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Num mundo obcecado pela gratificação imediata, "A Felicidade Não Se Compra" propõe o sacrifício individual como caminho para se alcançar a transcendência.
Num mundo obcecado pela gratificação imediata, “A Felicidade Não Se Compra” propõe o sacrifício individual como caminho para se alcançar a transcendência.| Foto: Divulgação

Todos os anos, desde a década de 1970, milhões de norte-americanos se sentam diante da televisão nos dias que antecedem o Natal para se deliciar com uma história em preto e branco. It’s a Wonderful Life (que, no Brasil, recebeu o título estranhamente materialista de A Felicidade Não se Compra), de Frank Capra, é considerado o maior clássico natalino de todos os tempos.

Lançado em 1946, um ano depois do fim das hostilidades da Segunda Guerra Mundial, o filme foi um fracasso de bilheteria e o responsável pela decadência de um diretor que, na década de 1930, se especializou em levar um pouco de esperança às famílias que enfrentavam a Grande Depressão. Aos poucos, contudo, e principalmente depois de ser popularizado pela televisão, It’s a Wonderful Life fincou raízes na cultura norte-americana, com sua emocionante história de redenção.

Assistir ao filme em 2019, época marcada pelo cinismo, vitimismo e um ateísmo epidêmico, é um desafio recompensador. Porque It’s a Wonderful Life, criado no pós-guerra para levar esperança às pessoas, ressalta valores úteis para se navegar na selva niilista do nosso tempo. Daí porque, aliás, ele se tornou um clássico natalino. É nessa época que as almas que perderam a esperança mais recorrem ao fim apressado ou recuperam aquele fiapo de esperança que dá sentido a tudo.

Dentre as muitas coisas boas que a história de George Bailey, magistralmente interpretado por James Stewart, destaco três: sacrifício, fé e... capitalismo ético.

O valor perdido do sacrifício altruísta

Em It’s a Wonderful Life, George Bailey é um menino que sonha em viajar pelo mundo, vivendo as mais tresloucadas aventuras, mas que cresce para se descobrir preso à cidadezinha de Bedford Falls, onde sua família é dona de um pequeno banco. Logo no começo do filme, porém, somos apresentados ao primeiro dos muitos sacrifícios a que Bailey terá de se submeter na vida. Não para alcançar o objetivo de menino, mas sim para se adaptar e descobrir que há algo maior na vida do que realizar nossos sonhos infantis.

Incrível, não? Numa época em que coaches celebram os sonhos infantis como os “únicos sonhos verdadeiros e dignos”, num tempo em que toda e qualquer adversidade é vista como um obstáculo intransponível na busca pelo prazer, este filme de quase 80 anos revela algo que há duas ou três gerações parecia trivial àqueles capazes de olhar em volta e, apesar de toda a desgraça recente (o mundo tinha acabado de sair da guerra), enxergar beleza e propósito na vida.

O valor do sacrifício é o mais difícil de ser assimilado pelas plateias mais jovens – ou nem tão jovens assim. Eu me lembro de, há uns bons dez ou quinze anos, apresentar o filme a uma amiga, com a promessa de que ela se sentiria bem melhor depois de acompanhar a vida do desesperado George Bailey, salvo por um anjo meio atrapalhado, enviado para lhe mostrar que ele, assim como todo mundo, era essencial para o caótico funcionamento do mundo.

Ela se sentou diante da televisão, comendo pipoca e chorando no final, como convém, para então sentenciar: George Bailey é um trouxa! E por quê? Justamente porque ele se sacrifica pelo irmão, pela família, pela cidade inteira até que, numa noite de Natal, por um descuido tolo e inocente do tio, se vê diante da falência, da humilhação pública e da prisão a ponto de cogitar o suicídio. Para minha amiga, assim como muito dos espectadores contemporâneos de It’s a Wonderful Life, o sacrifício altruísta, voltado para o bem-estar comum, aquele que abdica da gratificação imediata em nome de algo maior, é sinal de estupidez.

Aqui não dá para ignorar a relação entre Its’s a Wonderful Life e o Livro de Jó, por muitos considerado o mais pessimista da Bíblia, justamente por falar num sacrifício baseado na fé, que não busca a gratificação imediata nem o prazer constante característicos de nossos tempos hedonistas. Jó navega pela vida amparado somente por seu senso de correção, sofrendo todos os tipos de provações, até desembocar num tipo de satisfação que não encontra relação com nenhum conceito contemporâneo de felicidade.

