêncio interior que nos faça enfrentar o ruído alucinado do mundo exterior. Ao mesmo tempo, o silêncio pretendido pelo escritor é um silêncio pesado porque implica aceitar uma espécie de solidão que ninguém quer ver que existe. Mas ela está, quase onipresente, apenas à espera de ser adequadamente redescoberta – em um silêncio buscado por todos nós porque desejamos não só redenção deste mundo brutal onde vivemos, mas redenção de nós mesmos, a qualquer custo, pois ficamos assombrados ao percebermos que o silêncio dos animais é mais eficaz, uma vez que eles jamais precisaram de qualquer espécie de redenção. 

Somos os vazios que olham para dentro de si mesmos – e descobrimos que somos ainda mais ocos no nosso interior. A linguagem, a poesia, a religião, a política e a imersão no mundo da natureza são formas de fuga para disfarçarmos a existência desse vazio que sempre nos corroeu. E a nossa busca por silêncio é a amostra de uma luta que jamais pode ser bem-sucedida porque não temos outra coisa a fazer, exceto lutarmos para preservarmos um pouco da nossa quietude. 

Parece ser uma tautologia, e não seria um exagero dizer que é, além do fato de que o mundo assim descrito por Gray parece ser muito mais um recorte de alucinações sem nenhum nexo. O que o faz escapar desse impasse ontológico é que, apesar de ter a certeza de que se pode viver uma existência sem um conforto metafísico, ainda assim Gray admite que a vida pode encontrar o seu sentido em momentos de contemplação. E, novamente, voltamos aos religiosos místicos; desta vez, porém, a tal da contemplação envolve sobretudo a anulação completa do ser – ou, se quisermos ir além, da natureza humana constante que o inglês tenta demolir desde a época de “Missa Negra”. 

Contudo, a contemplação de Gray não é para atingir o vislumbre do reino supremo do Ser. Isto não passa de um fragmento, um resto do que era a nossa mente animal. O que o filósofo inglês propõe é uma contemplação sem Deus sob nenhuma hipótese, uma condição ainda mais radical e passageira – um alívio temporário do mundo excessivamente humano, e que não deve ter nada em particular na hora de exprimir seu pensamento. A única coisa a se fazer a partir deste instante é aceitar a tragédia da condição humana porque, afinal de contas, se não há nenhuma redenção em ser um homem é justamente pelo singelo motivo de que nunca foi necessário nos redimir de coisa alguma. 

Este tipo de conclusão nos leva a analisar a liberdade humana de uma maneira completamente inusitada – algo que Gray tenta fazer em “The Soul of the Marionette”. Indo além dos conceitos já banalizados de “liberdade negativa” e de “liberdade positiva”, articulados por seu antigo mestre Isaiah Berlin, ele recupera, nos relatos de Heinrich Von Kleist, a noção de que talvez sejamos marionetes de algum guia superior que nos manipula a seu bel-prazer, sem se importar com o que realmente queremos para as nossas vidas, apenas com o que este criador pretende fazer conosco. A noção de se ter um livre-arbítrio não passa, portanto, de uma rematada mentira, desde que se entenda que a liberdade jamais foi uma simples relação entre outros seres humanos e suas instituições políticas, mas sobretudo um estado de uma alma que conseguiu superar qualquer espécie de conflito interior. 

Assim, quem procura pela liberdade interior não se importa com o tipo de governo no qual vivemos ou nos submetemos. Parece ser uma experiência particularmente egoísta, mas em uma época repleta de instabilidade e incerteza, talvez seja a atitude mais lúcida a se fazer. Gray recusa a visão gnóstica e apocalíptica sobre o nosso conceito de liberdade – e que formou a maioria das perspectivas que fundamentou o liberalismo progressista – para mostrar ao leitor que o ser humano pode, sim, superar a situação de ser uma mera marionete ou, atualmente, a de ser uma máquina que tem a certeza de que a técnica e a tecnologia serão a última salvação de todos os nossos problemas. 

O que deformou uma noção mais autêntica do que deveria ser a liberdade humana foi a “revolução científica”, aquela série de eventos sobre a mudança na nossa cosmogonia provocada por cientistas como Copérnico, Kepler, Brahe, Galileu e Newton, e que foi, de muitas maneiras, um resultado da mística religiosa, transformada na religião do progresso, com a magia que era obcecada em descobrir um “padrão” na estrutura permanentemente caótica do universo. Ao introduzir que somos apenas máquinas ou o mecanismo de um grande organismo composto de peças que deve ter leis ou demonstrar uma evolução absolutamente coerente, mas que não tem um fim aparente aos nossos olhos, essa “revolução” quis libertar o homem do enigma da natureza na criação de um sonho ao encontrar a liberdade numa revolta contra a lei cósmica que, na melhor das hipóteses, deveria ser controlada por meio de instrumentos completamente humanos. 

