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Liberdade de expressão

O sistema de crédito social da China pode chegar ao Ocidente?

Cena do episódio "Nosedive", da série Black Mirror: como seria se o sistema de crédito social da China chegasse aqui? (Foto: Reprodução)

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Disponível na Netflix desde 21 de outubro de 2016, o episódio "Nosedive", da série Black Mirror, é um dos mais conhecidos produtos da cultura popular a retratar, de forma quase profética, o trágico rumo de uma humanidade que se vendeu por completo às redes sociais. A distopia estrelada por Bryce Dallas-Howard (Jurassic World) ilustra um mundo no qual a reputação digital - medida em curtidas, comentários e interações positivas - se tornou, literalmente, a principal moeda de troca entre os indivíduos, cujo acesso a quaisquer bens materiais (casas, carros, restaurantes) é condicionado à pontuação obtida em um aplicativo oficial.

Qualquer semelhança com o sistema de crédito social da China seria mera coincidência? Embora os criadores da série nunca tenham dito nada a respeito, é difícil não traçar paralelos entre o universo de "Nosedive" e o sistema de vigilância em massa que opera às claras na segunda maior economia do mundo: uma gigantesca base de dados que monitora e avalia a confiabilidade de indivíduos, empresas e entidades governamentais, permitindo que cidadãos reportem uns aos outros e cedendo aos gestores o poder de determinar quem compra uma passagem de avião e quem entra na "lista negra" do governo – a ponto de quem telefonar ou tentar entrar em contato com uma destas pessoas ser avisado da “periculosidade” do interlocutor. Do lado de cá do mundo, o suposto paraíso das democracias liberais, a mera existência de um mecanismo deste tipo deveria causar a ojeriza que se sente ao assistir à ficção científica. Mas quão longe o Ocidente está, na verdade, de ter o seu próprio sistema de crédito social?

Para o empresário David Sacks, um experiente investidor de tecnologia nos Estados Unidos, com negócios com o Facebook, Twitter, Airbnb e Uber no currículo, a resposta para esta pergunta chega quase tarde demais: o Ocidente já tem sua própria versão do sistema de créditos, ainda que em versão "soft". A diferença é que, no lugar do Partido Comunista Chinês e das intenções declaradas de seu líder, Xi Jinping, de "fortalecer a identidade nacional chinesa" e fomentar uma "cultura de confiança", quem estaria no controle por aqui são os grandes conglomerados tecnológicos, as Big Techs, e seus oligarcas movidos por um admirável desejo de promover a justiça social - desde que sem prejuízos para seus negócios bilionários e, quase sempre, passando por cima das crenças, dos votos e, no limite, da liberdade de expressão dos que não integram a "elite" intelectual (e, quase sempre, representam a classe trabalhadora).

Em entrevista ao podcast da jornalista Bari Weiss, editora dissidente do The New York Times, Sacks argumenta que, na contramão da promessa de mais liberdade, descentralização de poder e acesso à informação representada pela internet nos idos de 2010, o espaço digital se transformou em uma arena dominada por um “cartel do discurso” capaz de operar um sistema análogo ao modelo chinês, ainda mais “suave”. "Vamos começar definindo o que é um sistema de crédito social. Trata-se de um sistema que finge te dar liberdades civis e que não vai te mandar para um gulag por expressar uma opinião. Você não perde por completo o acesso à sociedade, mas seus benefícios são condicionados a ter as 'opiniões certas'. Essa é a situação para a qual estamos caminhando", explica.

O ponto da virada, para Sacks, teria sido a eleição de Donald Trump em 2016, o primeiro grande evento a desagradar o Vale do Silício a ponto de levá-lo a disseminar a ideia de que as eleições não eram um reflexo da vontade popular, mas de “desinformação russa”, engenharia tecnológica, etc. Em poucos anos, viriam os primeiros banimentos a figuras controversas à direita. Até 2020, quando o caso Hunter Biden e a hipótese da origem laboratorial do Sars-CoV-2 serem sumariamente deletados das redes como “desinformação”, até se provarem reais.

"Um cartel é um termo econômico que se refere a companhias que deveriam competir entre si atuam em conjunto, criando um monopólio. Acho que é uma definição melhor do que está acontecendo com a liberdade de expressão: há um cartel do discurso. Todas (essas empresas) expulsam as mesmas pessoas de suas plataformas. Então, ainda que elas devessem competir umas com as outras e que essa competição as levasse a atrair um público cada vez maior, elas continuam expulsando", diz Sacks.

A vigilância racial "do bem" 

Para chegar ao sistema de crédito social da China, basta transpor este cenário para um mundo pós-pandêmico no qual a internet e, principalmente, as redes sociais aumentaram sua relevância econômica ao se tornarem a tábua de salvação para comerciantes, empresários autônomos, trabalhadores freelancers, entre outros profissionais. Some-se a isto a crescente guerra tecnológica entre a China e os Estados Unidos que, paradoxalmente, importam tecnologias de vigilância utilizadas pelo Partido Comunista.

Um exemplo recente exposto pelo jornal The Guardian é a adoção de câmeras inteligentes para identificar alunos sem máscara nas escolas americanas. Outro é o sistema de recomendações adotado pela Yelp, um aplicativo de avaliação de restaurantes e pequenos negócios.

