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A mentalidade vitimista prevalece em nossa sociedade. É evidente a excessiva inclinação das pessoas em se enxergarem como vítimas e atribuírem a causas externas a responsabilidade por suas próprias dificuldades. Se a pessoa enfrenta dificuldades em conquistar o sexo oposto por conta de sua obesidade mórbida, culpa os padrões de beleza artificiais da sociedade ocidental. Da mesma forma, a causa do vício em drogas é atribuída exclusivamente a um ambiente familiar desestruturado, e a falta de progresso na vida é associada à culpa do sistema capitalista. Essas ênfases comprometem a capacidade individual de assumir responsabilidade e buscar ativamente soluções, representando, assim, um perigo tanto para o indivíduo quanto para o tecido social como um todo.
Quando cada grupo de indivíduos anseia por um redentor social, uma onda ideológica crescente se tiraniza, destinada a suprimir as singularidades em prol de identidades culturais coletivas. No entanto, ao solicitar a alguém que resolva seus problemas, concede-se poder a essa pessoa, permitindo-lhe ditar o curso de sua vida e comprometendo a própria liberdade. Nesse contexto, cada uma das identidades grupais reclama um "lugar de fala" exclusivo, que promete representar a essência singular de cada indivíduo contra as opressões sofridas.
Mas será que todos os oprimidos pensam do mesmo modo? Embora a resposta seja negativa, a intelligentsia sugere a necessidade de um pensamento crítico e uma reescrita da História, não mais sob a ótica dos "vencedores", mas a partir do ponto de vista do "povo". Contudo a questão persiste: quem constitui esse "povo" com interesses tão homogêneos? Como questionará padrões de beleza sem uma compreensão filosófica do que é o Belo? Afinal, é importante lembrar que grupos oprimidos, frequentemente menos instruídos formalmente, podem desconhecer princípios metafísicos e sua própria história. Como, então, poderiam contá-la? A única resposta possível é que os intelectuais de esquerda, autodenominados vítimas da sociedade, são os únicos autorizados a assumir esse papel narrativo.
Portanto, o que está em jogo vai além da mera representação do sofrimento individual; trata-se, antes, de uma narrativa coletiva que substitui as antigas e supostas vozes tirânicas, ao mesmo tempo em que dá origem a uma forma inédita de tirania. Não é por acaso que regimes autoritários, como o marxismo tradicional e o petismo de Lula, adotam essa estratégia de arrogar para si o entendimento dos reais interesses do povo oprimido. É notável que, à medida que as pessoas se percebem como vítimas, tornam-se mais suscetíveis à dominação de redentores sociais.
O messianismo político, porém, não consegue apascentar suas ovelhas, pois o ressentimento deixa as pessoas amargas e neuróticas. Elas tornam-se até perigosas, pois a constante sensação de vulnerabilidade as faz temer o sofrimento, a ponto de agir como animais aterrorizados — que mordem para que não sejam mordidos. Inúmeras histórias evidenciam essa verdade, isto é, que o medo do mal transforma as pessoas em malévolas também. É como alguém que não sabe nadar e, caso se afogue, afunda seu próprio salvador.
Shakespeare aborda esse drama universal em Macbeth, uma fonte de inspiração para 'Trono Manchado de Sangue', de Akira Kurosawa. O protagonista, Washizu, trai o imperador por temor de ser traído primeiro, perdendo a sua bondade como forma de autodefesa. Notavelmente, a covardia não deveria despertar somente compaixão nos outros, mas também profunda atenção. O covarde é aquele que suspeita até mesmo de uma criança, interpretando qualquer gesto inocente como sinal hostil, como o Bentinho de Machado que só se imagina sendo traído após pensar em trair.
Agora lembro da passagem do Evangelho em que Jesus convida seus discípulos a se aproximarem dele com as palavras: "Não tenhais medo!", sugerindo que o medo está ligado à vacilação do coração. A ideia é que o covarde não é apenas inativo e inofensivo, mas o lobo ferido que enxerga todo mundo como caçador, e, por isso, está pronto para usar suas garras contra qualquer um que cruzar seu caminho. Ele só percebe a maldade nos outros porque ela reside em seu próprio coração.
Por essa razão, a bondade e o amor não se coadunam com o medo, conforme expresso na primeira carta de São João. O amor é uma confiança e uma disposição benevolente para com nossos irmãos, fundamentadas na avaliação misericordiosa das circunstâncias, sem dar espaço à imaginação perniciosa. Daí a relevância do cultivo da razão, que nos capacita a discernir adequadamente as motivações humanas, aliado ao amor, que proporciona a sensibilidade necessária para contemplar a alma do outro.
A narrativa da Queda também revela o vitimismo como o antípoda da benevolência. Mesmo após o pecado, diante da fragilidade humana, o Criador se manifesta para o homem: “Comeste tu da árvore de que te ordenei que não comesses?” Nesse momento, Adão responde: “A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi.” Da mesma forma, o Senhor Deus indaga à mulher: “Por que fizeste isto?” A resposta dela é: “A serpente me enganou, e eu comi.” Esta narrativa ilustra uma pessoa atribuindo a culpa à outra, evitando a responsabilidade individual, o que simboliza como pessoas vitimistas se comportam ora como neuróticas, ora como delatadoras. A neurose de Adão está em saber da onisciência de Deus, mas se esconder no arbusto, e o caráter acusatório em culpar Eva, a quem deveria proteger, e o Criador, a quem deveria obedecer, por seu próprio erro.
O grande problema é que o vitimista acredita que o mundo lhe deve alguma coisa e julga merecer mais do que qualquer pessoa merece, sendo tentado ao ressentimento, que persiste na alma pelo resto da vida. Eis que, conceitualmente, o ressentimento é a “lembrança com animosidade dos males, das ofensas que sofreu (ou pensa que sofreu) como se as sentisse ainda.”
A moral da história é que não dá para depositar confiança em indivíduos que se apresentam como extremamente vulneráveis. Eles não são meramente inocentes; até mesmo um bebê demonstra coragem, e uma criança, sinceridade. Contudo, eles são ardilosos. O vitimista, em sua busca por um culpado para evitar responsabilidades, impiedosamente, se lhe for concedido espaço, é capaz de arrastar seu própro amigo para o papel de opressor. A percepção é de uma injustiça cósmica que lhe dá o poder de justificar todas as maldades — Eles dizem: "Não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor." — e gera um sentimento intenso de falta (daquilo que se acreditava ter por direito) e de injustiça (ao parecer menos aos outros do que se julga ser). O fruto dessa combinação de dores subjetivas é o ressentimento.
O ressentimento é o caminho pelo qual o vitimista se torna malevolente, ao contrário daquele que concede o perdão e reconhece a própria falha, estando apto a se resignar e se aprimorar. O resentido, ao contrário, procura reparar as supostas adversidades por meio do ódio, hostilidade ou vingança. No entanto, devido à sua covardia moral e paralisia existencial, ele apenas se queixa e acusa. Assim, no cotidiano, testemunhamos ressentidos lamentando as condições de trabalho sem esforçarem-se para se reinventar, ou queixando-se de perseguições sem serem perseguidos, exigindo reparações extravagantes que imaginam serem devidas. É comum, ainda, que exijam que todos aceitem suas idiossincrasias, enquanto não aceitam os valores de ninguém.