De novo, o resultado foi o que Gray sempre falou desde o início de sua carreira como escritor: o progresso tecnológico não acompanha o progresso ético, e quanto mais sistemática e exata se tornava a “revolução científica”, mais as visões místicas dominavam a vida interior dos seus cientistas – e assim o que tivemos um estado de caos interno que, para ser contrabalanceado, precisou de novas ilusões, cada vez mais poderosas ou sofisticadas. 

A consequência foi o estabelecimento do ceticismo, sem nenhum vínculo com a mesma escola praticada na filosofia clássica, um ceticismo no qual a dúvida se tornou a única certeza – como podemos perceber nas obras de René Descartes. Se havia alguma possibilidade de conquistar a liberdade, seria por meio do controle das paixões humanas e, com isso, a noção um tanto distorcida de que elas não passavam de meras engrenagens em uma máquina extremamente complexa, mas que podia ser, como sempre, controlada por seus semelhantes conforme a sua progressiva decifração. 

A nossa sofisticação nos levou, além do exílio de nós mesmos, a confirmarmos o triste fato de que o próprio Deus ficou banido de si próprio. Parece ser uma loucura; porém, Gray detecta que a modernidade inteira se baseou neste tipo de insanidade. O que vivemos, na verdade, é uma vida pela metade, jamais uma vida plena. Não sabemos se estamos cercados por forças boas ou forças malévolas, seja dentro ou fora de nós. A mente moderna não consegue mais compreender seja o ser humano individual, seja o Outro que poderia ser o seu reflexo. Para Gray, talvez Thomas Hobbes sempre tivesse razão: o homem deve ser excluído de qualquer tentativa sincera de se compreender o mundo. Se isso não fosse feito de fato – como ocorreu verdadeiramente em toda a filosofia moderna –, não poderíamos fugir do nosso medo da morte violenta e assim construir essa paz derradeira que, infelizmente, também faz parte da ilusão moderna. 

A liberdade humana é muito complicada porque envolve lidar com a angústia diante do futuro. Daí o nosso desejo de encontrar os “padrões” na história, tais como as leis da natureza, os ciclos na história, a crença em um fim supremo e a absoluta confiança de que a razão humana pode tudo. Ser livre exige ver o mundo como algo completamente desprovido e despossuído de tudo o que você antes julgava acreditar. Eis a contemplação suprema, segundo John Gray. E é por isso que, na agonia atual da modernidade – apelidada de “pós-verdade” –, os governos crescem cada vez mais em seu estado de vigilância, com a tecnologia auxiliando nos meios mais absurdos de invasão de privacidade, para acabar de uma vez por todas com qualquer possibilidade de conquistarmos alguma chance de sermos livre. A liberdade plena exige desordem – e o mundo moderno só quer saber do seu oposto, acima de tudo. 

Não à toa que as teorias da conspiração pululam nas manchetes dos jornais e nas linhas do tempo das redes sociais. É o nosso sentimento antropomórfico de acreditar que há um agente a comandar as redes caóticas do curso histórico – e de não admitir que ninguém sabe quais são os verdadeiros motivos pelos quais ocorrem os eventos que mudam completamente a nossa vida, além de minar a nossa liberdade. Esta é a conclusão mais perturbadora que podemos imaginar: não temos a mínima ideia do que nos faz viver como vivemos, porque somos autores das nossas vidas somente por retrospecto. 

É nesta brecha de consciência entre as circunstâncias que nos determinam e a nossa impressão de termos um livre-arbítrio que surge o conflito interno no qual percebemos, mais do que qualquer animal, os impulsos conflituosos que nos dividem e que movem nossas ações concretas. São os fios que nos transformam nas marionetes das histórias de Kleist e, de acordo com Gray, não é a noção de si mesmo que nos torna humanos, mas sim essa divisão excruciante em nosso próprio ser. 

