Conhecido como o “mestre das estatísticas”, o cientista e analista político tcheco-canadense Vaclav Smil acaba de ter seu livro mais recente publicado no Brasil.
Em ‘Como Mundo Funciona: Um Guia Científico para o Passado, o Presente e o Futuro’ (Editora Intrínseca), ele investiga o que as tecnologias modernas são ou não capazes de fazer em prol da sobrevivência da humanidade. Da produção de energia à de alimentos, passando pelo mundo material, as consequências da globalização e a questão ambiental.
Em um capítulo intitulado “Comer combustíveis fósseis”, Smil dá uma notícia que certamente vai desagradar os defensores radicais da “causa orgânica”. Leia a seguir.
O mundo de oito bilhões de pessoas pode se alimentar sem o uso de fertilizantes sintéticos e outros agroquímicos e, ao mesmo tempo, manter ampla variedade de produtos agrícolas e animais e a qualidade das dietas predominantes?
Poderíamos retornar ao cultivo puramente orgânico, contando com resíduos orgânicos reciclados e controles naturais de pragas, e produzir sem a irrigação motorizada e as máquinas agrícolas, trazendo de volta o uso dos animais de tração?
Sim, poderíamos, mas a agricultura puramente orgânica exigiria que a maioria de nós abandonasse as cidades, retornasse ao campo, desmontasse as operações centrais de alimentação de animais e levasse todos eles de volta às fazendas para usá-los como mão de obra e fontes de esterco.
Todos os dias teríamos que alimentar e dar água aos nossos animais, remover regularmente o seu esterco, fermentá-lo para depois espalhar nos campos e cuidar de manadas e rebanhos no pasto.
À medida que as demandas de trabalho sazonal aumentassem e diminuíssem, os homens guiariam os arados atrelados às parelhas de cavalos, mulheres e crianças fariam o plantio e capina das hortas, e todos estariam contribuindo durante a colheita e o abate, empilhando feixes de trigo, desenterrando batatas, ajudando a transformar porcos e gansos recém-abatidos em comida.
Eu não imagino as pessoas que postam comentários on-line defendendo as causas orgânica e verde aderindo a essas opções tão cedo. E, mesmo que eles estivessem dispostos a esvaziar as cidades e abraçar a vida orgânica, ainda assim seriam capazes de produzir apenas comida suficiente para sustentar menos da metade da população global de hoje.
Os números para confirmar tudo isso que mencionei não são difíceis de calcular. A redução do trabalho humano necessário para produzir o trigo nos Estados Unidos é um excelente indicador do impacto geral que a mecanização e os agroquímicos tiveram no tamanho da força de trabalho agrícola do país.
Entre 1800 e 2020, reduzimos em mais de 98% a mão de obra necessária para produzir um quilo de grão e diminuímos na mesma proporção a parcela da população norte-americana envolvida na agricultura.
Isso serve como uma referência útil para as profundas transformações econômicas que teriam que ocorrer com qualquer recuo da mecanização agrícola e redução do uso de agroquímicos sintéticos.
Quanto maior a redução desses serviços baseados em combustíveis fósseis, maior a necessidade de que a força de trabalho deixe as cidades para produzir alimentos à moda antiga.
Durante o pico do número de cavalos e mulas nos Estados Unidos antes de 1920, um quarto das terras agrícolas era dedicado ao cultivo de ração para os mais de 25 milhões de equinos do país — e naquela época as fazendas dos EUA tinham que alimentar apenas cerca de 105 milhões de pessoas.
Obviamente, alimentar as mais de 330 milhões de pessoas de hoje com “apenas” 25 milhões de cavalos seria impossível. E, sem fertilizantes sintéticos, a produção de alimentos e rações dependentes da reciclagem de matéria orgânica seria apenas uma fração da colheita de hoje.
O milho, a maior cultura dos Estados Unidos, rendeu menos de 2 toneladas por hectare em 1920, contra 11 toneladas por hectare em 2020.
Milhões de animais de tração a mais seriam necessários para cultivar praticamente todas as terras agrícolas disponíveis no país, e seria impossível encontrar matéria orgânica reciclável o bastante ou cultivar áreas suficientemente grandes de adubos verdes (fazer a rotação do plantio de grãos com alfafa ou trevo) para alcançar os nutrientes fornecidos hoje pelas aplicações de fertilizantes sintéticos.
