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Roger Scruton, autor de “A Alma do Mundo”, entre outros livros | Divulgação
Roger Scruton, autor de “A Alma do Mundo”, entre outros livros| Foto: Divulgação

Nunca imaginei quando li pela primeira vez os textos de Roger Scruton que eles se transformariam em uma espécie de Evangelho – muito menos que o filósofo britânico conservador seria o equivalente de um “Michel Foucault da Nova Direita Brasileira”. 

Era final dos anos 2000 e eu fazia parte da equipe de uma publicação que ajudei a criar, a Dicta&Contradicta, e todos nós ouvíamos o nome dele somente nos artigos escritos por Olavo de Carvalho para os jornais O Globo e Diário de Comércio. Poucos sabiam quem era o sujeito. Ao pesquisar mais um pouco na Internet, conseguimos ler seus ensaios eruditos na The New Criterion e na The Spectator, revistas culturais high-brow de língua inglesa, e ficamos impressionados com a abrangência dos temas e no modo direto como lidava com temas polêmicos do momento. Naquela época, conseguimos um contato com Scruton, que prontamente autorizou, por um custo mínimo, a publicação de alguns de seus artigos na Dicta. 

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Ninguém no Brasil prestou atenção ao que ele escrevia, apesar da nossa revista ter lançado artigos hoje considerados clássicos – como “O Islã e o Ocidente”, que explicava as diferenças essenciais entre a religião cristã e a de Maomé. 

Entretanto, ao longo dos anos, igual a uma espécie de vírus, Scruton entrou na mentalidade do mundo cultural do Patropi, especialmente o do eixo Rio-São Paulo. De repente, lá estava ele dando uma entrevista nas Páginas Amarelas da revista Veja, resultado da insistência com a qual a Dicta divulgava o seu nome nos bastidores da imprensa e da academia – o que logo causou uma espécie de efeito espoleta que se espalhou nas prateleiras das livrarias, com nada mais nada menos que dez títulos publicados entre 2008 e 2015, na seguinte sequência: Uma Breve História da Filosofia Moderna (José Olympio), Bebo, Logo Existo (Octavio), Coração Devotado à Morte, Pensadores da Nova Esquerda, O que é Conservadorismo, Beleza, As vantagens do pessimismo, O Rosto de Deus (todos lançados pela É Realizações), Desejo Sexual (publicado pela Vide Editorial), terminando com a Record, uma das gigantes do mercado editorial, colhendo os sucessos de Como ser um Conservador (traduzido pelo cientista político Bruno Garschagen). 

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De 2015 em diante, a produção de Scruton não parou, seja aqui, seja lá fora. Enquanto no Brasil tivemos A Alma do Mundo, Tolos, Fraudes e Militantes (uma versão ampliada de Pensadores da Nova Esquerda), Filosofia Verde, Uma Filosofia Política – Argumentos para o Conservadorismo, Arte e Imaginação e Confissões de um Herético (uma coletânea de ensaios lançada pela novata Editora Âyiné), nos países de língua inglesa foram publicados On Human Nature (uma continuação de A Alma do Mundo, a sair em breve aqui pela Record), The Ring of Truth (sobre a tetralogia O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner), o mais recente Where We Are: The State of Britain, que chegou às livrarias inglesas no último mês de Janeiro, e o próximo Conservatism – An Invitation to a Great Tradition, previsto para sair nos Estados Unidos em Junho deste ano. 

Por incrível que pareça, existem outros livros de Scruton que precisam ser publicados no Brasil, se o leitor tupiniquim quiser conhecê-lo melhor. Há as introduções impecáveis a Kant e Spinoza (que já foram lançadas por aqui pela Unesp, mas deveriam ser urgentemente reeditadas), os tomos volumosos de Filosofia Moderna (entre eles, A Modern Philosophy, um exemplo de pesquisa meticulosa e de clareza conceitual), as duas edições dos dicionários de Filosofia Política (clássicos de consulta na disciplina em qualquer universidade internacional), os ensaios sobre Arquitetura, Música, direitos dos animais, e, last but not least, dois romances, Notes from the Underground (sobre suas experiências ao ajudar dissidentes comunistas na Tchecoslováquia entre os anos 1970 e 1980) e The Dissapeared (em torno da decadência atual da Europa e, em particular, da Inglaterra). 

Política x Filosofia

Enfim, Scruton é um polímata e um polígrafo – e, por isso mesmo, alguém obcecado a respeito de certos temas, que vão e voltam em sua obra. 