Foi este o grande erro de Sócrates e, logo, de toda a filosofia clássica que influenciou o humanismo renascentista, o Iluminismo, a modernidade, o liberalismo progressista e o estado de exceção repleto de vigilância tecnológica que atualmente nos assombra. Gray afirma que a fé socrática nas virtudes de uma razão humana que existe somente para explicar o que é absolutamente inexplicável, nos leva a uma equação mística do Bem e do Verdadeiro à qual evita, mais do que tudo, a tragédia intrínseca das nossas vidas. Por consequência, tanto o judaísmo como o cristianismo sofrem do mesmo equívoco, com sua fé antitrágica que anularia a morte e nos daria de presente um vislumbre de redenção. 

A verdadeira liberdade é esquecer disso tudo, conclui o autor de “The Soul of the Marionette”. Sem hesitações. A liberdade interior só será conquistada por meio da aceitação do abandono de tudo o que anteriormente conseguimos e pensamos serem nossas vitórias, mas só se revelaram como fracassos. A herança do Cristianismo parece ser uma farsa bonita de ser estudada, aos olhos de Gray, uma vez que, segundo sua obra, o Gnosticismo (e, portanto, a política apocalíptica) venceu nos quatro cantos do mundo. O abandono passa a ser, então, o único caminho de deixarmos de ser uma mera engrenagem em uma máquina incapaz de nos acolher quando tudo estiver perdido. 

3. 

A filosofia política de John Gray descrita acima, em minúcias, é um exemplo de como uma mente brilhante pode ser levada à loucura do seu próprio pensamento. Existem dois equívocos filosóficos – para não dizer, existenciais – que provam que Gray embarcou simplesmente em um projeto de autodestruição que, se ele não o aplica a si mesmo, certamente levará o seu fiel leitor ou o fã mais ardoroso a um fim deveras escabroso. 

O primeiro equívoco é a confusão conceitual – típica de quem ainda se encontra contaminado pela epistemologia moderna, por mais que a negue – entre a linguagem que exprime perfeitamente uma determinada experiência espiritual e a linguagem que tenta articular a objetividade dessa mesma experiência. Qualquer ser humano que tenha um contato concreto com as coisas reais sabe que a primeira espécie de linguagem simplesmente não existe, assim como não há qualquer amostra de perfeição neste mundo. Gray reconhece essa tensão entre os dois tipos de linguagem, mas reluta em aceitar a que está mais próxima da imperfeição porque talvez, no fundo, ele não queira acreditar que o ser humano tenha uma alma – o que, segundo sua visão, seria nada mais, nada menos que uma outra ficção criada por nosso humanismo racionalista. 

A “alma”, em sua obra, é apenas uma metáfora. Mas ela não é nada disso. Desde Parmênides, Heráclito, Sócrates, Platão, Aristóteles e Agostinho temos um conhecimento – imperfeito, é verdade, porém algo que não pode ser negado por completo – de que temos uma alma. E isto ocorre por um único motivo: nós, de alguma forma, a experimentamos concretamente no nosso dia-a-dia. Não a tocamos, mas a sentimos por meio de nossas emoções, nossas ações e nossas decisões mais íntimas, uma vez que percebemos – por meio da nossa consciência – que há algo que nos anima a realizá-las. 

Gray não consegue perceber que a linguagem humana não está viciada desde os tempos do que ele supõe ser o “racionalismo socrático” – e sim desde os tempos do racionalismo cartesiano –, porque ele jamais conseguiu entender que a razão da filosofia clássica (o logos do Evangelho de João e o nous da metafísica aristotélica) sempre foi, na verdade, a própria forma de articulação que a alma (psyche) encontrou para ter eficácia no mundo dos homens. Culpar Sócrates por uma natureza humana idealizada em um ambiente humanista é um erro tão crasso para um filósofo da envergadura como Gray, já que ele ainda não compreendeu que a própria descoberta de se ter uma natureza humana surge justamente com a descoberta da vida interior – enfim, de uma alma – feita por ninguém menos que o mestre de Platão. 

O autor de “Em Busca da Imortalidade” parece insistir em não querer ver que a filosofia é sobretudo o drama de uma alma – em particular, o do próprio filósofo que a experimenta ao escrever sua própria obra e, no âmbito geral, a da sociedade que tenta sobreviver em um universo que lhe é completamente hostil. E este drama, para ser eficaz entre os habitantes deste mundo, precisa ser comunicado de alguma forma – uma vez que, como Eric Voegelin escreveu em uma carta endereçada a Leo Strauss, “a verdade revelada só existe à medida que é recebida pelas pessoas e é comunicável”. 