Para efeitos dramáticos, Bailey encontra, sim, uma redenção que pode ser traduzida, em imagens, como felicidade. Na pungente cena final do filme, depois de ver como seu mundo imediato seria ruim sem sua presença, isto é, sem o efeito duradouro de todas as coisas boas que ele fez ao longo da vida, Bailey se vê socorrido pelos amigos, muitos dos quais passam o filme todo num silêncio discreto, símbolo da virtude que não precisa de aplausos para ser reconhecida como tal.

Capitalismo ético

Apesar de sua mensagem inequivocadamente inspiradora, It’s a Wonderful Life caiu na malha-fina macarthista da sua época. No afã de encontrar e de alguma forma punir os comunistas que usavam o cinema como máquina de propaganda, o FBI deu início a uma grande investigação que, como toda investigação do pensamento, acabou por produzir vários “vereditos” injustos.

"Em relação ao filme 'It's a Wonderful Life' (...) registre-se que o filme representava uma tentativa óbvia de difamar os banqueiros ao escalar [o ator] Lionel Barrymore como um ‘avarento inescrupuloso’, de modo que ele fosse o homem mais odiado do filme. Isso, de acordo com nossas fontes, é um truque comum usado por comunistas. Além disso, registre-se que, em sua opinião [das fontes], esse filme deliberadamente demoniza a classe alta, tentando mostrar pessoas ricas como más e desprezíveis”, lê-se num relatório do FBI. A fonte, neste caso, teria sido ninguém menos do que a escritora libertária Ayan Rand.

É uma forma legítima de se assistir ao filme, embora uma forma bastante pobre. Porque se há uma coisa que It’s a Wonderful Life promove é a ideia de um capitalismo ético baseado inteiramente no caráter, ou seja, sem que seja necessária qualquer intervenção do Estado nesse sentido.

Até por isso o filme contrapõe não um herói pobretão e um vilão milionário, e sim dois banqueiros. Bailey em nenhum momento se envergonha do dinheiro que ganha honestamente e que lhe garante uma vida confortável numa bela mansão que é a realização de um sonho de sua namoradinha de juventude transformada em esposa. Só que ele usa a riqueza gerada por seu trabalho para melhorar a vida da comunidade ao seu redor. Não porque haja uma lei determinando o investimento de uma porcentagem qualquer em obras sociais ou coisa do tipo. E sim porque ele acredita que isso é o certo a se fazer.

Já Potter, o banqueiro avarento, amargo, ganancioso e mau que serve como contraponto a Bailey, quer apenas acumular capital. Ele vê o mundo como uma selva no qual os espertos ganham e os outros são apenas vagabundos que merecem a miséria como destino. O capitalismo no qual ele acredita é aquele que se põe a destruir a concorrência sem outro motivo que não a satisfação vaidosa. Potter não representa algum vício inerente ao capitalismo; ele representa uma deformação do sistema manifestada em seu desejo de estabelecer um monopólio financeiro na pequena Bedford Falls.

Há algo de transcendente no ar

A mensagem de sacrifício e de capitalismo ético em It’s a Wonderful Life não teria a mesma força sem o elemento místico-religioso do filme. Sem jamais se pretender a um filme evangelizador, no suplício e redenção de George Bayle nota-se sempre a presença de um ente que não é deste mundo, representado primeiro por estrelas que dialogam no espaço e, depois, por um anjo guiado por seu desejo de conquistar, por virtude de seu trabalho, asas. Não à toa, o ponto alto da história se passa na noite de Natal que a cultura ocidental consagrou como uma época de celebrar o porvir.

Nada pode ser mais diferente do que o espírito atual de temor e desespero niilista, de descrença e de incapacidade de enxergar no outro algo que não um inimigo a ser vencido numa luta sem outro fim que não o prazer da vitória. Por isso mesmo It’s a Wonderful Life merece ser visto e revisto: para que se volte a acreditar no poder redentor do sacrifício, para que o caráter individual volte a orientar as relações entre as pessoas e para que “transcendência” deixe de ser uma palavra bonitinha num discurso esotérico e readquira seu sentido de original de busca por algo nobre, virtuoso e necessariamente intangível.

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