Porém, os especialistas nela sempre fazem uma distinção: uma coisa é o Scruton que escreve sobre política, em especial a que envolve a reflexão sobre o conservadorismo e outros discursos ideológicos; outra coisa é o Scruton filósofo, discípulo da técnica meticulosa da tradição da filosofia analítica, que vai de Kant e Wittgenstein, passando por Elizabeth Anscombe (que o orientou em seu doutorado), e medita sobre assuntos mais perenes, como a religião, a morte, o tempo e a natureza humana. 

Este texto defende que esses dois Scrutons parecem ser diferentes, mas, na verdade, não são. Há uma melodia oculta que acompanha cada uma das variações dessa sinfonia. A aparente divisão formal indica algo mais profundo, provavelmente uma divisão psíquica, típica de quem direta ou indiretamente usa Hegel como modelo para uma abordagem mais sistemática do comportamento humano. Assim como acontece com Francis Fukuyama (um hegeliano de quatro costados), temos, no fundo do debate político analisado nos escritos de Scruton, a predominância da imaginação liberal como eixo ou contraponto de uma marcha irresistível da História, que se dirige para um inevitável telos, um fim no qual os estados-nacionais precisarão resolver entre si qual será o papel que terão no futuro da Humanidade. 

A diferença entre um Fukuyama e o pensador britânico é que o primeiro acredita que a democracia somente sobreviverá se o liberalismo for a ideologia definitiva, unificando a todos numa ordem suprema que manterá a coerência mundial, enquanto o segundo defende o valor de um retorno ao sagrado e às associações civis (segundo o termo de Michael Oakeshott) diante da opressão tecnocrática das grandes administrações estatais, no resgate de uma tradição imemorial que preservaria os costumes históricos e que também mostraria uma constante na natureza humana. 

Em ambos os casos, os pensadores têm mais apreço por suas ideias do que por fatos – um costume entre alguns adoradores do sistema hegeliano. O caso de Scruton é peculiar porque, além de não se basear em uma categoria de idealismo fundamental, sua análise política é repleta de nuances e geralmente correta nos exemplos dados em argumentos lúcidos, enquanto o seu conservadorismo é baseado em uma concepção equivocada do que é o ser humano – e que acarretará resultados devastadores a quem quiser praticá-la na sua vida. 

Mundo paralelo

No artigo “Contemporary Conservatism, Human Nature and Identity: The Philosophy of Roger Scruton”, David Wendelken argumenta que Scruton faz o contrário da maioria dos analistas conservadores, que sequer falam sobre suas concepções de natureza humana na hora de lançarem seus diagnósticos sobre uma determinada circunstância política. (E é por causa dessa surpreendente inversão de papéis que já aviso ao bom leitor que agora seguir-se-á uma parte extremamente árida deste texto, mas fundamental para chegar aonde está o xis da questão.) 

O autor de As vantagens do pessimismo parte de uma teoria bem definida da natureza humana para defender a sua visão muito particular do que seria um acordo sócio-político conservador. Para ele, uma descrição do que é o homem somente é válida se contrapormos a teoria da consciência de René Descartes ao trabalho de Ludwig Wittgenstein em torno da filosofia da mente e da linguagem. 

Os seres humanos são animais, mas ao mesmo tempo são pessoas dotadas de uma individualidade impossível de ser reduzida em um esquema científico abstrato ou arbitrário, fundamentada na faculdade da razão. Essa racionalidade peculiar só pode ser completamente compreendida pelo próprio homem e pelos seus semelhantes por meio do uso do pensamento, do sentimento e da ação. Não se trata apenas de uma faculdade animal, mas sim de uma condição de existência, pois sem o uso desses três elementos, nossa vida psíquica seria totalmente diferente. 

Por ser alguém com uma perspectiva auto-consciente, o ser humano deve tomar muito cuidado para não cair na perspectiva cartesiana de criar e viver em um mundo paralelo. Logo, sua saída é encontrar outras perspectivas dentro da sua individualidade, criando aquilo que Scruton chama de “a primeira pessoa no plural”. 

Por exemplo: ao usar o argumento de Wittgenstein da linguagem privada – e da relação desta com objetos particulares –, como ocorre, por exemplo, com a dor, somos ensinados, segundo essa lógica, a agir quando estamos doloridos porque nossas expressões naturais se tornaram ligadas a sentenças e palavras que eram públicas. De acordo com Scruton (via sua interpretação de Wittgenstein), não observamos a nossa dor para produzirmos uma resposta expositiva, mas a expressão verbal da dor substitui o choro provocado por ela e não é apenas a sua mera descrição. 

