Samer Nazeer era um menino egípcio de 11 anos, que morava com a família na cidade de El-Kefah. Sempre sorridente, segundo os pais Mary Farag e Mark Nazeer, o menino lutou contra uma doença congênita até o dia 26 de julho de 2020, quando veio a falecer. A dor de perder seu “pequeno anjo”, como Samer era chamado pelos pais, só não foi maior do que a tristeza que o casal passou quatro dias depois do funeral, quando foram obrigados a retirar o corpo da criança de dentro do túmulo. O motivo: a família é cristã, e teria sepultado o caixão perto demais de um cemitério muçulmano na cidade.
A história de Samer é uma dentre os muitos casos de perseguição a cristãos pelo mundo reportados por organizações como a Portas Abertas. O relatório mais recente da ONG aponta que mais de 260 milhões de cristãos vivem em lugares onde existem altos níveis de perseguição contra os seguidores de Jesus. Nas contas da organização, cerca de 3 mil cristãos foram mortos durante o período do último levantamento, divulgado em 2018 – são oito mortes por dia. Oito pessoas que perdem a vida a cada 24 horas apenas por se mostrarem fiéis aos ensinamentos de Cristo.
Os números podem ser ainda piores, como denunciou em 2013 o observador permanente da Santa Sé nas Nações Unidas, monsenhor Silvano Maria Tomasi. Segundo ele informou à época, “investigações confiáveis” levaram à “conclusão chocante” de que “mais de 100 mil pessoas são mortas por ano, por motivos que têm alguma relação com sua fé”. Mas o problema da subnotificação, principalmente nos países onde a repressão contra os cristãos é mais ferrenha, torna difícil – às vezes impossível – obter os dados com mais precisão.
O Egito figura na 16ª. posição de uma triste lista elaborada pela ONG, a dos 50 países que mais perseguem cristãos no mundo – no topo da lista está a Coreia do Norte. Segundo a organização, dos mais de 101 milhões de habitantes do país de maioria muçulmana, pouco mais de 16 milhões professam a fé em Cristo. E grande parte desses cristãos, principalmente os que foram convertidos do islamismo, sofrem algum tipo de perseguição ou violência.
Como no caso da emboscada de novembro de 2018 a um ônibus que levava cristãos ortodoxos copta ao mosteiro de São Samuel Confessor, em uma área de deserto ao sul da capital Cairo. No ataque reivindicado pelo Estado Islâmico, sete pessoas morreram – seis da mesma família – e 19 ficaram feridas. Outro ataque parecido, em 2017, deixou 30 mortos.
Ou a série de incêndios contra igrejas copta em Cairo e nos arredores em novembro de 2019, quando três templos foram atingidos pelas chamas. Investigações locais apontam falhas elétricas e curto-circuitos como as causas mais prováveis, mas líderes religiosos descartam a hipótese e falam que em pelo menos um dos casos um objeto foi atirado contra o telhado de madeira da igreja. Mas nem mesmo a destruição provocada pelo fogo impediu os fiéis de comparecerem à missa, celebrada em meio aos escombros.
Voltando ao caso do menino Samer, o pai, Mark, percebeu que teria problemas quando foi registrar a morte do menino. “O oficial me disse que eu não pegaria a certidão de óbito do meu filho até que o removêssemos do túmulo dele. Como cristão, ele não poderia ser enterrado tão perto de um cemitério muçulmano. Argumentei com eles, pois tínhamos comprado legalmente o terreno para servir de cemitério, mas voltei para casa de mãos vazias”, disse o pai, em um relato à ONG Portas Abertas.
Ao voltar para casa, ele encontrou a polícia esperando para prendê-lo. O homem ficou detido por dois dias. A prisão fez com que a família acionasse o judiciário local para reverter a decisão de retirada do caixão. Só que o juiz responsável pelo caso além de aplicar uma multa à família determinou a transferência do corpo de Samer para um cemitério distante 100 quilômetros da cidade onde a família mora.
Um novo recurso foi apresentado à Justiça, e a resposta veio na forma de um novo revés. Nazeer foi preso mais uma vez, agora dentro do ônibus de transporte público que usava para voltar para casa, sob a justificativa de ter recorrido da sentença anterior. O pai do menino foi obrigado a voltar ao tribunal e retirar a apelação. Para garantir a liberdade ele tinha que retirar o caixão da sepultura onde o filho havia sido enterrado, o que foi feito sob protestos da família. “Este é realmente o auge da perseguição”, disse Nazeer.
