Comunal "cidadã, operária, missionária, camponesa, feminista, jovem, estudante, indígena" e "profundamente chavista". Assim é a Assembleia Nacional Constituinte proposta — ou melhor, ordenada — por Maduro para "garantir a paz" na Venezuela. Depois de "muito refletir", ele decidiu que é necessário transformar o Estado e a Constituição que impulsionou seu pai político, Hugo Chávez. A medida foi anunciada para as câmeras de televisão, e algumas dezenas de pessoas vestidas de vermelho, agrupadas na Avenida Bolívar, em Caracas. Sua declaração alcançou o objetivo de alterar a agenda pública, e se tornou uma ameaça que levantou dúvidas legais e as mais diversas reações de rejeição.
É importante ter em mente algumas chaves para compreender suas possíveis implicações.
Excluir o povo descontente das decisões
Maduro entende que, como presidente, como "chefe de Estado e líder revolucionário", pode dispor e impor um processo constituinte. A carta magna oferece, sim, a possibilidade de uma Assembleia Nacional Constituinte para "transformar o estado, criar uma nova ordem jurídica e redigir uma nova Constituição"; ela também prevê que, entre outros, o Presidente tem a "prerrogativa de a convocar". Mas é enfática quando afirma que "... o povo da Venezuela é o depositário do poder constituinte original," e que só o povo pode exigir a reforma do Estado. O presidente é apenas uma ferramenta para ajudar a materializar a sua vontade.
Sem apoio popular, sem consulta via referendo, e sem ninguém pedir para ele, Maduro convoca um conjunto de 500 membros designados pelos "setores" da sociedade, grupos e associações identificadas por ele e seu partido como "representativos"; e por figuras do "Poder Popular", não previstas na Constituição, e controladas diretamente pelo presidente, como os conselhos comunais e comunas. Na sua proposta de constituinte, ele parece excluir a possibilidade de selecionar os membros que criarão o novo Estado através do sufrágio direto, universal e secreto.
O deputado da Assembleia Nacional Freddy Guevara caracteriza a constituinte do Maduro como "uma eleição em que não é o povo que decide o que é o Estado, mas o Estado que decide quem é o povo." De fato, como parte da medida, Maduro vai definir e informar ao Conselho Nacional eleitoral as "bases eleitorais" da chamada.
O advogado constitucionalista José Ignacio Hernández, disse que a Assembleia Nacional Constituinte tal como é concebida na Constituição "não é feita apenas por determinados setores, tais como a classe operária e outras instâncias do chamado Poder Popular...é composta de cidadãos que, por meio do sufrágio universal direto e secreto, são eleitos constituintes, além da 'classe' a que pertencem".
Evitar eleições
As motivações expressas por Maduro de "alcançar a paz", de não desejar uma "guerra civil", e "dar ao povo o poder que Chávez lhe deu", são as motivações aparentes, mesmo com o apoio dos seus porta-vozes e aliados. "Nosso Pdte. @NicolásMaduro chamou à mais geral das eleições; para rever tudo e legitimar poderes”, disse em Twitter Francisco Arias Cárdenas, o governador chavista do estado Zulia. No entanto, para muitos, é claro que o Maduro só está evitando se submeter ao voto dos venezuelanos.
Analistas e políticos da oposição concordam que, no melhor dos casos, o seu apelo a uma constituinte é um mecanismo para levar ao país a um processo que dilate as eleições pendentes (regionais e municipais), e a eleição geral que exigem os venezuelanos. "Enquanto este processo é realizado, são suspensas as eleições regionais, locais e presidenciais em 2017 e 2018. Com isso o governo pretende evitar seu maior medo", diz o economista e consultor de opinião pública Luis Vicente León.
Consolidar o golpe de março
Eles também concluem que a convocação quer consolidar o golpe que começou com as decisões do TSJ (Tribunal Superior de Justiça), que aboliram as funções do Parlamento em março. Lê-se como uma espécie de voo para a frente, uma "ficha limpa" para estabelecer um corpo de governo gerenciável e servil aos seus caprichos, capaz de correr sobre o parlamento eleito em 2015. Na verdade, a Constituição estabelece que os poderes constituídos (como o Parlamento) "não podem de forma alguma impedir as decisões da Assembleia Nacional Constituinte." A “Constituinte Comunal” do Maduro poderia ser uma maneira de se perpetuar no poder, mudar as regras, e torná-las ainda mais precárias e ambíguas, tudo sem um único voto dado pelo povo.
Ficar no poder
Maduro disse claramente em seu anúncio: "...precisamos transformar o Estado, especialmente a apodrecida Assembleia Nacional que está lá." Esse é um dos objetivos principais. E o mais provável, o governo vai prosseguir com a convocação, a instalação da assembleia e a criação de um novo Estado feito à medida. O poder Judicial não se oporá. Mesmo quando o Parlamento rejeitou formalmente o pedido de Maduro; mesmo com protestos continuados na rua; mesmo sem a participação no processo de setores da oposição política.
Henrique Capriles Randoski, maior nome da oposição venezuelana, pediu ao povo venezuelano que desobedecesse a chamada e "qualquer ação do governo", e desafiou Maduro a consultar abertamente o povo com um referendo se deve ou não continuar o atual governo. "O que querem os venezuelanos? Nova Constituição? Ou novo governo? ”, perguntou em seu programa semanal de rádio e redes sociais, “Pergunta Capriles”.
Ele acredita que se Maduro insiste em instalar uma "Assembleia Nacional Constituinte Comunal" e aprovar uma constituição independentemente da vontade do povo venezuelano, o resultado será a anarquia total. Os venezuelanos já começaram a reagir trancando as ruas, impedindo a circulação de veículos, e continuando com os protestos.
Em um momento em que todos os venezuelanos estão interpretando a Constituição, está por se definir qual interpretação é a que vai prevalecer. A lógica dita que o nosso direito de rejeitar uma assembleia constituinte nacional, e o nosso desejo de mudar o governo, deve estar acima do direito de um presidente impopular ficar no poder.