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Liberdade de expressão

O rei que tentou banir os cafés para evitar que falassem mal do governo

Carlos II, rei da Inglaterra entre 1651 e 1685
Carlos II, rei da Inglaterra entre 1651 e 1685 (Foto: Reprodução)

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“A multiplicação de cafés no reino provocou efeitos maléficos e perigosos. Nestes espaços, tem havido a divulgação de informações maliciosas escandalosas, visando difamar o governo de Sua Majestade, e assim provocar distúrbios na paz do reino”.

Esse é um trecho da proclamação real foi publicada pelo jornal The London Gazette no dia 29 de dezembro de 1675. Estabelecia que os cafés do país não teriam mais autorização para abrir as portas, a partir do dia 10 de janeiro de 1676. O motivo, como o texto indica, era o temor que estes locais provocavam no rei Carlos II (1630-1685). Seriam espaços para produção de notícias falsas e reunião de pessoas que contestavam o governo. Portanto, não poderiam mais funcionar.

A reação popular foi a pior possível. Mesmo integrantes da corte, influentes junto ao monarca, fizeram lobby para que a medida fosse cancelada. De fato, a 8 de janeiro, dois dias antes de a decisão entrar em vigor, Carlos II voltou atrás. Nem foi a primeira vez: ele já havia tentado barrar as reuniões de teor político em cafés por duas vezes, em 1673 e 1674.

Em 1679, voltaria a considerar a possibilidade de retirar as licenças de funcionamento desses locais, novamente sem sucesso. Depois de sua morte, seu irmão e sucessor, Jaime II, voltou à carga, tentando emplacar uma lei contra reuniões de cunho político em cafés. Mais uma vez, a proclamação foi mal recebida.

Mas qual era, afinal, o problema dos cafés ingleses? Num momento em que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ameaça barrar as atividades do Telegram no Brasil, em pleno ano eleitoral, não é difícil entender o argumento dos reis Carlos II e Jaime II, 346 anos atrás: se um espaço de debates incomoda um gestor público, por que não fechá-lo, e assim cortar o suposto problema pela raiz? No caso do Telegram, o acesso chegou a ser bloqueado, e depois liberado. Na Inglaterra do século 17, há um motivo para as tentativas dos monarcas terem sido mal sucedidas.

Espaços democráticos

Antes de ser terra do chá, a Inglaterra descobriu o café. A bebida se tornou popular primeiro no século XVI, em Constantinopla. Espaços públicos para socialização, em que se consumia a bebida enquanto se negociava acordos comerciais e políticos, se tornaram populares. A moda chegou a Oxford em 1650. Em Londres, o primeiro estabelecimento do gênero surgiu em 1652.

Os locais tinham mesas amplas, com cadeiras lado a lado, onde homens das ciências, das artes e da política conversavam enquanto liam os jornais. Nessa época, a imprensa florescia, alimentando os debates na mesma medida em que jornalistas também frequentavam os cafés em busca de notícias. Rapidamente, este ambiente tomou o espaço de locais mais formais, como as cortes e as academias, onde os relacionamentos seguiam uma relação de hierarquia. E isso incomodou profundamente o governo local.

“Apesar de carregar um ar de distinção, que os diferenciavam de outros locais, como as tavernas, os cafés eram associados com a disseminação de rumores e notícias falsas entre a população em geral, além de abrigar reuniões de pessoas insatisfeitas com o governo”, escreve o historiador Brian Cowan, autor de The Social Life of Coffee: The Emergence of the British Coffeehouse, em artigo sobre o tema.

Não apenas se discutia política nos cafés, como também filosofia, e não apenas na Inglaterra. Alguns dos nomes mais importantes da época, como Voltaire (1694-1778), Jean Jacques Rousseau (1712-1778) e Isaac Newton (1643-1727) eram frequentadores assíduos desses espaços.

De sua parte, Carlos II não foi o único a lutar por barrar esses espaços de diálogos democráticos. Tentativas semelhantes, também mal sucedidas, aconteceram, por exemplo, nas repúblicas que posteriormente formariam a Alemanha. Mas o monarca inglês tinha uma motivação pessoal adicional para se incomodar tanto com os cafés.

Monarquia em crise

Nascido em 1630, filho de Carlos I, Carlos II passou boa parte da vida no exílio. Seu pai havia assumido o governo em 1625, envolveu-se numa guerra civil em 1642, perdeu o posto em 1645 e foi executado em 1649. Carlos II só retomaria o poder em 1660, quando a Inglaterra voltou a ser regida por uma monarquia — fez questão de exumar o corpo de Oliver Cromwell, o governante que mandou matar seu pai e havia falecido em 1658, e exigir uma decapitação no cadáver.

O fato de que havia, no reino, centenas de espaços para líderes se reunirem para falar mal do governo, portanto, apenas aumentava a natural sensação de insegurança institucional do monarca, assim como de seu irmão e sucessor.

Com o passar das décadas, o café começou a perder a força para o chá, que se tornou a bebida não alcoólica de preferência dos britânicos. Mas o hábito de reunir pessoas para dialogar de forma livre se manteve. “No longo prazo, a coroa relutantemente aprendeu a conviver com os cafés”, explica Brian Cowan. Fica a lição para o Judiciário brasileiro.

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