O fato de ser uma pessoa que depende da interação com outras pessoas cria igualmente a noção de uma intencionalidade, influenciada por Brentano e Husserl. Trata-se do traço distintivo dos fenômenos psíquicos em relação aos fenômenos físicos – ou seja, os primeiros são estruturados de modo que necessariamente apontam para algo além de si mesmos, o que não acontece com os segundos. 

Esta é a condição de possibilidade da intersubjetividade, a qual cada pessoa deve ter a intenção consciente de entender a outra como ela é realmente – ou seja, um ser humano com personalidade única. Assim, a faculdade da razão transforma-se em uma razão prática, seguindo os passos de Kant, concretizada no debate público com os outros, o que significa, em outros termos, que a razão, por si, pode dar acesso direto ao núcleo da atividade humana. 

Fenômeno religioso

Contudo, Scruton não despreza o fenômeno religioso. Pelo contrário: ele o coloca como uma das atividades mais importantes que o ser humano realiza na sua trajetória neste mundo. Entretanto, para ele, a religião está subordinada tanto à razão como a uma apreciação da beleza que, obviamente, também se fundamenta na atividade racional. O encontro com o transcendente não pode ser negado, é claro, mas ao mesmo tempo ele tem mais uma função instrumental do que propriamente existencial – ou, pelo menos, devemos nos perguntar se isto não seria a face que o transcendente assume na esfera política. E este instrumento também tem um lado no qual tudo o que não for esteticamente aprazível deve ser descartado. 

A solução desse impasse é a absorção do fenômeno religioso com a racionalidade humana naquilo que Husserl chamava de Lebenswelt, o mundo da vida concreta onde os seres humanos se encontram, entram em conflito, conseguem arranjar uma harmonia provisória e criam uma tradição histórica por meio dos “pequenos pelotões” de Edmund Burke – as comunidades nas quais as pessoas intensificam suas relações interpessoais entre si e se aperfeiçoam na intencionalidade de entender o que se passa na vida particular de cada um. 

É por esse motivo que Scruton discorda da ideologia liberal – e também as do comunismo e do socialismo totalitárias que combateu corajosamente nos anos 1980 e 1990, e agora foram substituídas pelo totalitarismo globalista da União Europeia, segundo seus escritos mais recentes. Apesar de usar a análise de Kant – o maior defensor da “paz perpétua” que já existiu –, Scruton sabe que a natureza humana não é um artefato social, puramente abstrato (como imaginam os liberais e os comunistas), mas sim uma construção orgânica que ocorre durante o curso da História e que foi se aperfeiçoando conforme o homem se encontrava com as pessoas ao seu redor. 

Como explica Wendelken, quando entramos no mundo, já somos afetados pelo que já existia antes – e isto determina, de certa forma, o desenvolvimento da nossa consciência. Portanto, nossas ações devem ser observadas tanto na perspectiva da primeira pessoa como na terceira – em outras palavras: de uma maneira intersubjetiva, na qual o sujeito e o objeto devem procurar igualmente a máxima imparcialidade e a máxima racionalidade. 

Futuro do Ocidente

Isto se reflete em dois tópicos comuns na obra de Scruton: (1) a busca de uma cultura comum que preserve tanto a tradição histórica como o futuro do Ocidente; e (2) o simbolismo do rosto humano, inspirado na ideia de “prósopon”, a máscara do teatro grego, que, por uma dessas coincidências circulares da vida, deu margem ao próprio conceito de pessoa. No primeiro caso, a importância de Hegel é crucial para entender a sua afirmação de que “a vida da liberdade e da certeza só pode ser obtida através dos outros”. 

Em um dos ensaios que compõe o volume Confissões de um Herético (“Escondendo-se atrás da tela”), Scruton medita sobre o fato de que “eu me torno eu mesmo completamente nos contextos em que sou compelido a reconhecer que sou outro aos olhos de outros. [...] É somente entrando nesse mundo, com seus riscos, conflitos e responsabilidades, que passo a me enxergar como livre, podendo assim desfrutar de minha própria perspectiva e individualidade, e me tornar uma pessoa realizada no meio de outras”. 

Assim, sua visão de liberdade “envolve um engajamento ativo com o mundo, em que obstáculos são encontrados e superados, riscos são tomados e satisfações são ponderadas” e onde “a autoconsciência, em sua forma totalmente realizada, envolve não apenas uma abertura à experiência presente, mas também um sentido da minha própria experiência como indivíduo, com planos e projetos que podem ser cumpridos, e com uma concepção clara do que EU estou fazendo, com que propósito e com que esperança de felicidade em mente”. 