Gray é incapaz de entender que a sua preocupação com a linguagem perfeita – e sua posterior aceitação a uma imperfeição intrínseca a ela, muito a contragosto – é o fechamento da sua própria alma a uma verdade revelada há séculos ao ser humano, mas que ele se recusa obstinadamente a inserir em seu próprio pensamento. É claro que a verdade revelada só existe se ela for comunicada, se seguirmos o corolário de Voegelin; porém, essa comunicação jamais será cristalina e plena em uma iluminação única; será fragmentada, perdida muitas vezes, incompleta. Ainda assim, a verdade revelada continua lá, à espera de uma articulação mais precisa. Não é porque você não consegue exprimir a revelação da sua alma que isto significa que ela seria tão somente uma “ficção”. 

Não é por acaso que John Gray afirma que o Gnosticismo e a política apocalíptica venceram no mundo ocidental. Em ambos os casos, a alma deixa de ser uma experiência concreta e passa a ser um mero conceito – o que sempre foi o oposto do que acontecia na filosofia clássica e na nossa herança judaico-cristã. Sem dúvida, sua obra está certa sobre vários aspectos do nosso mundo moderno e pós-moderno, mas ela é também um reflexo desta “política gnóstica” da qual somos obrigados aturar – uma política que, no fundo, destrói o ser humano em sua dignidade imediata e o abandona literalmente ao Deus-dará, sem nenhuma chance de encontrarmos uma redenção que, para o escritor inglês, jamais existiu, apesar das inúmeras provas ao contrário no decorrer da História. 

4. 

E aqui chegamos ao segundo equívoco das ideias centrais de Gray – a sua noção do que realmente significa esse tal de “abandono”. No final do livro “Enlightenment´s Wake”, ele chega à conclusão de que, para escapar dos impasses do liberalismo progressista, do mundo globalizado e da incerteza inerente à condição humana, é fundamental aceitar de uma vez por todas a experiência daquilo que Martin Heidegger, inspirado por Mestre Eckhart, chamava de Gelassenheit – “abandono” ou, para sermos mais precisos, “desprendimento” (na verdade, o neologismo Abgeschiedenheit, de acordo com a terminologia do teólogo místico dominicano, se você tiver a coragem de pronunciá-lo). 

Gelassenheit, para Gray, seria uma nova forma de relacionamento com o nosso ambiente natural, com o Planeta Terra e outros seres humanos com quem compartilhamos esse mesmo mundo. Nela, a nossa subjetividade não seria mais a medida de todas as coisas (um dos pecados capitais do humanismo racionalista); assim, ela exige uma reviravolta em todas as nossas tradições de pensamento bem sedimentadas na história, abrindo a possibilidade de maneiras profundamente diferentes da criação de uma comunidade humana em um cosmos repleto de paz. 

Contudo, este relacionamento exige uma despedida das nossas nostalgias mais profundas, dos nossos afetos e das nossas paixões – uma despedida pelo Ser que assombrava Heidegger e por uma forma de enraizamento pré-reflexivo, numa articulação ainda incipiente do que seria, anos depois, o “silêncio dos animais” tão procurado por Gray. Ao mesmo tempo, o inglês reconhece que esse mesmo tipo de despedida pode levar a um comportamento reacionário – como o que aconteceu com o próprio Heidegger em seu fascínio pelo nazismo ou com o jacobinismo na Revolução Francesa. Neste “desprendimento político”, o correto é entender que todas as teorias políticas recentes não passam de discursos edificantes que têm, como centro da sua conceituação, uma perspectiva do que significa ser uma pessoa em um mundo que, na verdade, já o vê como uma “ilusão” a ser deixada por si mesma. Para Gray, eis a função do teórico ou do filósofo: desprender-se desses discursos, até mesmo o liberalismo, que seria a ideologia política defensora da dignidade da pessoa, e esperar até ver quais seriam as consequências deste abandono. 

Ao que tudo indica, elas não serão nada agradáveis para o gênero humano. Mas aqui temos o nó górdio do uso do conceito de Gelassenheit, especialmente quando Gray o filtra na visão de Heidegger, entendida pelo inglês como uma corrupção da experiência mística descrita por Mestre Eckhart. Aqui, o “abandono”, ou o “desprendimento”, seria a mais elevada das virtudes, mais elevada do que até mesmo o amor ou a humildade diante de Deus, pois, segundo o autor de “O Livro da Divina Consolação”, 

