A notícia, a princípio, era esta: alguém quebrou o protocolo das plateias de música clássica e, no fim da apresentação da Maurerische Trauermusik (Funeral maçônico), de Wolfgang Amadeus Mozart, realizada pela orquestra da Handel and Haydn Society em Boston, gritou “uau”. Um grito que ecoou pela casa de espetáculos.
Apesar do aplauso do restante da plateia depois do grito, digamos, ousado, minha reação imediata foi de ojeriza. O grito de “uau” expressava – e, num contexto diferente, ainda expressa – a decadência da tal alta cultura. Algo que se vê rotineiramente em salas de concerto mais ou menos respeitadas, como a Sala São Paulo ou o Teatro Guaíra, onde as pessoas aplaudem no meio dos movimentos, atendem ao celular, tossem como se fossem tuberculosos e, se duvidar, até abrem embalagens de salgadinho.
Em entrevista à rede norte-americana CBS, David Snead, presidente e CEO da Handel and Haydn Society de Boston, fundada em 1815, disse que aquele grito de “uau” – um grito que, dava para perceber, era infantil ou feminino – tinha mudado a vida dele. E, novamente, senti a ojeriza subindo pela garganta com aquele inegável sabor de fel. Ali estava um representante da elite cultural se rendendo à vulgaridade de um grito.
Imediatamente me veio à cabeça uma leitura recente: Podres de Mimados - As consequências do sentimentalismo tóxico, de Theodore Dalrymple. No livro, leitura mais do que recomendada, o psiquiatra inglês fala, entre outras coisas, de como a nossa cultura tornou normais atitudes absolutamente vulgares (como o gritinho de “uau”, mas não só), tudo em nome da espontaneidade, do hedonismo despudorado e até mesmo da luta de classes. Imaginei Snead como o burguês culpado à frente da orquestra opressora se rendendo ao urro da plateia – a porção oprimida e de algum modo proletária da equação.
Depois do “uau”, David Snead se pôs a procurar o dono da voz que quebrou o protocolo e que teria mudado sua vida. Ele enviou um e-mail a todos os presentes – o que só foi possível porque a plateia deste tipo de espetáculo se restringe a uns poucos aficionados ou assinantes que permitem a sobrevivência de uma instituição como a Handel and Haydn Society – a terceira organização musical mais antiga dos Estados Unidos.
“Era como a história da Cinderela”, disse Snead à CBS, com aquele sorriso condescendente de quem sabe estar usando uma referência popular para se comunicar com alguém que não está à sua altura. E a comparação mais uma vez me causou desconforto.
Até que.
O Menino do Uau
A “Cinderela” de David Snead atende pelo nome de Ronan Mattin. Ele tem nove anos e foi levado ao concerto pelo avô, Stephen Mattin. Ronan tem autismo – e uma forma severa de autismo. O avô conta que Ronan vive a maior parte do tempo num mundo só seu, sem falar com ninguém. Ele é o chamado “autista não-verbal”.
A princípio, Mattin teve medo da reação da plateia diante da manifestação de maravilhamento do neto. Mas a plateia primeiro riu e imediatamente irrompeu em aplauso.
A reação do “Menino do Uau”, como Ronan ficou conhecido, é ainda mais impressionante levando-se em conta que o Funeral Maçônico, de Mozart, não é das músicas mais conhecidas do repertório do artista. Tampouco é o tipo de música que costuma criar empatia imediata no ouvinte, sobretudo em crianças. Em outras palavras, é uma obra extremamente sofisticada, para ouvidos apurados e educados, mais sombria do que melancólica.
Cientistas sabem há algum tempo que a música ajuda autistas não-verbais a se comunicarem. Com Ronan Mattin não é diferente. Tanto que seu avô passou a levá-lo a concertos com frequência, notando que, logo depois da apresentação, o neto passava semanas obcecado pela música e tudo o que a cercava.
Depois do “uau” que rodou o mundo, Ronan Mattin se tornou convidado de honra da Handel and Haydn Society – e o avô disse que pretende levá-lo a todos os concertos possíveis.
“Policiais do silêncio” e autocrítica
Levar ou não crianças a concertos é sempre motivo de debate. A Orquestra Sinfônica do Paraná recomenda que crianças sejam, sim, levadas a assistir a esse tipo de espetáculo, desde que os pais sigam algumas recomendações, como se sentar na parte dos fundos e nas laterais e instruir a criança quanto à importância do silêncio e dos aplausos nas horas apropriadas.
Como nem tudo são flores, houve quem usasse o caso excepcional de Ronan Mattin para criticar a “elitização das salas de concerto” pelo mundo. O comentarista político canadense Paul Wells, por exemplo, viu no “uau” do menino uma oportunidade para criticar aqueles que ele chama de “policiais do silêncio” nos teatros – pessoas que torcem o nariz não só para manifestações espontâneas de arrebatamento, mas também para tossidas, pessoas que ficam se remexendo na poltrona e, claro, aplausos entre os movimentos.
Para mim, restou a autocrítica: nem toda história de um gesto espontâneo e que vai contra as regras estabelecidas é necessariamente revolucionário, vulgar ou algo que pretende rezar pela cartilha do politicamente correto. Às vezes um “uau” é apenas isso: o enlevo de um menino que não se deixa tocar, mas que foi tocado pela música de Mozart.
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