A certeza que Scruton tem a respeito desse tipo de perspectiva pública é tamanha que ele não hesita afirmar, com todas as letras, “de que a liberdade e a realização do eu se dá somente a partir do momento que reconhecemos os outros. Sem os outros, minha liberdade é uma cifra vazia, e o reconhecimento dos outros envolve tomar responsabilidade total pela minha experiência própria na condição do indivíduo”. 

É por isso que o simbolismo do rosto humano adquire uma importância fundamental tanto na perspectiva conservadora como na visão de natureza humana estabelecidas por Scruton em seus livros. Ele articula esse tópico com precisão em O Rosto de Deus e A Alma do Mundo, sendo que, neste último título, escreve o seguinte: “Meu rosto está ligado ao pathos da minha condição e é o lugar onde o self e a carne se dissolvem, e onde o indivíduo é revelado não apenas na vida que brilha sobre a superfície, mas também na morte que cresce nas dobras do tempo.” 

“Dobras do tempo”

Esses trechos mostram a sofisticação metafísica de Scruton – uma sofisticação que, na verdade, esconde problemas extremamente graves em seu argumento geral e que, graças ao seu estilo agradável de escrita, impactam de forma duradoura a psique do leitor que pretende aplicá-las no seu cotidiano. 

Apesar da beleza intrínseca nessa análise do simbolismo do rosto humano – e que se ramificará em todos os estratos da sociedade, desde da comunicação interpessoal até a sua deformação explícita, por meio do kitsch estético, da pornografia e da música pop, passando pela devastação ambiental e arquitetônica –, ela mostra, nas mesmas “dobras do tempo”, a incapacidade de Scruton perceber que, ao basear sua visão da natureza humana nas molduras conceituais de Hegel e Wittgenstein, ele também pode cair no mesmo perigo do relativismo que o conservadorismo imputa aos seus opositores. 

Neste ponto específico, Wendelken explica que, como para Scruton (inspirado em Wittgenstein), o significado da existência depende da situação social ou da forma de vida em que se encontra o indivíduo, isto nos leva a duas consequências. A primeira é que se o sentido – compreendido aqui como o problema semântico fundamental de como as palavras adquirem seu significado concreto – é relativo a uma situação social, isso também ocorre com a verdade objetiva, e aí temos o surgimento de um relativismo epistemológico; e a segunda é que se a sociedade é composta por diferentes jogos de linguagem, então o resultado será um tecido social completamente fragmentado, sem qualquer possibilidade de se encontrar uma unidade no seu núcleo. É aqui que Hegel entra na antropologia filosófica concebida por Scruton para salvar o seu sistema geral – além de enfim descobrir o que seria a tal da cultura comum que o conservadorismo manteria e onde estaria a verdade que enfim unificaria todos esses escombros. 

Contudo, Hegel acredita que Deus se manifesta integralmente na marcha da História e que o desenvolvimento tanto da sociedade como da auto-consciência humanas são resultados da revelação divina. Há um fundamento metafísico autêntico no sistema hegeliano, no qual Deus é ainda uma experiência viva, enquanto Scruton sem dúvida fala em Deus como uma presença viva, marcada no encontro de um rosto humano com outro, mas muito mais semelhante a um mecanismo da “primeira pessoa do plural”, auxiliador na manutenção natural da sociedade, em particular na unidade que pode dar à tradição cultural, do que propriamente um fato objetivo da nossa realidade. 

Alma esquecida

O resultado disso é uma visão de natureza humana no qual a alma é esquecida como o lugar onde Deus pode habitar no nosso coração e conversar conosco, independentemente do encontro com o outro. E mais: ela jamais teria chance de viver uma outra vida após a passagem neste mundo. Assim como Thomas Hobbes, Scruton tem um verdadeiro medo da morte – e, neste caso específico, da morte violenta e dolorosa. Sua pretensão como filósofo é igual a de um estoico – ensinar os outros a morrer –, mas ele deixou de lado o ensinamento de Platão, no Fedro, de que a filosofia só será uma maneira de aprender a lidar com a morte se entenderemos, antes de tudo (e de todos), que a nossa alma é imortal. 

