Desde 1889, Le Grand K, um elegante cilindro metálico de platina iridiada, reina de seu cofre subterrâneo em Paris. Ele era a definição de um quilograma de massa – um monarca absoluto. Cientistas de todo o mundo fizeram peregrinações para visitá-lo, trazendo consigo seus padrões nacionais para comparação.
"A nave-mãe nunca está errada", disse Robert Vocke Jr., químico do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia em Gaithersburg, Maryland.
Não mais. Na sexta-feira, em um pequeno centro de conferências próximo ao Palácio de Versalhes, vários países votaram pela derrubada de Le Grand K e pela redefinição do quilograma e de três outras unidades de medida padrão: o ampere, para corrente elétrica; o kelvin, para temperatura; e o mol, que descreve a quantidade de uma substância química. A votação realiza um sonho do século XVIII. Daqui para a frente, todas as sete unidades do Sistema Internacional de Unidades, também conhecido como SI, deixarão de ser definidas por objetos materiais, mas sim por constantes abstratas da natureza.
"Esse arco da história começou antes da Revolução Francesa, e agora acho que terminamos a jornada", disse Stephan Schlamminger, físico do NIST. A "democratização das unidades", disse ele, está completa agora.
O SI originou-se no final do século XVIII com apenas o metro e o quilograma. A ideia era padronizar as unidades básicas de comércio e medição científica. Afinal, para que um quilo de moedas de ouro mantivesse seu valor universal, todos teriam de concordar com a definição exata desse peso.
Em 1875, 17 nações haviam assinado o Tratado do Metro em Paris, que estabeleceu padrões internacionais para o metro e o quilograma. O primeiro foi definido como a distância entre dois pontos em uma barra de platina iridiada. O padrão do quilo era Le Grand K. Os dois artefatos seriam armazenados de modo seguro no Bureau Internacional de Pesos e Medidas, com cópias distribuídas para vários países.
"Diziam que era 'para todos os tempos, para todos os povos'", contou Schlamminger.
Mas não foi. Um objeto físico pode ser danificado ou destruído. Os cientistas começaram a sonhar com unidades padrão que permaneceriam sempre constantes – padrões com definições que utilizam o tecido do universo.
O metro alcançou essa estatura em 1983, quando foi redefinido em relação à velocidade universalmente constante da luz. Os cientistas estimaram a velocidade da luz por séculos, mas só na década de 1970, após experimentos envolvendo lasers no vácuo, conseguiram determinar um número: exatamente 299.792.458 metros por segundo.
O metro foi assim definido: a distância percorrida por um feixe de luz em exatamente 1/299.792.458 de um segundo. (O segundo, outra unidade fundamental, foi definido em 1967 como a quantidade de tempo que um átomo de césio-133 leva para vibrar 9.192.631.770 vezes.) Na verdade, o metro não precisa mais ser medido; agora, ele pode ser determinado por demanda – "realizado", no jargão da metrologia.
O declínio do quilograma
Em 1990, os metrologistas descobriram que Le Grand K misteriosamente se tornou mais leve do que suas seis cópias oficiais, tendo perdido cerca de 50 microgramas. O padrão do quilo estava em apuros.
A missão para redefini-lo começou.
Ao longo dos anos, duas possibilidades se apresentaram: medir a massa exata de um quilograma em relação à força eletromagnética necessária para levantá-la, ou em relação ao número específico de átomos nela contidos. Mas, como ocorreu com o metro antes de 1983, nenhuma dessas definições vinculou o quilograma a constantes fundamentais.
A conexão apareceu na forma da constante de Planck, que converte o comprimento macroscópico da onda de luz em energia de fótons de luz individuais. Mas apenas experimentos adequados poderiam fornecer números aceitáveis dessas constantes para que se tornassem unidades sempre reais.
"Se não é possível fazer isso, a definição é inútil", disse Ian Robinson, do Laboratório Nacional de Física (NPL).
