Todos os dias, em dezenas de países, seja na Tailândia ou na Alemanha, nos Estados Unidos ou nas Filipinas, crianças nascidas em famílias muçulmanas e jovens recém-convertidos são educados na teologia do Islã. Via de regra, a doutrina que eles aprendem é bastante específica – e fundada na década de 1740 por um teólogo radical, Muhammad ibn Abd al-Wahhab (1703-1792). São preceitos alinhados com a linha de pensamento e de ação de grupos como a Al Qaeda e o Estado Islâmico.
Esta doutrina, conhecida como wahhabismo, é financiada pela família real da Arábia Saudita, a mais rica do mundo, com patrimônio estimado em US$ 100 bilhões. Esta linha religiosa se faz presente em escolas particulares, em seminários religiosos, escolas em mesquitas, colônias de férias e, cada vez mais, prisões.
“Em alguns países muçulmanos, as escolas e universidades financiadas pelos wahhabis representam, para muitos jovens, a única formação disponível. Por esses recursos, os wahhabis levaram sua mensagem por todo o mundo islâmico e, cada vez mais, pelas comunidades minoritárias em outros países, notavelmente na Europa e na América do Norte”, relata o historiador britânico Bernard Lewis no livro 'A crise do Islã: Guerra santa e terror profano'. “A vida pública muçulmana, a educação, e até mesmo a prática religiosa são, numa dimensão alarmante, financiadas e, portanto, dirigidas por wahhabis, e a versão do islã que eles praticam e pregam é dominada por princípios e atitudes wahhabi”.
Seita radical
“Muhammad ibn Abd al-Wahhab é conhecido por instaurar uma definição restrita de crença monoteísta, segundo a qual a maioria dos outros muçulmanos não eram realmente muçulmanos, mas sim incrédulos. Como os governantes sauditas apoiavam o wahhabismo como doutrina religiosa oficial, os clérigos wahhabistas exerceram muito poder”, explica à Gazeta do Povo David Commins, professor de história americano e autor do livro 'The Wahhabi Mission and Saudi Arabia' ('A missão wahhabi e a Arábia Saudita', sem tradução para o português).
Para apoiar sua doutrina, o fundador foi buscar argumentos entre teólogos muçulmanos da transição do século 13 para 14, especialmente Ibn Taymiyyah (1263-1328), e seu discípulo Ibn Qayyim al-Jawziyya (1292-1350). Para estes pensadores, assim como para o fundador do wahhabismo, era preciso perseguir internamente a esmagadora maioria dos muçulmanos, que representariam um risco até maior do que a atuação de outras denominações religiosas.
Em 'Wahhābism: The History of a Militant Islamic Movement' [em tradução livre, 'Wahhabismo: a história de um movimento islâmico militante'], outra obra de referência sobre o tema, o historiador Cole Bunzel detalha: “O fundador pregou que os verdadeiros muçulmanos, aqueles que adoram somente a Deus, devem mostrar ódio e inimizade para com esses politeístas e combatê-los na jihad”. A perseguição se voltava, então, contra fiéis que fazem peregrinações a locais considerados sagrados. E ainda contra aqueles admiram pessoas consideradas santas, os “wali Allah”, ou “amigo de Alá”.
Em função de suas posições extremistas, Al Wahhab acabou expulso de casa, mas, em 1744, encontrou refúgio com Muhammad Ibn Saud, considerado o fundador da atual casa real saudita. Desde aquele momento, os dois já haviam se entendido a respeito de uma troca: proteção para a seita, em troca de apoio religioso para o governante, que seguia uma rota de expansão na direçãoa a novas cidades da região.
O movimento que Al Wahhab fundou foi visto como uma corrente radical e minoritária por 150 anos – ainda que, desde o século 18, em alguns momentos, seguisse se aliando aos governantes sauditas do momento, especialmente os descendentes de Ibn Saud, em sua longa disputa contra os otomanos pelo controle da Arábia Central.
Até que, na década de 1930, o wahhabismo recebeu apoio estatal amplo. Para a família real saudita, a doutrina proporcionava legitimidade. Para o wahhabismo, era a oportunidade perfeita para ter acesso a poder e recursos para levar seus ideais para mais longe, inclusive entre comunidades muçulmanas no Ocidente. “O wahhabismo é ao mesmo tempo a ideologia religiosa fundadora da Arábia Saudita e a peça ideológica central do jihadismo contemporâneo”, sintetiza Bunzel.
O rei Abdul-Aziz, que assumiu o trono em 1932 e permaneceu nele até a morte, em 1953, utilizou os wahhabistas para controlar a oposição, relata Bunzel. “Quando eles já haviam demonstrado sua utilidade, o monarca abandonou a noção de que todos os demais fieis deveriam ser perseguidos. De certa forma, o wahhabismo foi controlado, mas ganhou dinheiro do petróleo para espalhar suas ideias radicais em comunidades muçulmanas de todo o mundo”.
Ameaça silenciosa
“Nos últimos cinquenta anos, duas situações tornaram o wahhabismo mais influente nas sociedades muçulmanas”, analisa o professor Commins. “Uma delas é a ascensão do salafismo em outros países muçulmanos. O salafismo partilha com o wahhabismo a mesma perspectiva teológica, e assim os salafistas e os wahhabitas tornaram-se aliados na tentativa de difundir a sua compreensão do monoteísmo. A outra coisa que tornou o wahhabismo mais influente foi o financiamento do governo saudita para atividades missionárias”.
A influência desta corrente alcança até mesmo grupos que não são formalmente apoiados pelos wahhabi, diz Commins. “Alguns movimentos militantes islâmicos partilham a compreensão wahhabi do monoteísmo – por exemplo, a Al Qaeda e o Estado Islâmico – ainda que o establishment wahhabi na Arábia Saudita não os apoie”.
Em artigo sobre o assunto, Marc Tucker, presidente emérito do National Center on Education and the Economy, uma organização não-governamental instalada em Washington, DC, explica a relação de proximidade do grupo religioso com os governantes sauditas. “A família real deu à seita wahhabi espaço livre no seu país em troca do apoio à reivindicação do poder político. O poder religioso e social foi trocado pelo poder político e econômico”.
E assim, ele prossegue, “nasceu uma das reformas educacionais mais bem-sucedidas que o mundo já viu. Os wahabitas assumiram primeiro o controle das escolas na Arábia Saudita e depois, com o total apoio da família real e do dinheiro do petróleo, que continua até aos dias de hoje, começaram a exportar escolas wahhabitas para todo o mundo”. Iniciando, diz ele, nos anos 1960, com o trabalho de doutrinação de filhos de imigrantes muçulmanos que se transferiam para o Ocidente a trabalho.
“As escolas wahhabitas exercem atualmente uma influência desanimadoramente desproporcional nas ideias, crenças e compromissos de milhões de estudantes em todo o mundo”, ele prossegue. “Esta não é uma influência benigna. Pode criar um exército mundial de jovens ansiosos por morrer por sua causa. Nada fazemos para enfraquecer a influência crescente das escolas nas quais os seus substitutos dos militantes do Estado Islâmico crescem todos os dias em números muito maiores do que são reduzidos pelos nossos militares no campo de batalha”.
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