Ele explicita esse ponto nos parágrafos finais de A Alma do Mundo, uma espécie de summa theologica dos seus pensamentos mais íntimos: 

“Podemos afastar a morte como uma aniquilação, ou saudá-la como uma transição. Podemos vê-la como a perda de algo precioso, ou como o ganho de um outro modo de ser. De certa maneira, tudo depende de nós. Quando vivemos em plena compreensão e em plena aceitação da nossa mortalidade, vemos o mundo como um lugar onde podemos habitar. Ficamos abertos à morte, e a aceitamos como se fosse a nossa completude. [...] A vida após a morte, concebida como uma condição que sucede a morte no tempo, é algo absurdo. Pois a sucessão no tempo pertence ao conjunto de causas, no contínuo do espaço-tempo que é o mundo da natureza. Se há alguma mensagem a ser extraída dos meus raciocínios é que a ideia de salvação ― de uma relação correta com o criador ― de forma alguma precisa ter uma vida eterna, pelo menos assim concebida. Mas precisa aceitar a morte, no sentido de que, diante dela, encontramos o nosso criador, aquele vinculado a nós pela aliança, a quem devemos prestar as contas das nossas falhas. Retornamos ao lugar onde surgimos, à espera de sermos bem recebidos ali.” 

No mundo onde Roger Scruton vive, Deus é uma presença viva benéfica, mas uma presença que parece ser muito mais ficcional do que verdadeiramente real, um conceito sofisticado que serve apenas para que suas ideias tenham a coerência necessária para manter a integridade do seu sistema filosófico. E a imortalidade, neste caso, é uma pedra de tropeço em um pensamento que precisa permanecer intocado neste mundo pleno de enigmas, seja para enfrentar seu lado trágico, seja para usufruir das suas delícias enquanto o tempo permitir. 

Contudo, a marcha da História é irreversível – e Scruton, como bom hegeliano, deveria saber isso antes de todos. Mesmo assim, o próprio admite, em outro ensaio de Confissões de um Herético (“Chorando a perda”), que ao observar os nossos dias, ele também se encontra em um “prolongado trabalho de luto”, incapaz de aceitar as coisas como elas são, naquela atitude que Mark Lilla já chamou de “mente naufragada” (shipwrecked mind) – ou seja, o sujeito que não reconhece mais em si mesmo e nos outros que a História tomou um outro rumo, completamente fora do seu controle, e que não há nada mais a se fazer, exceto viver realidades alternativas. 

A expressão “prolongado trabalho de luto” significa também que Scruton não sabe o que fazer se algum dia ele descobrir que a sua própria alma é imortal – e que ele terá de prestar contas não só pelo que ele fez neste mundo em que vivemos, mas principalmente no próximo mundo onde estaremos. Este temor resulta no tremor que, como bem observou Nietzsche sobre um determinado temperamento inglês muito comum no final do século XIX, a coisa mais assombrosa que pode acontecer com um sujeito como Roger Scruton é saber que foi um crente que jamais acreditou na existência de Deus. 

Impacto no Brasil 

É por este motivo que a longa discussão acima sobre a visão de Roger Scruton a respeito da natureza humana tem um impacto formidável no debate político dos nossos tempos, em especial no Brasil. 

O efeito espoleta dos lançamentos deste autor inglês, que vão contra o establishment progressista da nossa sociedade, ocasionou uma reavaliação do conservadorismo no clima de opinião brasileiro, em especial na sua vertente britânica, como podemos ver no sucesso de livros como As Ideias Conservadoras, do português João Pereira Coutinho, e Pare de Acreditar no Governo, de Bruno Garschagen, dois escritores que professam o mesmo credo político de Scruton (mas que, felizmente, não compartilham da mesma visão antropológica, junto com outras exceções à regra). 

O fenômeno Scruton por essas plagas faz parte de uma tensão inerente ao comportamento social tupiniquim – a da dialética entre imitação (imitatio) e emulação (aemulatio). O professor João Cezar de Castro Rocha dedicou dois livros a este tema – Machado de Assis: Por uma poética da emulação e o mais recente Culturas Shakesperianas

Segundo ele, tal atitude ficou evidente no temperamento nacional quando o autor de Dom Casmurro decidiu superar a influência de seu mestre maior, José de Alencar, e resolveu seguir e superar os passos do português Eça de Queirós, especialmente em O Primo Basílio. Foi um processo de criação artística que não era apenas imitar por imitar, mas principalmente criar através de uma complexa emulação – ou seja, a imitação para fazer algo melhor e diferente, superando e absorvendo o seu modelo inicial. 

Para Castro Rocha, esta é uma das formas pelas quais a cultura brasileira como um todo pode escapar da sua condição subdesenvolvida, saindo de ser um país periférico, na possibilidade que seja visto como uma novidade entre os outros países latinos e até mesmo europeus, principalmente porque esta seria a maneira ideal para qualquer escritor superar a si mesmo. Contudo, em Culturas Shakesperianas, ele desenvolve essa dinâmica da imitação e da emulação no encontro da cultura latino-americana em geral (a brasileira inclusa) com a cultura de língua inglesa, que seria inspirada na revolução humanista da obra do dramaturgo William Shakespeare e, na visão de Castro Rocha, articulada em torno do encontro com o Outro, aquele que queremos, mas não conseguimos compreender por causa da nossa limitação cognitiva. 