A mãe de Samer contou que ela e os três irmãos do menino estão tendo dificuldades de superar o momento traumático pelo que passaram. “Simplesmente não consigo esquecer a visão do corpo do meu filho depois que o removemos do cemitério. Eu e meus outros filhos tivemos colapsos nervosos e não conseguimos dormir bem”, contou Mary. “Onde estão os direitos do meu filho? Como é possível que eles removam uma criança inocente de sua sepultura?”
A família disse que vai apelar às cortes superiores para que as autoridades que ordenaram a remoção dos restos mortais do menino sejam responsabilizadas e para que o sepultamento ocorra no local previamente escolhido pelos pais.
Mártires
O pior dos países para os cristãos, aponta a Portas Abertas, é a Coreia do Norte, líder do ranking desde 2002. Por lá, informa a ONG, possuir uma bíblia é considerado um crime contra o Estado, e os cristãos são vistos como hostis a serem erradicados. Todos os cristãos no país são secretos, estima a organização, que afirma que se um cristão for pego na Coreia do Norte com materiais que comprovem sua condição de fé, não só ele, como sua família podem ser presos e levados a campos de trabalho forçado. Ou isso ou são mortos.
Países do norte da África, como o Egito, e da Ásia ocupam as primeiras posições no ranking da ONG Portas Abertas. Países como a Índia tiveram destaque no relatório de 2020. Por lá, nem mesmo o isolamento social e a pandemia impediram o aumento no número de casos de ataques a cristãos. Só nos primeiros seis meses de 2020 houve um aumento de mais de 40% no número de ocorrências do tipo, segundo relatório semestral da ONG indiana Persecution Relief.
São situações que começam com a intimidação, como a sofrida por famílias cristãs que vivem em um vilarejo no estado de Madhya Pradesh, na Índia. No último dia 20, moradores relataram à ONG indiana que policiais estiveram no local acusando uma mulher de estar sendo paga para converter vizinhos ao cristianismo. Após os policiais terem deixado o local, pessoas classificadas pela Persecution Relief como extremistas religiosos começaram a proferir ameaças físicas e verbais.
Mas os casos podem evoluir em uma escalada de violência, e terminar com a morte de fiéis. No relatório da ONG aparecem seis vítimas fatais. Duas dessas vítimas eram mulheres, que foram estupradas e mortas por causa de sua fé. Outras duas mulheres e uma criança de dez anos também foram estupradas por se recusarem a renunciar ao cristianismo.
O relatório da Persecution Relief usa palavras fortes para se referir a essas pessoas, alvos dos ataques. São os “mártires por Jesus Cristo”, vítimas da “propaganda racista que tem sido largamente usada na tentativa de demonizar minorias religiosas e que levam a linchamentos, assassinatos e toda sorte de ataques diabólicos.”
O mesmo termo também foi usado pelo Papa Francisco em abril deste ano. Na audiência geral realizada no dia 29 daquele mês, o sumo pontífice lembrou que “É doloroso recordar que, neste momento, há muitos cristãos que padecem de perseguição em várias partes do mundo, e devemos esperar e rezar para que a sua tribulação seja impedida o mais rapidamente possível. Há muitos: os mártires de hoje são mais numerosos do que os mártires dos primeiros séculos. Manifestemos a nossa proximidade a estes irmãos e irmãs: somos um só corpo, e estes cristãos são os membros ensanguentados do Corpo de Cristo, que é a Igreja”, disse o papa.
Cristofobia
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) colocou a expressão "cristofobia" na ordem do dia da política ao citar o termo durante seu discurso à assembleia geral da Organização das Nações Unidas (ONU), veiculado na terça-feira (22). "Faço um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia", afirmou o chefe do Executivo em um trecho de sua fala.
A perseguição a praticantes de religiões cristãs mencionada pelo presidente passou a fazer parte da agenda do Congresso Nacional nos últimos anos. Desde 2012, o termo "cristofobia" é visto em discursos, debates e propostas do Legislativo brasileiro, em especial na Câmara dos Deputados. A expressão é empregada tanto por quem vê o ataque aos cristãos como um problema a ser combatido quanto por quem considera que tal questão não é uma realidade no Brasil. Para estes, não há cristofobia no Brasil porque não existe “um sistema estruturado de perseguição violenta contra esse setor religioso” em nosso país.