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Quando era um bebê que conseguia se sentar, mas ainda não engatinhar ou andar, Vladimir Ilyich Ulyanov tombava com muita frequência e dava cabeçadas recorrentes nas grades do berço. A família acreditava que o problema se devia ao tamanho da cabeça, desproporcional em relação a braços e pernas. Mas ele cresceu, e continuou se comportando de uma forma mais agressiva do que seus irmãos — entre os que não morreram com poucos dias de vida, ele era o terceiro; antes dele haviam nascido Anna e Alexander, e depois viriam Olga, Dmitri e Maria.
Em uma ocasião, em seu aniversário, ao ganhar dos pais um cavalinho de papel machê, correu para seu quarto. Foi encontrado sorrindo tranquilamente, sentado na cama, com os destroços do presente à sua volta. Com apenas três anos, destruiu uma coleção de cartazes de peças de teatro que o irmão Alexander havia disposto na sala, sobre o carpete.
“Havia uma certa maldade em seu comportamento, e a família se incomodava com isso”, relata o historiador britânico Robert Service em 'Lenin: A biografia definitiva', o principal relato biográfico escrito depois da liberação dos arquivos da União Soviética, nos anos 90 — e que lançaram nova luz sobre a vida do homem que, em última análise, fundou o regime socialista na Rússia e construiu as bases teóricas que deram suporte para o comunismo se espalhar pelo mundo ao longo do século 20.
Ataques de raiva
“Lenin” foi apenas um dos mais de 160 apelidos que ele adotaria ao longo da vida. Sua cidade natal, Simbirsk, localizada a 700 quilômetros de Moscou, foi rebatizada em homenagem ao líder em 1924. Mas o nome escolhido para o município foi Ulyanovsk, porque era assim que ele e a família tinham ficado conhecidos na região.
Identificada desde a primeira infância, a personalidade maldosa e agressiva de Lenin, que veio ao mundo em 10 de abril de 1870, permaneceu até o fim da vida. “Seus ataques de raiva eram lendários, especialmente depois de 1917”, relata o biógrafo. “Pouco antes de sua morte, eram tão frequentes que os companheiros levantaram sérias questões a respeito de sua sanidade mental. Ele era uma bomba relógio humana”.
Mas o futuro líder da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) conciliava os picos de agressividade com um certo charme seletivo, escolhido de acordo com o momento, e a capacidade de manipulação que o levou, ao longo da vida, a assumir os acertos para si e distribuir os erros para outras pessoas.
Somadas, essas duas qualidades impediram, por exemplo, que ele sofresse bullying na escola — o único colega que se atreveu a rasgar um de seus cadernos foi estrangulado em sala de aula. Mas permitiram que as mulheres de personalidade forte que o cercavam, incluindo as irmãs e a futura esposa, a revolucionária de primeira hora Nadezhda Krupskaya, mantivessem um convívio civilizado. “Era um manipulador de mulheres, tinha o hábito de colocar umas contra as outras”, afirma Service.
E também levaram Vladimir a assumir um papel de liderança no movimento russo de contestação ao czarismo desde o final do século 19 até a morte, aos 53 anos, em 21 de janeiro de 1924. Nesse quesito, também foi decisivo o ambiente em que ele foi criado. Seu pai, Ilya Nikolayevich Ulianov, era inspetor de ensino na província, um homem culto, retraído, ausente do convívio doméstico, que valorizava o ensino acima de tudo.
Mais sociável, e também dedicada a garantir a melhor formação acadêmica aos filhos, Maria Alexandrovna Blank incentivava todas as atividades culturais que as crianças adotassem. As crianças brincavam na sala lendo trechos de romances e poemas. Ganhava quem acertasse o autor. A família experimentava a típica vida de classe média russa da época, com a mãe contando com o apoio de babá, cozinheira e professores de piano.
“Lenin emergiu como um jovem extraordinariamente ambicioso e determinado, que acreditava na importância da palavra impressa”, conta Service, que lembra que, posteriormente, o líder precisaria, a muito custo, aprender a falar em público. O pai era cristão ortodoxo, a mãe, luterana de origem judaica, os dois críticos do czarismo, mas não a ponto de desejar mudanças radicais. Lenin poderia ter seguindo o caminho do pai, um intelectual influente, com cargos elevados e respeitados, mantendo uma posição de independência em relação à aristocracia. Tudo mudou quando Vladimir tinha 16 anos de idade.