Atmosfera de niilismo

O ressurgimento do conservadorismo britânico no Brasil pertence a este tipo de choque cultural, neste pêndulo entre a simples imitação e uma emulação muito mais complexa – e, por isso mesmo, muito mais difícil de ser executada. Mas há um fator adicional: como articulei em A Poeira da Glória e em outros escritos, estamos completamente imersos em uma atmosfera de niilismo. Ela é consequência radical do esteticismo que impera na cultura brasileira e que, infelizmente, poucos se dão conta que exista em cada uma das suas ações, em cada um dos seus pensamentos. 

Este fenômeno bizarro foi analisado brilhantemente por Mario Vieira de Mello em seu livro Desenvolvimento e Cultura (1963), quando ele mostra que a alma brasileira – este bicho estranho que muitos intelectuais da nossa raça tentam reduzi-lo ao extremo, independentemente de serem da direita ou da esquerda – não consegue encarar a existência como um problema moral, no qual o Bem e o Mal são objetivos, dependentes de uma escolha singular, mas sim como uma questão estética, igual a uma obra de arte em que você pode modificar à vontade, mesmo que isso ocorra às custas dos outros ou até mesmo de si mesmo. 

Assim, o sucesso do conservadorismo à la Scruton por nossos pensadores da Nova Direita se deve ao fato de que preferimos apenas imitar a cultura shakespeariana que tenta compreender o Outro como se este fosse um manequim em vez de emular o que aprendemos nas páginas de um Como Ser Um Conservador ou de Beleza e aplicarmos tudo isso nas nossas vidas sob uma perspectiva moral, deixando de lado o esteticismo inerente a essa empreitada. 

Ódio pelo lar

É claro que o próprio Scruton quer permanecer no estágio estético, mas ao mesmo tempo ele tenta não abandonar o seu estágio ético, se usarmos as categorias de Kierkegaard. Entretanto, aqui seria interessante saber se Castro Rocha tem conhecimento da obra de Anthony Quinton, The Politics of Imperfection (“A Política da Imperfeição), um clássico anglo-saxão que precisa ser urgentemente editado por aqui e que complementa as intuições de Culturas Shakesperianas. 

Neste livro, Quinton argumenta que, para existir um conservadorismo autêntico, é fundamental que exista também uma tradição cultural e histórica que o sustente. Ele relembra o que aconteceu na França revolucionária de 1789, quando os jacobinos beberam das lições sobre a autonomia humana dadas por John Locke e, incapazes de entender que elas só teriam eficácia em uma sociedade onde a abertura ao transcendente era intrínseca na cultura inglesa, confundiram a liberdade com a libertinagem da razão autossuficiente do Iluminismo de Voltaire e Diderot – e o resultado foi o Terror de Robespierre e Danton. 

Em um complemento à lição de Quinton, não seria exagero dizer que, sem o transcendente concreto que funciona como interdito – uma experiência viva na sociedade onde o indivíduo quer mudar –, qualquer um que se denomine “um conservador” nunca terá condições de agir como tal. Será apenas uma caricatura, uma imitação transformada em paródia – uma máscara que será usada para esconder de si mesmo e dos outros as próprias deficiências e o ressentimento de jamais conseguir participar da “grande conversação” da cultura shakespeariana. 

Nesta incerteza típica de quem se encontra sempre à deriva – e que jamais quer aceitar tal fardo –, a conexão peculiar entre a antropologia filosófica de Scruton e o comportamento esteticista do brasileiro é a impossibilidade de entender que, em ambos os casos, o homem se encontra em um perpétuo exílio. Contudo, para o pensador britânico, este impossível tem um nome mais sofisticado – e igualmente mais perigoso: o amor pelo lar – em grego: oikophilia

oikophilia é a atitude que combate a oikophobia, o ódio pelo lar – uma característica daqueles que compartilham das ideologias socialistas e globalistas, segundo Scruton. Estes dois polos articulam a obra do inglês em uma outra dinâmica que, para a cultura brasileira, vai muito além da mera imitação e da mera emulação. Trata-se, como ele descreve no livro Filosofia Verde, do sentimento de pertencimento em uma “morada” que “incorpora pessoas e o conjunto das moradas ali fixadas; ou seja, um conjunto humano que dota aquele lar de contornos duradouros e um sorriso persistente. O oikos é um lugar que não é apenas meu e seu, mas nosso. É o palco estabelecido para a primeira pessoa do plural da ordem política, o locus real e imaginário em que ‘tudo acontece’”. 