À primeira vista, a ação parece uma campanha bem-intencionada para promover a almejada justiça social. Na prática, abre um flanco para a exclusão ideológica. Ao abrir o perfil de um restaurante no Yelp, o leitor pode se deparar com a mensagem: “negócio acusado de comportamento racista”. O problema está em definir o que raios é um comportamento racista: se se trata, de fato, de sucessivos episódios de discriminação, ou de um atendente que explicou a um cliente negro que o banheiro do local é destinado apenas ao quadro de funcionários - como aconteceu com um Starbucks. Ou, quem sabe, o dono do estabelecimento apenas não se submeteu a nenhum curso de “letramento racial” e continua a usar o verbo “denegrir” com o significado que sempre teve – macular a reputação de alguém - antes da polícia das palavras entrar em cena.

A denúncia foi feita em 2020 pela jornalista Melissa Chen, em reportagem para o The Spectator. Em entrevista à Gazeta do Povo durante o Fórum da Liberdade, quando esteve no Brasil, Chen mencionou o caso como uma aplicação prática do sistema de crédito social “soft” do Ocidente.

“Na realidade, o Yelp está introduzindo um sistema de crédito social rudimentar que sujeita os empresários aos caprichos das guerras culturais. Ciente da controvérsia, o Yelp já se envolveu em ações judiciais alegando que o aplicativo forçou as empresas a pagar por publicidade em sua plataforma e reteve críticas positivas até que elas cedessem”, escreve Chen. “Ao inserir um aviso oficial baseado em nada mais do que uma acusação de comportamento racista, o Yelp está aumentando os incentivos perversos para fundamentar as críticas. Simplesmente não há como saber se uma empresa é vítima de falsas acusações, especialmente devido ao ritmo frenético das postagens nas mídias sociais”.

“Por que você está sinalizando a raça do dono do de um negócio ou suas convicções políticas? É um sistema de crédito social, só que vem de baixo para cima. Em teoria, o liberalismo deveria servir para que as pessoas não fossem definidas por esse tipo de coisa. Não estou dizendo que devemos ficar cegos para os problemas raciais, mas não é o tipo de coisa com a qual devíamos nos importar na hora de escolher um restaurante. Eu não preciso saber com quem o proprietário dorme”, disse Chen à Gazeta do Povo.

Pagamentos negados e o “projeto-piloto” do Canadá 

Há casos em que a versão ocidental do sistema de crédito social já alcança o bolso de suas vítimas: Sacks recorda que, em janeiro do ano passado, o PayPal bloqueou um site de crowdfunding cristão que arrecadou dinheiro para levar manifestantes a Washington. No mês seguinte, a plataforma anunciou que estava trabalhando com o Southern Poverty Law Center (SPLC) para banir usuários. Esta semana, a empresa anunciou que está em parceria com a Liga Anti-Difamação (ADL) para investigar e encerrar contas que a ADL classifica como “extremistas”: a mesma ADL que já defendeu a liberdade de expressão absoluta e, atualmente, se opõe à indicação de juízes conservadores para a Suprema Corte por “hostilidade à liberdade reprodutiva”, o novo apelido do “discurso de ódio” e pediu que a Fox News demitisse o apresentador Tucker Carlson. Como de costumea, em “discurso de ódio” cabe tudo e qualquer coisa.

“Não desejo defender grupos genuinamente odiosos ou extremistas. De fato, quando eu era chefe de operações no PayPal, trabalhávamos regularmente com as autoridades para restringir atividades ilegais em nossa plataforma. Mas estamos falando de algo muito diferente aqui: trata-se do bloqueio de pessoas e organizações que expressam opiniões totalmente legais, mesmo que sejam impopulares no Vale do Silício”, diz Sacks. Eis que, em fevereiro deste ano, o Ato Emergencial decretado pelo presidente do Canadá, Justin Trudeau, contra os caminhoneiros que se opunham à obrigatoriedade das vacinas para Covid-19 acabou por funcionar como um “projeto piloto” do sistema em seu “perfeito” funcionamento.

“Um dos aspectos mais indefensáveis do que Trudeau fez é que o congelamento de contas foi feito retroativamente. O problema é que na época em que os manifestantes se engajaram em seus atos de desobediência civil ou receberam doações, era uma atividade perfeitamente legal. (...) Em outras palavras: qualquer pessoa que tivesse opiniões que Justin Trudeau acreditasse serem inaceitáveis poderia ser retroativamente submetida a essa punição”, alerta o empresário.

Para combater este sistema, segundo o especialista, urge o renascimento de um Partido Republicado capaz de enfrentar não apenas as forças do Estado, mas os conluios entre as grandes corporações. “Isso exigirá que o partido adote uma postura historicamente incomum, que é o de propor a regulação de empresas privadas. É preciso retornar a Teddy Roosevelt, que (...) defendeu os direitos do homem comum contra o poder desses monopólios gigantescos”, avalia.

Para Chen, a saída está na conscientização do público e no boicote progressivo às plataformas que adotam estas políticas. “Ainda dá tempo de reverter o cenário. Se os consumidores não entrarem na lógica das resenhas, temos uma chance. O ponto é: como coordenar isso? Como fazer com que as pessoas evitem o Google? Penso que há um caminho, mas falta alguma vontade”.

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