Morte do irmão
Em janeiro de 1886, o pai faleceu, possivelmente como resultado de um derrame. Foi súbito, o médico da família não chegou a tempo, e os filhos ficaram em choque. A mãe precisou alugar metade da casa, além de fazer cortes no orçamento, enquanto via Vladimir piorar ainda mais seu comportamento — as agressões verbais contra ela se tornaram parte da rotina.
Meses depois, em primeiro de março de 1887, no aniversário de seis anos do assassinato do czar Alexander II, um grupo foi preso carregando bombas caseiras cheias de dinamite. Aparentemente, eles pretendiam detoná-las quando o imperador visitasse a igreja para orar pela alma de seu pai. O mentor do atentado, e responsável por fabricar as bombas, foi rapidamente identificado. Era Alexander, irmão mais velho de Lenin.
Em julgamento, não negou as acusações e defendeu a revolução socialista. Acabou enforcado, junto a quatro companheiros, a 8 de maio. Tinha 21 anos. Como era de se esperar, Vladimir, que admirava o irmão, ainda que até então não prestasse atenção a suas atividades políticas e jamais tivesse demonstrado interesse em conhecer pessoalmente os dramas da população pobre, foi profundamente marcado pelo acontecimento.
Teórico influente
A partir de então, tudo aconteceu muito rápido. Expulso da Universidade Imperial de Kazan, uma das oito instituições de ensino superior do país, por participar de manifestações contra o czar, ele se mudou para São Petersburgo em 1893. Quatro anos depois, seria preso e exilado na Sibéria, onde se casou. Dali, seguiu para a Europa Ocidental, onde experimentou um longo exílio e se tornou um teórico marxista respeitado — ao longo do século 20, o marxismo —leninismo se tornaria uma das ideologias mais influentes do planeta, que orientou as práticas e os conceitos de diferentes ditadores e líderes comunistas, de Mao Tsé-Tung a Che Guevara.
Tanto durante a tentativa de revolução de 1905, na Rússia, quanto durante a Primeira Guerra Mundial, Lenin permaneceria defendendo o papel dos bolcheviques para se apropriar destes movimentos e levar o comunismo para todo o continente. Desde aquela época, expressões como “insurreição armada”, “terror de massa” e “expropriação de terras nobres” já faziam parte de seus textos.
Em 1917, quando do início da Revolução Russa, Lenin estava na Suíça. Celebrou o acontecimento e começou a articular um retorno definitivo ao país natal. A partir de então, participou de forma decisiva da consolidação do comunismo no país, culminando com o surgimento formal da URSS em 1922.
Seu aniversário de 50 anos, em 1920, foi celebrado em todo o país, enquanto seus seguidores organizavam seus escritos, publicados inicialmente em 20 volumes. Ao fim da vida, já muito debilitado, tentou reduzir o poder de Stalin, sem sucesso — dizia-se em Moscou que, se não tivesse morrido e transformado em um mártir da revolução, eventualmente Lenin teria sido preso.
Viúva envenenada
Depois de três acidentes vasculares cerebrais, o líder morreu. Seu cérebro foi extraído para a realização de estudos e o corpo, desde então, permanecesse mumificado e exposto na Praça Vermelha, em Moscou — secreto, o procedimento de conservação do corpo seria utilizado também no corpo do líder vietnamita Ho Chi Minh e do ditador norte-coreano Kim Il-sung. Foi pioneiro na instauração de um culto à personalidade, que se tornaria prática padrão nas ditaduras comunistas.
Lenin não deixou filhos. Mas seu legado permaneceu, ainda que sua sombra permanecesse incomodando Stalin. Nadezhda Krupskaya, a viúva de Lenin e revolucionária de primeira hora, se tornou uma das principais vozes críticas ao ditador. Ainda assim, permaneceu fora do alcance do governante até 27 de fevereiro de 1939, quando faleceu, um dia depois de seu aniversário de 70 anos. O fim súbito, apesar da idade avançada, suscitou as suspeitas de que ela teria sido envenenada na véspera, quando reuniu alguns amigos próximos.
Como lembra o biógrafo, ao longo de toda sua trajetória, Lenin se manteve apegado ao próprio temperamento e à própria visão de mundo. “Desde a formulação de sua teoria sobre o marxismo, nos anos 1890, até a morte, houve poucas mudanças em sua maneira de pensar”, relata o biógrafo.
“Ele podia viver por anos em localidades distintas entre si, seja Londres, Zurique ou Moscou, e não captar insights sobre os arredores que poderiam parecer óbvios para outras pessoas. Ele acreditava em iluminismo, progresso, ciência e revolução, mas sempre com sua própria interpretação. Nada abalava a confiança de que suas ideias eram as certas”. Em resumo, “ele viveu e morreu um leninista”.
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