Já a oikophobia não é apenas uma mera indiferença – é muito mais “uma forma de repúdio íntimo, semelhante à dos jovens contra os pais durante a crise da adolescência”, uma oposição que vai “contra as formas tradicionais de associação: contra o lar, contra a família, contra a nação”, sempre com a desculpa de que se veem a si mesmos como “paladinos de um universalismo esclarecido em sua cruzada contra as forças do chauvinismo social”. 

Isto é tudo muito convincente, sem dúvida, mas, no fundo, não passa de uma retórica bem elaborada para criar uma oposição de nós contra eles que, se articulada no restante da sociedade, dá ao conservadorismo um caráter ideológico muito similar às outras ideologias que alega combater. 

Se os que odeiam o lar fingem ser os paladinos da universalização e os amam o lar são o resto de Israel, quem representa, afinal de contas, a verdade da situação? Neste ponto, a visão de natureza humana de Scruton mostra ser de uma notável incoerência – além de entrar em choque com a defesa do conservadorismo, pois, se o ser humano só pode conhecer e ser conhecido conforme o reconhecimento dos outros, se tem consciência de si mesmo no seu núcleo por meio da experiência da razão e da linguagem externa, onde encontraria essa mesma verdade? Em lugar nenhum, ao que parece. 

O fato é que, se tal verdade existe no pensamento de Roger Scruton – e sem ela, o inglês jamais pode afirmar que pratica uma verdadeira filosofia –, não a encontraríamos no amor pelo lar, mas sim na consciência plena de que a alma humana é imortal. Por outro lado, esse mesmo amor pelo habitat do nosso mundo só pode ser plenamente realizado na tensão insuperável que há entre a morte e a imortalidade. 

Conforme articulou Eric Voegelin, no ensaio “Imortalidade: Experiência e Símbolo”, uma vez que “o símbolo ‘imortalidade’ pressupõe a experiência da vida e da morte, [...] os símbolos ‘vida’ – ‘morte’ não são sinônimos da existência espaço-temporal do homem, de sua geração e corrupção, vistos desde fora, mas expressam a consciência do homem de existir numa tensão para o fundamento divino de sua existência”. Se, para Scruton, repetindo o que ele escreveu em A Alma do Mundo, “a vida após a morte, concebida como uma condição que sucede a morte no tempo, é algo absurdo”, parece não ser “sinônimo da existência espaço-temporal”, ainda assim a busca rumo a um “fundamento divino de sua existência” deixa claro que, “de certa maneira”, nem “tudo depende de nós”. 

Foucault de sinal trocado

Aqui, a razão autônoma, mesmo imbuída do melhor dos sentimentos a respeito do fenômeno religioso, mesmo ansiosa por se integrar na dinâmica existencial da alma imortal, diante de um Deus incapaz de ser compreendido por seus próprios instrumentos de investigação, não consegue escapar das correntes da “autossalvação” e, portanto, da “autoimortalização” de um sujeito que só consegue alcançar sua própria transcendência na imanência deste mundo. É mais do que um sonho – é a prisão dentro um sonho e não há como fugir dela. 

Scruton permanece nessa resistência, alimentando a discórdia sofisticada do nós contra eles, fundamento central da sua política conservadora, totalmente inconsciente de perceber que não há nenhuma diferença entre a consequência existencial e lógica das suas ideias e o edifício de retórica subversiva construído por um Michel Foucault. 

Ambos alegam que querem assegurar o eros entre os membros da sociedade onde habitam – o primeiro com a manutenção de um passado que precisa ser revivido para se tornar enfim um futuro, o segundo com a criação de uma nova história que colocaria os excluídos no topo da hierarquia social –, para manterem a integridade da filosofia.

Mas, na verdade, o que eles fazem é a ideologia que deforma o mundo porque o eros distorcido desses filósofos, atraídos por um outro tipo de eros – o da tirania do pensamento – mostra nada mais nada menos aquilo que Voegelin comenta como “a alternativa à vida no paraíso de seu sonho, [que] é a morte no inferno de sua banalidade. Sua imortalidade, feita por eles mesmos, está em jogo; e, a fim de protegê-la, ele precisa se aferrar à sua concepção de tempo. Afinal, o tempo em que o ideólogo coloca sua construção não é o tempo da existência na tensão para a eternidade, mas um símbolo por meio do qual ele tenta forçar o intemporal a uma identidade com o tempo da sua existência. Ainda que a realidade da tensão entre o intemporal e o tempo assim se perca, a forma da tensão é preservada pelo ato onírico de forçar os dois polos numa unidade. [Tudo isso se caracteriza], portanto, como um símbolo engendrado por seu sonho libidinoso de autossalvação”. 