É mais fácil explicar isso por meio de algumas comparações simples. A reciclagem de matéria orgânica é sempre muito desejável, pois melhora a estrutura do solo, aumenta seu conteúdo orgânico e fornece energia para inúmeros micróbios e invertebrados do solo.
Mas o teor muito baixo de nitrogênio da matéria orgânica significa que os agricultores têm que aplicar grandes quantidades de palha ou esterco para fornecer o suficiente desse nutriente essencial para as plantas em busca de uma boa produtividade nas colheitas.
O teor de nitrogênio das palhas de cereais (o resíduo agrícola mais abundante) é sempre baixo, em geral de 0,3% a 0,6%; já o teor do estrume misturado com a forragem animal, normalmente palha, fica entre 0,4% e 0,6%; o dos dejetos humanos fermentados (conhecido na China como “solo noturno”), entre 1% e 3%; e o dos estrumes aplicados nos campos raramente passa de 4%.
Em comparação, a ureia, hoje o principal fertilizante sólido nitrogenado no mundo, contém 46% de nitrogênio; o nitrato de amônio tem 33%; e as soluções líquidas mais usadas, entre 28% e 32%, pelo menos uma ordem de magnitude mais rica em nitrogênio do que os resíduos recicláveis.
Isso significa que, para fornecer a mesma quantidade do nutriente às culturas em crescimento, um agricultor teria que aplicar em qualquer lugar entre dez e 40 vezes mais estrume por volume — e, na realidade, seria necessário ainda mais, pois partes significativas de compostos nitrogenados são perdidas por volatilização ou dissolvidas em água e levadas abaixo do nível da raiz, tornando as perdas agregadas de nitrogênio da matéria orgânica quase sempre maiores que as de um líquido ou sólido sintético.
Além disso, haveria uma demanda de mão de obra mais do que proporcional, pois o manuseio, o transporte e a dispersão de esterco são muito mais difíceis do que lidar com grânulos pequenos e de fluxo livre que podem ser facilmente aplicados por espalhadores mecânicos ou simplesmente lançados à mão, como é feito com a ureia em pequenos campos de arroz asiáticos.
E, a despeito do esforço que possa ser feito na reciclagem orgânica, a massa total de materiais recicláveis é pequena demais para fornecer o nitrogênio exigido pelas lavouras de hoje.
O estoque global de nitrogênio reativo mostra que seis fluxos principais levam o elemento até as terras agrícolas do mundo: deposição atmosférica, água de irrigação, aração de resíduos agrícolas, espalhamento de esterco animal, nitrogênio deixado no solo por leguminosas e aplicação de fertilizantes sintéticos.
A deposição atmosférica — sobretudo na forma de chuva e neve contendo nitratos dissolvidos — e os resíduos agrícolas reciclados (palhas e talos de plantas que não são removidos dos campos para alimentar os animais ou queimados no local) contribuem cada um com cerca de 20 megatons de nitrogênio por ano.
O estrume de animais aplicado nos campos, principalmente de gado, porcos e galinhas, contém quase 30 megatons; um total semelhante é adicionado por culturas de leguminosas (culturas de cobertura de adubo verde, bem como soja, feijão, ervilha e grão-de-bico); e a água de irrigação traz cerca de cinco megatons — para um total de cerca de 105 megatons de nitrogênio por ano.
Os fertilizantes sintéticos fornecem 110 megatons de nitrogênio por ano, ou um pouco mais da metade dos 210 a 220 megatons usados no total.
Significa que pelo menos metade das recentes safras globais foram produzidas graças à aplicação de compostos nitrogenados sintéticos e que, sem eles, seria impossível produzir os alimentos que hoje dominam a dieta de metade das oito bilhões de pessoas.
Embora fosse possível reduzir nossa dependência em relação à amônia sintética comendo menos carne e desperdiçando menos comida, substituir o uso global de cerca de 110 megatons de nitrogênio em compostos sintéticos por fontes orgânicas só poderia ser feito em teoria.
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