Viralizou ainda na semana passada, dia 10, uma crítica ao clássico O Rei Leão, da Disney, escrita pelo professor de estudos culturais da Universidade de Utrecht Dan Hassler-Forest. No texto, publicado no prestigiado The Washington Post, Forest se permite um delírio semiológico de deixar qualquer Ariel Dorfman (autor do infame “Para Ler o Pato Donald”) no chinelo.
Forest descreve o universo de O Rei Leão como um pesadelo fascista no qual as hienas (negros e latinos) e Scar (homossexuais) são as minorias, Mufasa é Donald Trump e a trama toda não passa do velho conflito marxista entre opressores e oprimidos. No filme, que ganhou uma versão nova e hiper-realista, os “opressores” vencem, para o delírio da plateia adulta e infantil e para o desespero da esquerda radical.
Sobre a “análise” de Forest, o cronista João Pereira Coutinho disse que o texto, “além de ser uma interessante confissão de loucura, é também representativo da hiperpolarização que se abateu sobre tudo o que mexe”. É verdade. Vivemos uma crise de imaginação sem precedentes e tudo, até mesmo a historinha de um leãozinho que enfrenta adversidades para retomar seu lugar figurado como o rei da selva, é motivo para discussões ideológicas as mais rasas possíveis.
O que o professor de assuntos culturais na Holanda não percebe é que, ao descrever a floresta e as relações entre os animais em O Rei Leão como um grande teatro de exaltação ao fascismo, ele acaba por revelar os muitos méritos daquilo que a esquerda progressista tanto quer destruir: a tal da Civilização Ocidental judaico-cristã.
Sim, a natureza é fascista – tanto quanto podemos, pelo bem da argumentação, antropomorfizar o comportamento dos animais. A natureza é fascista porque o fascismo nada mais é do que um regime de força, no qual as relações são pautadas por outra coisa que não aquilo que se convencionou chamar de alma. O cineasta Terrence Malick percebeu isso muito bem no clássico Além da Linha Vermelha (1998), que usa a Segunda Guerra Mundial como pano de fundo para mostrar as pequenas e violentíssimas batalhas travadas todos os dias na natureza, não só entre os animais, mas também entre os elementos.
Se fôssemos tomados por uma loucura repentina e assistíssemos a O Rei Leão como uma espécie de documentário da National Geographic, teríamos diante de nós um espetáculo cruel e sanguinolento, sem espaço para qualquer esperança de redenção ou final feliz. Não, as hienas não são as minorias oprimidas; são animais carniceiros que competem ferozmente por um belo pedaço de zebra podre. Não, os leões não são felinos nobres que desfilam elegância pela savana; são feras que não poupam nem os próprios filhotes quando se trata de garantir a hierarquia imposta por seus instintos.
Em contraposição à selvageria fascista da floresta está justamente ela, a tão atacada Civilização, construída lentamente e a muito custo ao longo de milênios, e assentada em bases que têm por objetivo o convívio harmônico dos diferentes. A Civilização, com seus freios morais hoje tão questionados, serve exatamente para refrear os instintos carniceiros, violentos e selvagens que opõem eternamente hienas e leões, numa disputa irracional por um lugar de destaque na cadeia alimentar.
Regimes de força, isto é, regimes fascistas, privilegiam e exaltam o lado mais animalesco do ser humano, entre eles o medo. Ora, o que foi o fascismo stalinista senão a coroação do medo como forma de vida? E o maoísmo, que mandava as pessoas para um campo de trabalhos forçados só por praticarem a terrível e civilizada arte da jardinagem? E o nazismo? E o mussolinismo?
O fascismo, inclusive e principalmente o “fascismo intelectual” dessa besta-fera que é o pensamento de manada (sem trocadilho), despreza a harmonia e glorifica os conflitos como forma de se alcançar o que ele chama de paz, mas que não passa de uma versão bípede de um leão com os caninos pingando sangue e rugindo alto para garantir para si um harém de leoas.
O Rei Leão, em sua versão clássica ou na nova, é ligeiramente baseado em Hamlet, de Shakespeare – não por acaso um dos pontos altos da tal da Civilização. Tudo ali, até a maldade, ou melhor, sobretudo a maldade de Scar e das hienas,é retratado de modo a estabelecer uma distinção entre o comportamento humano (e civilizado) e o dos animais.
É curioso, ou melhor, elucidativo que Forest tenha enxergado fascismo nesta representação deliciosamente antropomorfizada das disputas de poder entre os animais. Me parece que, sem querer, ele acabou expondo um ponto crucial da visão de mundo da esquerda, sobretudo da esquerda mais histriônica: ela se acha capaz de resolver todos os problemas do mundo, nem que para isso tenha recorrer à mesma força que regia as relações humanas no tempo em que nos comunicávamos por grunhidos.
Nem que para isso tenha de ignorar os muitos avisos da história e até das fábulas da Disney para fazer a mesma escolha trágica de Hamlet e, no final das contas, promover uma carnificina que não levará a lugar nenhum.