“o melhor do amor [e da humildade] é que ele me força a amar a Deus, enquanto o desprendimento força Deus a me amar. Ora, é muito melhor eu forçar Deus a vir ao meu encontro do que eu me forçar a ir ao encontro de Deus. A razão disso está em que Deus pode se juntar muito mais intimamente a mim unindo-se comigo do que eu poderia unir-me a ela. Que o desprendimento força a Deus a vir ao meu encontro posso provar desta maneira: cada coisa gosta de estar no seu lugar natural. Ora, o lugar natural de Deus é a unidade e a pureza, e estas decorrem do desprendimento. Por isso, Deus sente a necessidade de entregar-se ao coração desprendido. Por outro lado, enalteço mais o desprendimento do que o amor porque o amor me obriga a suportar por Deus todas as coisas, enquanto o desprendimento não me faz ficar suscetível a nada que não seja Deus. Ora, vale muito mais não ser suscetível a nada que não seja Deus do que suportar tudo por amor de Deus. Pois, no sofrimento, o ser humano ainda dá uma certa atenção à criatura da qual lhe vem o sofrimento, enquanto o desprendimento é totalmente isento de toda criatura. Que o desprendimento não é suscetível a nada que não seja Deus posso provar da seguinte maneira: para que algo seja recebido é necessário que seja recebido dentro de algo. Mas o desprendimento fica tão próximo do nada que nenhuma coisa é suficientemente sutil para poder manter-se dentro do desprendimento, a não ser Deus. Só ele é simples e sutil a tal ponto de conseguir ficar dentro do coração desprendido. Por isso, o desprendimento não é suscetível a nada que não seja Deus”. 

O trecho citado é longo por dois motivos. O primeiro é para o leitor entender que existem pensadores superiores a John Gray. Não é porque você precisa se atualizar nas tendências do momento que não se pode conhecer um teólogo místico, dono de uma expressão cristalina a respeito de um tipo de experiência existencial que, infelizmente, perdemos hoje o seu sentido; o segundo é que, por mais que o leitor de Gray critique o liberalismo progressista, compreenda o “silêncio dos animais” ou confirme a sua “busca por imortalidade”, ainda assim a sua aplicação contemporânea do “desprendimento” perderá toda a validade se não perceber que “Deus” é uma força real que atrai a “alma” – esta mera metáfora, este mero conceito – para o campo gravitacional do Gelassenheit

O verdadeiro abandono só existe se Deus for o “nada” que eleva o ser humano a descobrir que o “tudo” é, afinal de contas, inexprimível. É este pequeno detalhe que falta a John Gray para que a sua obra filosófica fosse completamente correta sobre a atual situação do nosso mundo. Sem este “nada” – que também é o “tudo” – ele pode ter a aura da perfeição, mas trata-se de uma perfeição que, no seu centro, é irremediavelmente podre. Se a sua missão como filósofo é fazer as pessoas verem a realidade tal como é, Gray esqueceu-se que a filosofia também faz as pessoas verem além. Neste panorama tenebroso, não seria uma coincidência que, segundo o seu ponto-de-vista articulado no célebre ensaio “Uma agenda para o conservadorismo verde”, a única solução possível para todos os intrincados problemas que enfrentamos nos últimos anos é “uma correção ao estilo de Gaia do lugar da espécie humana na ecologia planetária [e que também] seja o resultado mais provável – até mesmo, talvez, resultado menos indesejado – das atuais tendências ambientais” (itálico nosso). 

De tanto ficar obcecado com a narrativa (e não com a evidência) que se tornaram os conceitos de “alma”, de “linguagem” e de “Deus”, John Gray também transformou o ser humano – e, portanto, a si mesmo e a quem o lê – em mais uma ilusão. Se seguirmos sua lógica implacável, a extinção de nós todos é o ponto final que falta para resolvermos o que nos atormenta. Ironicamente, ele também sintetiza, em sua própria obra, o princípio que julgava analisar de maneira imparcial: o de que a audácia do seu pensamento não coincide nem com o progresso técnico, muito menos com o progresso ético. A partir de agora, o homem será o responsável pela sua destruição – e a filosofia é completamente inútil para impedir isso. Mas nem tudo está perdido – ou completamente abandonado. Apesar de ser quase impossível encontrarmos a “ficção de um absoluto” na trágica contingência desta vida moderna, ainda assim não podemos nos esquecer, como diria um poeta tão admirado por Gray – Wallace Stevens – que há um “anjo necessário”, oculto e desprendido em uma “nuvem luminosa”, que “cala e ouve/a luminosa música do som exato”, algo que nenhuma perfeição da podridão, por mais talentosa que seja, nos impedirá de viver. 

Martim Vasques da Cunha é autor dos livros “Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More” (Vide Editorial, 2012) e “A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira” (Record, 2015); pós-doutorando pela FGV-EAESP.

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