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Um método para redefinir o quilograma surgiu do trabalho de revisão do ampere, a medida padrão de corrente elétrica. Em 1975, Bryan Kibble, físico do NPL em Londres, recebeu a missão de melhorar um instrumento chamado balança de corrente. O dispositivo media a corrente elétrica em relação ao peso, mas sem muita precisão.
"Foi um trabalho duro", disse Anne Kibble, cientista aposentada do NPL e viúva de Bryan Kibble, que morreu em 2016.
Ele imaginou um aparelho diferente, que recebeu o nome de balança de Kibble após sua morte, e que eliminou muitas das fontes de imprecisão e erro que afetavam o original.
"Todas as dificuldades desapareceram", disse Robinson, que trabalhou com Kibble. Juntos, os dois construíram a primeira balança de Kibble do mundo, chamada NPL Mark I, na década de 1970.
Por volta dessa época, outros físicos descobriram dois novos efeitos mecânicos quânticos, que ligavam a constante de Planck com tensão e resistência elétricas. O instrumento de Kibble, inventado como uma maneira de medir a corrente elétrica em relação ao peso, sem querer se tornou uma maneira de medir também a constante de Planck.
Assim como com os experimentos que mediram a velocidade da luz, uma vez que a constante de Planck foi medida com extrema precisão, o papel da balança de Kibble pode ser usado para definir um quilograma no âmbito eletromagnético.
O Projeto Avogadro
Na mesma época, 966 quilômetros ao leste, Horst Bettin, físico do Physikalisch-Technische Bundesanstalt na Alemanha, tentava realizar o quilograma de um modo diferente: contando átomos.
Outra unidade padrão usada por cientistas, o mol, descreve aproximadamente quantas partículas estão contidas em uma quantidade dada de massa. Bettin percebeu que se conseguisse criar um cristal de silício excepcionalmente perfeito – ultrapuro, esférico e com uma estrutura atômica perfeitamente ordenada – que pesasse exatamente um quilo, e contasse os átomos em moles, poderia definir essencialmente um quilograma como um número específico de átomos de silício.
"Essa era nossa ideia. Seria muito mais simples do que com a constante de Planck", disse Bettin.
Na verdade, Bettin havia planejado um experimento que iria medir com precisão uma constante conhecida como número de Avogadro, que ditava que um mol de uma substância contém 6,22140857×1023 partículas como elétrons, átomos, íons ou moléculas. O número de Avogadro já havia sido estimado, mas, como a velocidade da luz, nunca fora medido com perfeição. (Hoje, a constante de Avogadro foi redefinida como 6,2214076×1023.)
A constante de Avogadro e a constante de Planck estão entrelaçadas nas leis da física de forma crucial. Ao determinar a constante de Avogadro, Bettin pode derivar a constante de Planck. E com a medida exata da constante de Planck, pode validar os resultados do trabalho de Kibble, e vice-versa.
O herdeiro do trono
Mas o quilograma não poderia ser redefinido até que os cientistas tivessem obtido a mesma resposta para as constantes de Planck e de Avogadro com sete casas decimais.
"O que chamamos de 'medição' é uma estimativa. Basicamente, você pode estimar qual é o valor verdadeiro. E o valor verdadeiro só o universo conhece", disse Schlamminger.
Esse feito levou 20 anos. Em 2008, o NPL encerrou o trabalho da balança de Kibble e vendeu o instrumento ao Conselho Nacional de Pesquisa do Canadá. Em 2014, as balanças do NIST e do NRC produziram números para as constantes de Planck e de Avogadro que batiam com os resultados do trabalho de Bettin.
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"É realmente um milagre, porque elas são completamente diferentes. Não têm nada em comum", disse Bettin, referindo-se às duas constantes.
A votação na sexta-feira determinou os valores das constantes de Planck e de Avogadro, liberando o quilograma de sua forma terrena. As quatro novas definições – para o quilograma, o ampere, o kelvin e o mol – terão efeito oficialmente após o Dia Mundial da Metrologia, em 20 de maio. A transição só será sentida nas fronteiras da ciência e da tecnologia; o resto do mundo nem vai notar.
"Ninguém vai perceber porque, se isso acontecer, significa que não fizemos nosso trabalho direito", afirmou Robinson.