Projeto de poder

O “sonho libidinoso” referido por Voegelin é a libido dominandi, a vontade de poder inerente a qualquer intelectual com pretensões de compreender o mundo para depois transformá-lo, a pleonexia que transforma um filósofo extremamente sofisticado em um ideólogo vulgar – como o que infelizmente aconteceu com Roger Scruton. 

Dessa forma, temos de tomar muito cuidado ao aplicarmos os seus princípios conservadores numa cultura esteticista como a do Brasil, pois aqui o resultado pode sair o inverso do pretendido, conforme já nos foi alertado por Anthony Quinton, ao relembrar o que aconteceu com as ideias de Locke na Revolução Francesa. 

A consequência mais imediata seria uma espécie de totalitarismo tupiniquim que, se não tem Lenin ou Stálin como seus modelos, certamente tem Policarpo Quaresma, Macunaíma e algum outro burocrata do pensamento como exemplos a serem seguidos, para assim destruírem por completo a nossa alma, transformando-a em uma caricatura. 

De qualquer maneira, após desenterrarmos as inúmeras camadas que disfarçam os seus equívocos antropológicos e políticos, descobrimos que o conservadorismo de Roger Scruton não passa de uma alucinação de um projeto de poder. 

Ele se esquece que a natureza humana tem uma única constante nos séculos passados e futuros – a que já foi proferida no Evangelho de Mateus (8:18-20), quando um escriba aproximou-se de Jesus Cristo e disse-lhe: “Mestre, seguir-te-ei para onde tu fores”; e no que Cristo apenas lhe respondeu, em um aviso amoroso, porém amargo: “As raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. 

Essa incapacidade de Scruton não admitir que o seu amor pelo lar é uma ilusão, comprova também a afirmação do mesmo Eric Voegelin que, num texto sobre o livro Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt, previu que, nos próximos anos, o verdadeiro combate na arena política não seria entre liberais e conservadores, comunistas e capitalistas, esquerda e direita, e sim entre os filósofos que se abrem ao transcendente e os filósofos que se fecham diante dele – e preferem a imaginação liberal que deseja mudar, a qualquer custo, a natureza humana, ocultando, por meios retóricos, qualquer possibilidade da alma conquistar a sua imortalidade. 

Obviamente, para Voegelin, Arendt fazia parte do segundo grupo – assim como Scruton, por mais “conservador” que ele queira parecer. E, ele próprio, se algum dia ler este artigo, diria o seguinte: 

“Você talvez tenha razão. Entretanto, isto é o corolário possível para a esfera pública onde até mesmo os dramas existenciais se desintegram na realpolitik. Na esfera privada, o caminho que mostro está aberto à transcendência real que depende, por sua vez, do ‘salto’ individual sobre o qual eu não tenho poder algum.” 

A questão é que então, neste ponto específico, o autor de A Alma do Mundo praticamente em nada se diferenciaria de um dos sujeitos que ele tanto critica – por exemplo, John Rawls e a sua “teoria da justiça”. Pois como, segundo essa visão conservadora igualmente contaminada pela imaginação liberal, não há um consenso metafísico entre as pessoas, devemos estabelecer regras às quais todos deveriam racionalmente aderir. Mas aqui Leo Strauss responderia que não é porque ninguém concorda sobre alguma coisa que isso não significa que devemos deixá-la de lado; muito pelo contrário: é precisamente por esse motivo que devemos pensar sobre tal assunto, talvez mais do que nunca. 

Logo, para quem for cruzar os portões do Éden, o mundo não é o bastante, pois o exílio é o que nos resta. Não admitir isso para si mesmo (e para os outros ao nosso redor), como eu fiz comigo naqueles tempos de Dicta&Contradicta, quando ajudei a publicar os primeiros textos de Roger Scruton no Brasil, é participar deliberadamente de um pesadelo niilista, cujas consequências serão desconhecidas, nefastas – e imprevisíveis. 

(O autor gostaria de agradecer de coração às dicas e sugestões de Gabriel Ferreira, em especial no penúltimo parágrafo do texto, Fabio Silvestre Cardoso, Alexandre Borges, Dionisius Amêndola e Erico Nogueira.

*Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015); pós-doutorando pela FGV-EAESP.

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